Carta à Berta n.º 592: O Funeral das Tágides
Olá Berta,
Há um ditado muito, mas muito, antigo em Portugal que advoga que: “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento”. Tem este dito popular muito a ver com as nossas rivalidades seculares com os espanhóis, remontem elas ao tempo da criação de Portugal, à Época dos Descobrimentos, à ocupação nacional pelos Filipes, ou sejam causadas pelo clima porque, o vento, sempre sopra de Espanha, é muito frio e seco no inverno ou muito quente e seco no verão. Seja pelo que for, minha querida amiga Berta, o provérbio arranja sempre uma ou outra maneira de se manter atual.
Desta vez, minha querida, os nossos “hermanos”, resolveram ativar o regime de exceção do acordo que têm com Portugal, que lhes permite unilateralmente fechar a torneira dos rios que nascendo em Espanha desaguam em terras lusas. Para não darem muito nas vistas começaram pelo Guadiana, depois seguiram para o Douro e, finalmente, ei-los que chegam ao Tejo.
Eu sei, e tu também sabes minha amiga, que o mundo vive as consequências das alterações climáticas e também sei que a Península Ibérica se encontra quer sob o efeito de uma seca extrema, quer assolapada por uma onda de calor fora do comum, quer ainda, para cúmulo a atravessar uma enorme falta de água, como consequência lógica dos dois fenómenos anteriores.
Também sei, Berta, que em todo o mundo, e Espanha não é exceção, os governos olham primeiro para o seu umbigo antes de olharem em redor. Porém, o que eu gostaria de saber é quem foi o governante português, melhor dizendo, o estupor cretino e imbecil, que assinou um acordo com os espanhóis permitindo-lhes fechar-nos o acesso à água dos rios cuja nascente seja espanhola, precisamente naquelas alturas em que um caudal mínimo e sensato deveria estar assegurado, hum, quem foi?
Esta besta quadrada, querida Berta, é atualmente responsável pela liofilização do Tejo, pela ausência de peixes no rio, pelas travessias do rio que já se fazem, nalguns troços, a pé, pela concentração de fertilizantes e adubos em níveis venenosos que escorrem destes agora riachos vindos de Castela, e não só, e que entram em Portugal, enfim, pela morte das Tágides de Camões.
Porque este Adamastor de água doce, minha amiga, levou à desertificação dos nossos terrenos, ao abandono da nossa agricultura em zonas antes férteis, ao êxodo dos jovens do interior para as cidades ou à sua imigração, ao envelhecimento da população rural, ao desespero de milhares de famílias que, de um momento para o outro ficaram sem sustento, ao agravamento das alterações climáticas, à proliferação de incêndios e levará, em última análise à revolta justificada de um povo de brandos costumes. Depois não culpem o povo se lhes tiraram os costumes.
Pois é Berta, quando os passeios do Douro passarem a ser caminhadas pelo leito do rio, quando o Guadiana estiver tão seco que fique esquecida qual é a fronteira, ao Sul, entre Portugal e Espanha, quando a travessia entre o Minho e a Galiza deixar de ter como fronteira a travessia do Lima, quando tudo isto e muito mais acontecer, não te admires com o fim dos brandos costumes. Aliás, não te admires com nada.
A culpa podia ser inteiramente espanhola se o tal acordo não existisse, contudo, existe e foi assinado por um mentecapto do governo da República Portuguesa, não sei quando e nem me interessa saber porquê. O que eu quero, querida Berta, é que Costa arranje forma de revogar o quanto antes esta barbárie que nos está a condenar mais depressa do que aquilo que seria a nossa já longa morte lenta. Despeço-me triste e angustiado, recebe um beijo amigo deste teu solidário companheiro de anos, talvez nos encontremos no funeral das Tágides...
Gil Saraiva