Carta à Berta: Livro - O diário Secreto do Senhor da Bruma - IV - Eu e o Os Outros - IV-1
Olá Berta,
Aqui vai a minha carta do dia, uma parte integrante do Diário Secreto do Senhor da Bruma. No final da mesma explico alguns dos porquês de seguir hoje.
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IV
Eu e os Outros (início - IV – 1)
Aqui estou eu, com um sorriso nos lábios, no sábado de 11 de julho de 2020, um dia de Sol, pese embora eu ainda esteja obrigado a esta coisa a que atualmente chamamos, eufemisticamente, de confinamento.
Contudo, podia ser pior, bem pior. Podia estar infetado, poderia ter nascido no Brasil e estar a ser governado por um narciso mentecapto que não protege o povo que o elegeu, podia ter vindo ao mundo na Florida, e ter de tentar sobreviver num país “Hiper Infetado”, governado por uma cenoura para quem a palavra é sinónimo de autoelogio e a igualdade de género é um conceito abstrato.
Podia ter sido holandês, norueguês, finlandês, dinamarquês e manter o instinto de viking, pirata, avarento e sem conhecimento do significado das palavras fraternidade e solidariedade.
Poderia ser natural do Bangladesh e, por esta altura, já se teria certamente realizado o meu serviço fúnebre devido à escassez de recursos de saúde para a generalidade da população, o que teria antecipado em muito a minha partida deste mundo.
Ah! Nada tenho contra estes países. Não sou xenófobo, racista nem homofóbico. Apenas gosto de ser o que sou.
Poderia, e agradeço aos céus isso não ter acontecido, ter sido dado à luz na Coreia do Norte e estar a viver um século XXI como se estivesse no tempo da Inquisição ou pior até.
Por isso o sorriso. Faz Sol, sou português, vivo num país lindo, cheio de emoções, com gente maravilhosa e solidária em meu redor, num bairro que adoro e na cidade que me viu nascer.
Aqui e ali aparecem uns malandros, uns corruptos, uns incompetentes, uns oportunistas, uns vigaristas e alguns seres malformados. É verdade, mas aparecem aqui, como em toda a parte onde existam seres humanos. Por melhor que uma sociedade possa ser, haverá sempre um resíduo sujo e obscuro que resiste, tipo vírus, à normalidade da restante população.
Ao contrário de muitos não me envergonho da nossa era das descobertas e navegação marítima com que, em conjunto com os nossos “hermanos”, demos novos mundos ao mundo. Não me envergonho da colonização, da expansão marítima portuguesa, nem sequer do tratamento que demos aos povos de todos os locais por onde fomos passando nesses tempos.
Todavia, não me envergonho por saber contextualizar a época conjuntamente com os acontecimentos, pois importa realmente conhecer como eram as mentalidades no mundo ocidental, quando as coisas tiveram o seu lugar, na história da humanidade.
Aliás, pelo contrário, tenho orgulho de Portugal enquanto povo, enquanto nação, enquanto gente. Fizemos asneiras?
Claro que sim, várias! Muitas e repetidas vezes em quase 900 anos de história. Só a título de exemplo preferia que tivéssemos realizado uma descolonização mais atempada, mais bem planeada e principalmente melhor entregue aos povos de cada região ou futuro país. Como adoraria que nunca tivéssemos assinado a aliança com a Grã-Bretanha que só serviu e serve, desde o seu início, os intentos dos anglo-saxónicos e não os nossos. Mas isso faz tão parte de nós como tudo aquilo que construímos de bem.
O português e o castelhano juntos são, depois do mandarim, as línguas mais faladas do mundo, ultrapassando o conjunto dos que falam inglês e francês. Isso traduz, melhor que qualquer outra coisa, a diferença que fizemos na história dos povos, fosse para o mal, talvez, em alguns casos, mas principalmente para o bem. Por nossa influência direta vivemos num mundo bem melhor daquele que poderia ser este século XXI sem a existência da Península Ibérica e disso eu não tenho a menor dúvida.
Por isso o meu sorriso nos lábios. Sou, por natureza, um otimista. Tivesse nascido noutro lugar ou noutra época e já poderia ter conhecido o dia da minha morte por 4 vezes.
Porém, ainda cá ando, de sorriso franco, rindo para a vida que a vida me dá. Podia estar melhor? Claro que podia. Aliás, encontro mil e uma maneiras de descrever como isso eventualmente aconteceria e que fatores contribuiriam para essa melhoria.
Para além do tradicional Euromilhões, a maneira mais simples de dar o salto em termos de nível de vida, a mim bastavam algumas coisas bem mais simples. Por exemplo, ser pago por escrever e ter uma editora que acreditasse em mim e editasse aquilo que escrevo. Ser pago por uma atividade que desenvolvo bem, e acima dos padrões médios da generalidade das pessoas, é algo que parece uma ambição normalíssima de alguém como eu. Existe ainda o fator saúde que se fosse melhor do que é, neste momento, também contribuiria sobremaneira para o meu bem-estar geral. Tudo isso seriam coisas boas.
Contudo, apesar de nem sempre se ter tudo aquilo que se almeja, continuo a considerar que tenho bons motivos para sorrir e estar feliz. Superei as asneiras, as drogas e os vícios no final de uma adolescência rebelde, ultrapassei os traumas de um petardo militar que me colocou 6 meses de coma, superei, por 2 vezes, 2 situações de cancro, resisti à falência e ao roubo dos negócios onde estive envolvido no passado por parte de sócios e terceiros, evitei por 2 vezes morrer de septicemia e fui tratado atempadamente, coisa que efetivamente poderia ter conhecido outro final.
Sobrevivi a vários assaltos que poderiam ter ditado a minha despedida deste mundo, resisti, até hoje a situações problemáticas de saúde e a outras de desemprego de longa duração. Podem até alguns dizer: “- Ena pá, tanta desgraça!”, mas estão enganados, houve, há e haverá gente com muito menos sorte do que eu.
Tudo o que refiro se resume nos azares de um homem de sorte. Sorte por estar vivo, sorte por ser feliz, sorte por ser um otimista, sorte por ser um romântico sentimental e por saber descrever aquilo que sinto em palavras de prosa ou poesia. Sorte que me leva a sorrir, sempre e todos os dias quando acordo e dou por mim a pensar que ainda aqui estou. Contente, alegre, satisfeito e feliz. Apenas eu, só eu e nada mais do que eu.
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Com isto me despeço de ti, amiga Berta, e não leves a mal o desabafo, porque ele me lava a alma, me higieniza o estro e me clarifica a essência e o existir. Recebe um beijo deste teu amigo, sempre à tua disposição,
Gil Saraiva
Nota: Este desabafo faz parte do início do Capítulo IV do Diário Secreto do Senhor da Bruma. Omiti os dias a que o texto corresponde por estar desfasado no tempo, face ao que te estou a enviar atualmente. Contudo, atempadamente, colocarei os dias, e retirarei esta nota do registo em blog onde guardo as cartas que te escrevo.