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Alegadamente

Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente correto.

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Carta à Berta n.º 582: A Cerveja Pode Fazer Bem à Saúde?

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Olá Berta,

Nesta semana uma notícia difundida na comunicação social fez as cervejeiras esfregarem as mãos de contentamento. Na maior parte dos cabeçalhos noticiosos o cabeçalho anunciava algo do género: “Afinal, beber cerveja faz bem aos intestinos e não engorda.”

Em subtítulo, a negrito, minha querida Berta, a maravilhosa descoberta ainda anunciava: “Investigadores concluíram que «beber cerveja faz bem à microbiota intestinal», um fator associado à prevenção de doenças crónicas como a obesidade, diabetes e cardiovasculares.”

O jornal diário Público, minha amiga, foi dos poucos que teve o cuidado de mudar o título difundido pela Agência Lusa para escrever no título, em vez do sugerido: “Beber uma cerveja por dia faz bem aos intestinos e não engorda, concluem investigadores.”

Com efeito, no corpo do texto divulgado pela Lusa, pode ler-se, cara amiga, a seguinte explicação:

«“O Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS) no Porto realça que o estudo, publicado no Journal of Agricultural and Food Chemistry e que também envolveu investigadores da NOVA Medical School — Faculdade de Ciências Médicas, concluiu que “beber cerveja faz bem à microbiota intestinal”.

“O consumo de cerveja contribui para a melhoria da composição da microbiota intestinal, fator que tem sido associado à prevenção de doenças crónicas muito comuns, tais como a obesidade, a diabetes e as doenças cardiovasculares.” Sublinha a equipa de investigação.

Para realizar a investigação, a equipa recrutou homens saudáveis, entre os 23 e 58 anos, para participarem num ensaio, ao longo de quatro semanas, que consistia em beber diariamente 330 mililitros de cerveja, com ou sem álcool.

Os resultados provaram que o consumo de cerveja, uma bebida que resulta da fermentação de cereais, “aumenta a diversidade da microbiota intestinal, sem aumentar o peso e a massa gorda”. Através do estudo, os investigadores concluíram que a ingestão de cerveja “não interfere significativamente em biomarcadores cardiometabólicos”, como a glicose, colesterol e triglicéridos.

“Curiosamente, a fosfatase alcalina, um importante biomarcador de danos no fígado, rins e ossos, diminuiu no decurso do ensaio”, salienta o CINTESIS. O centro acrescenta que o benefício da cerveja na saúde intestinal “provou ser independente do teor alcoólico “, ou seja, ocorre quer a cerveja tenha álcool ou não.

Os investigadores acreditam que o efeito benéfico da cerveja pode estar ligado com os polifenóis presentes na bebida, à semelhança do que acontece com o vinho tinto. Citados no comunicado, os investigadores salientam que o estudo “vem demonstrar que este tipo de bebidas ricas em polifenóis, no caso a cerveja, é uma abordagem interessante para aumentar a diversidade da microbiota intestinal.” O estudo, que foi liderado pelas investigadoras Ana Faria e Conceição Calhau, contou ainda com a participação de outros especialistas do CINTESIS.»

Ora, não encontrei, na nossa comunicação social, falada ou escrita, nenhuma interrogação sobre o modo como o estudo foi conduzido e sobre o que realmente se pode concluir dele ou quais as questões que ficam por responder. O que, minha querida Berta, ou é uma falha dos órgãos de comunicação social ou é um encosto ao lóbi cervejeiro.

As conclusões do estudo, no meu entender, são realmente válidas para os jovens adultos saudáveis a partir dos 23 anos de idade e permanecem válidas até aos homens saudáveis de meia idade até aos 58 anos, que bebam, apenas e só, uma cerveja por dia, ou seja, 33 cl. Aquilo a que o estudo não responde por tal não foi analisado, nem sequer mesmo extrapolado, é às seguintes questões:

  1. Qual é o efeito da cerveja nas crianças, nos adolescentes e nos jovens até aos 22 anos de idade, mesmo que apenas ingiram uma cerveja por dia?

  2. Qual é o efeito da cerveja nos mais velhos, a partir dos 59 anos de idade, e quais os efeitos que provoca à medida que essa idade aumenta?

  3. Que tipo doenças são incompatíveis com o consumo de cerveja?

  4. A diferença de género gera ou não diferentes reações à cerveja, e em caso afirmativo, como se comporta a ingestão de cerveja entre homens e mulheres?

  5. A ingestão de uma cerveja, por dia, limita ou não o consumo de outras bebidas alcoólicas, podendo ter ou não consequências negativas?

  6. Como o estudo foi efetuado apenas com homens podem existir reações diferentes às descritas no estudo no consumo, efetuado dentro dos mesmos parâmetros, por mulheres?

  7. Se o estudo em vez de quatro semanas se mantivesse por um ano, ou seja, por mais 48 semanas, as conclusões teriam sido as mesmas?

  8. Se o consumo for o dobro, ou até mais, relativamente àquilo que foi estudado, as conclusões alteram-se e de que maneira é que isso acontece?

  9. Sabendo que em Portugal, segundo o censos de 2021, existem mais meio milhão de mulheres do que homens e que entre os 23 e os 58 anos apenas existem entre 2 a 3 milhões de indivíduos, sendo que os totalmente saudáveis rondarão a casa do milhão, talvez um pouco menos, para que serve um estudo que visa apenas dez porcento da população portuguesa, limitado no período de testes, e sem aferição das consequências da continuação do consumo passadas as 4 semanas?

Ora bem, minha querida Berta, as minhas questões podiam ser muitas mais, o que me aborrece, não no estudo, que me parece um bom passo em frente, mas na forma como o mesmo foi divulgado é que o nosso jornalismo atravessa um período sombrio.  Mas isto sou eu a achar, minha amiga, fica com um beijo de despedida muito saudoso, este teu amigo de sempre,

Gil Saraiva

 

 

 

Carta à Berta: O Morto Que Não Era Óbito

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Olá Berta,

Uma família, como muitas outras, que têm os seus idosos nos hospitais do país, recebeu, no passado dia 10 de janeiro, a notícia que ninguém deseja, ou seja, o falecimento, vítima de Covid, do seu nonagenário familiar. A comunicação do óbito foi efetuada pelo Hospital de Oliveira de Azeméis, uma das três unidades do Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga (CHEDV), com problemas respiratórios.

O idoso estava internado no referido hospital e provinha de Milheirós de Poiares em Santa Maria da Feira. Segundo a Agência Lusa, o filho do homem, o senhor Aureliano Vieira, recebeu a triste e fatídica informação da morte do pai ao décimo dia de janeiro, por motivos associados à pandemia de Covid-19.

Deixo-te aqui, minha amiga Berta, as declarações do próprio: "Como era por causa do covid-19, não permitiram que se fizesse o reconhecimento do corpo. Limitamo-nos a fazer o funeral, já no dia 12. Mais tarde, mandamos mesmo celebrar a missa do sétimo dia. Já hoje de manhã, vieram dizer-nos do hospital que o nosso pai estava vivo e pediram desculpas pelo erro".

Seguidamente o senhor Vieira ainda acrescentou: "E, felizmente, está vivo. Já confirmei”. Contudo, diz desconhecer ainda de quem é o corpo que o hospital presumia ser do seu pai. Aliviado, o filho do nonagenário, ainda não sabe o que vai fazer relativamente ao acontecido, diz-se aliviado, mas confirma que: "Ainda estou atónito. Tenho de falar com outros familiares".

Foi através do contacto da agência Lusa que, por fonte autorizada do CHEDV, ficou confirmada a troca de identidades efetuada numa das enfermarias do hospital de Oliveira de Azeméis. A mesma unidade hospitalar lamentou "profundamente" o sucedido.

O senhor anunciado como falecido pode não ser de facto uma reencarnação, todavia, será dos poucos portugueses a ter direito a um segundo funeral, quando a vida, algures no futuro, o resolver por fim deixar descansar. Espero, minha querida Berta, que esse dia ainda demore, até porque, para quem acabou de falecer não me parece bem que morra de novo em breve. Paz, regresso a casa, em segurança e com saúde é o que eu lhe desejo.

Com mais esta pequena história, que só tem alguma graça por ter acabado em bem, embora a Lusa não refira quem foi afinal a pessoa que faleceu, me despeço, por hoje com um curto, mas sentido, beijinho saudoso. Sempre ao dispor,

Gil Saraiva

 

 

 

Carta à Berta: Eutanásia

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Olá Berta,

O Parlamento nacional aprovou ontem a eutanásia. Mais uma vez Portugal entra no grupo da frente dos países que defendem os direitos fundamentais dos seus cidadãos. É claro que a lei ainda tem de passar pelo crivo do Presidente da República, porém, mesmo com o seu veto, depois de reconfigurada novamente pela Assembleia da República, o Presidente será obrigado a promulgar a lei.

É claro que se trata de uma lei polémica. Também é certo que há quem ache que a eutanásia é efetivamente contrária aos verdadeiros direitos dos cidadãos. Todos têm direito à sua opinião. Eu, minha querida amiga Berta, penso que se trata de um avanço civilizacional. O facto de alguém ter o direito de poder pôr fim à sua vida, sendo para isso assistido por um especialista, por ter perdido completamente a integral qualidade da mesma, parece-me um claro progresso da civilização ocidental e neste caso concreto do país.

A título pessoal relembro-me da minha mãe que faleceu devido ao Alzheimer há uns anos atrás. Ela era profundamente católica e crente, isto enquanto foi senhora da sua própria vontade, é claro. Todavia, assim que tomou conhecimento da sua doença, ainda num estado precoce, pediu aos filhos que não prolongassem artificialmente a sua vida e que a deixassem partir em paz. Não me lembro, pois já passou muito tempo, se alguma vez usou a palavra eutanásia, mas, mesmo que não o tenha feito, o pedido expresso que fez, significa precisamente o mesmo.

Não sei o que pensas pelo assunto minha querida, contudo, pelo que conheço de ti, acho que pensas como eu. Espero que esta lei se torne quanto antes uma realidade em Portugal. Despede-se este teu amigo de sempre, com um beijo de saudades,

Gil Saraiva

 

 

 

Carta à Berta: Porque É Tão Difícil Confinar Agora?

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Olá Berta,

2.103.000 era, há 15 minutos atrás, o número de óbitos, por Covid, registados oficialmente no mundo. Dois milhões cento e três mil, este é o número de mortos oficiais por Covid, o que é muita gente e isto num universo em que, talvez já no próximo domingo, o globo atingirá os cem milhões de infetados. Então, perguntarás tu, minha querida Berta, porque é que não andamos todos em pânico?

Porque nos adaptamos, esta é a verdadeira resposta. O nosso cérebro tem a maravilhosa capacidade de se adaptar a todas as circunstâncias para conseguir sobreviver. Quando a notícia que aparece repentinamente, tem mostras de tragédia e é chocante, nós reagimos de imediato. Temos medo, pavor, pânico e insegurança nos instantes seguintes, todavia, a repetição continuada no tempo, de forma cíclica, de um mesmo tipo de desastre faz disparar os nossos mecanismos de defesa. Passamos a assimilar essas notícias como parte da rotina e o susto inicial é substituído por uma espécie de enfado triste até que um dia, sem sabermos porquê, passamos a achar normal tudo o que anteriormente nos horrorizou.

Não admira, portanto, embora a pandemia esteja bem mais grave agora do que no início, que a coisa nos pareça mais normal, menos preocupante, o que justifica que não entremos em pânico com a facilidade anterior.

Não passámos a ser mais insensíveis, nada disso, nós entrámos, isso sim, em modo de defesa cognitiva. Como consequência disso temos todos a tendência de sermos impelidos a voltar às velhas rotinas da pré pandemia, como se esta fosse algo que, embora existindo e sendo uma realidade, não nos diz diretamente respeito.

Aqui ou ali, um detalhe, um acontecimento sobre o tema, ou uma qualquer relação de proximidade, pode fazer regressar o medo, o pavor ou o pânico, contudo, tem de ser por um motivo específico, porque a generalidade do assunto se tornou corriqueira e banal.

Essa é a razão que explica porque fomos tão ordeiros e obedientes no primeiro confinamento de março do ano passado e porque procuramos, com a mesma naturalidade, as exceções ao isolamento desta vez.

Apesar disso ser naturalmente assim, há coisas que não aceitamos. Por exemplo, porque não perdemos a capacidade de pensar, é-nos difícil aceitar que as eleições de domingo para a Presidência da República não tenham sido atempadamente adiadas. Aliás, foi com sentimento de revolta que já reagimos à votação antecipada, marcada por filas e esperas sem sentido, do passado domingo.

Psicólogos, psiquiatras, analistas especializados, cientistas do comportamento, médicos, terapeutas e mais uma gigantesca parafernália de entendidos sabem bem o que nos acontece e porque agimos da forma como agimos e porque acabamos por nos comportar como nos comportamos.

Se os grandes senhores das gigantes tecnológicas usam os estudos do comportamento humano para nos fazerem consumir quase que por instinto, porque raio não há de o Estado usar os mesmos mecanismos para nos explicar o que estamos a fazer intuitivamente de errado?

A pergunta fica no ar, minha querida Berta, por hoje despede-se saudoso este teu amigo do coração, recebe um beijo de despedida deste que não te esquece,

Gil Saraiva

 

 

 

Carta à Berta: Evolução II (Excerto - III do Diário Secreto do Senhor Da Bruma - Capítulo IV)

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Olá Berta,

Ontem estive a dizer-te o que penso sobre aquilo que, para o mundo dos nossos dias, não passa de ficção ou de balelas sem fundamento e que, dentro de algum tempo, nuns casos menos, noutros mais, se poderá tornar uma verdade evidente, tão clara e evidente, reforço, como as que hoje damos como adquiridas e até banais.

Se olharmos com atenção, o Homem, em termos físicos, tem vindo a abrandar na sua evolução. Podemos dizer que está mais alto, devido à forma como se alimenta, nos dias que correm, ou até mais obeso, o que, entre outras coisas, é também um resultado do tipo de comida que ingere. Todavia, mais importante do que isso, vive mais tempo, muito mais tempo do que vivia no passado. Há zonas no nosso mundo em que a esperança média de vida dobrou e isso é algo de quase inacreditável.

Aliás essa é a razão ou, pelo menos, se não for a única, uma das mais importantes, para a população mundial ter passado nos últimos 150 anos de 1,5 biliões para mais de 7,8 biliões nos nossos dias. O avanço da ciência, nos campos da saúde e do bem-estar, retirando temáticas anteriormente pertencentes ao mundo da bruxaria, das mezinhas e dos feitiços, teve esse efeito fabuloso. Explicando de outra maneira, somos 5 vezes mais do que aquilo que eramos há século e meio e vivemos substancialmente mais tempo e com melhor qualidade de vida fruto do desenvolvimento científico das últimas 15 dezenas de anos.

A evolução do Homem tem vindo a mudar rapidamente do físico para o cérebro. Aqui a margem de progressão é ainda muito significativa. Se um génio, uma mente brilhante nascer proximamente, arrisca-se a viver com as suas capacidades intelectuais praticamente intactas até ao final da sua vida, face à velocidade com que a ciência tem vindo a avançar. O que significa que terá o dobro ou o triplo do tempo, em comparação com génios de outros séculos, para criar, inventar e descobrir. Não só viverá muito mais tempo, como manterá, quase até final da sua vida, o seu intelecto sem grande deterioração.

Se levarmos ainda em linha de conta que a partilha de informação, entre aqueles que, pelas suas afinidades, se interessam por partilhar o seu conhecimento, com o objetivo de ganhar valências, que lhes poderiam faltar, partilhando à escala global esse conhecimento, então a evolução passará de uma marcha que já era de galope, para uma vertiginosa corrida saltando apoteoticamente de objetivo em objetivo, de meta em meta.

Não me é difícil de imaginar que, dentro de 50 anos, o salto dado pela humanidade, em termos de progresso e conhecimento, seja o dobro do que foi nos últimos 50, coisa que, se pensarmos seriamente no assunto, já foi, por si só, um verdadeiro milagre tecnológico e científico.

Não ficarei surpreso se alguém prever que, daqui a 50 anos, um cérebro possa ser transplantado de um corpo para outro, mantendo todas as suas capacidades cognitivas e experiência adquirida. É claro que isso levantará imensos problemas éticos, religiosos e sociais, mas o progresso sempre levantou esse tipo de questões e não parou por causa disso.

Enfim, minha querida Berta, podia continuar para aqui a divagar, mas hoje só queria mesmo complementar a ideia de ontem, para que possas imaginar, como eu, que estamos apenas na pré-história da ciência e do conhecimento. Ainda agora o mundo se começou a descobrir e que, mais depressa do que pensamos, rapidamente chegaremos onde nunca ninguém chegou anteriormente. Despede-se este teu amigo com um beijo de até amanhã, sempre ao dispor,

Gil Saraiva

 

 

 

Carta à Berta: Livro - O diário Secreto do Senhor da Bruma - II - Abordagens Sobre a Burrice (continuação - II - 5)

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Olá Berta,

São muitos os ditos sobre a burrice e os burros nas expressões utilizadas na língua de Camões. Cada um deles, contudo, parece querer ajudar os asnos humanoides a seguirem novos caminhos e a abandonarem a carneirada acéfala que segue modas e campanhas publicitárias, líderes populistas e outros chupistas.

Não se trata de defender nenhuma moral oculta, mas sim, de combater a burrice generalizada que se espalha mais rapidamente que vírus em dia de festa clandestina. Um alastramento ventoso por entre as multidões de seres que julgam que o pensamento e o livre arbítrio, são termos bonitos para constarem na Wikipédia ou em livros, nunca lidos, que lhes enfeitam as prateleiras das salas em suas casas bonitas e ocas, porém na moda. Mas é tempo de dar continuidade ao Diário Secreto do Senhor da Bruma, ainda sob a alçada do segundo capítulo:

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II

Abordagens sobre a Burrice (continuação - II - 5)

Março, dia 4:

Analisemos agora o provérbio “a ferramenta é que ajuda, não é o pisco em cima da burra”. Com efeito, sejam os alforges colocados no animal, para que ele transporte o que necessitamos, os arreios e demais preparos, para que puxe uma carroça ou, talvez, um arado para que lavre a terra, sejam outros exemplos do mesmo género, são tudo coisas, instrumentos ou ferramentas que possibilitam que o burro cumpra o seu propósito. Já o pássaro em cima do lombo ou perto das orelhas do animal, que dedicadamente vai devorando carraças e carrapatos, apenas o alivia a ele e pouco proveito direto representa para o dono do bicho.

Março, dia 5:

Aliás, na perspetiva do burro, o pisco, embora sendo um pássaro de tamanho diminuto, é muito mais importante do que todas as ferramentas que o seu proprietário possa arranjar para que ele cumpra uma tarefa. Mais uma vez o burro, ao representar a classe trabalhadora, serve para ilustrar a consideração que proprietários, chefes e empresários costumavam ter sobre quem para eles trabalhava, ou seja, nenhuma ou, praticamente, nenhuma. Se o pisco representa o cuidador personalizado importa mantê-lo e premiá-lo.

Ao fim e ao cabo, a ferramenta não ajuda o burro, inversamente prejudica-o, obriga-o mesmo a trabalhar sem o querer fazer e ao melhorar-lhe a produtividade também aumenta a sua exploração por parte do proprietário, patrão ou superior hierárquico. Eu cá sou pela liberdade dos burros e por um sistema de saúde digno. Vivam os piscos.

Março, dia 6:

Há que dar, contudo, valor ao povo que num simples provérbio punha a nu a injustiça do tratamento que recebia, ficando sempre remetido à categoria de burro, mesmo nunca o tendo sido. É por estas e por outras que depois, a dada altura, o copo deixa de encher, para, na mais pequena gota extravasar. É assim que surgem os dias das revoluções. Muitas vezes, o burro não é tão burro como a conta que dele faz o seu dono. Coisas da vida. Viva o 25 de abril. Viva a revolução. Vivam os asnos.

Março, dia 7:

Já o ditado “há falta de um grito, morre um burro no atoleiro” tem outro intuito. Com efeito, o zurrar destes animais não atinge os decibéis necessários para servir de alarme. O provérbio assiste na explicação que grandes tragédias acontecem pela falta de precaução ou medidas simples de segurança. Ora, fala-se na morte do jerico, e não de outro animal, para dizer que apenas um idiota não se previne e protege devidamente. Se a pessoa é burra e não são os seus pedidos de socorro que a podem ajudar numa situação de perigo, então, o local, o transporte, a casa ou o posto de trabalho têm de estar apetrechados com os meios preventivos necessários para que uma situação de perigo seja evitada.

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Conforme podes observar, pela foto que hoje ilustra a tua carta, o asno encontra-se pequenino, em segundo plano numa prateleira, quase abandonado à sua sorte, enquanto eu apareço armado em Moisés, saído de um banho de vitamina D da varanda das traseiras, onde o Sol se mantém firme e quente entre as 2 e as 7 da tarde, porque isto de viver confinado não me pode impedir de tratar devidamente da saúde.

Como sabes, depois dos meus AVC de 2019, regressou o ataque da vesícula em 2020, após 3 anos de pausa, penalizada por não me ser possível uma operação, relegada para uma suspensão quase permanente, enquanto o coronavírus se passeia alegremente pelo nosso Portugal e brinca às escondidas com a ilustre Direção Geral de Saúde e o respetivo Ministério da Saúde.

Um Ministério cheio de estrelas e de gente que gosta de se ver na televisão, seja Marta Temido, Graça Freitas ou aquela alegada baronesa das olheiras permanentes, vinda de Alte, do Algarve, uma tal de Secretária de Estado Adjunta e da Saúde, Jamila Madeira, filha do grande barão algarvio do PS, Dom Luís Filipe Madeira, que, embora tenha formação em gestão e mestrado em finanças, fala de saúde com a pompa e circunstância com que os burros olham para os palácios, ao fim do dia, quando a noite chega, para que a ignorância não salte à vista.

Mas chega de choramingar o meu estado de saúde. É o que é e, se tudo correr sem muitos mais incidentes, no final, espero que essa saga termine positivamente. Por hoje, este teu grande amigo, despede-se de ti, querida Berta, enviando um fino e requintado beijo postal, pois que através destas cartas nos comunicamos. Conforme sabes, estou sempre ao dispor para o que necessário for,

Gil Saraiva

 

 

Carta à Berta: SNS e DGS: Mentira ou uma grande coincidência?

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Olá Berta,

SNS e DGS: Mentira ou uma grande coincidência? Se as tuas cartas tivessem título, esta questão devia ser o que constaria, como legenda titular, na carta de hoje. Era para a ter escrito ontem, todavia, ainda pensei, umas quantas vezes, que estava a ficar como aqueles maluquinhos, que vêm teorias da conspiração em todo o lado. Resolvi deixar passar 24 horas. Afinal, achei necessário pensar bem no assunto, antes de escrever e parecer ridículo, neste meu raciocínio.

Contudo, as 24 horas passaram e, em vez de achar que tudo não passava de um pensamento absurdo da minha parte, cada vez mais penso que tenho mesmo razão. Ou seja, o Governo, o Presidente, enfim, o Estado anda a esconder-nos informação. Eu sei, amiga Berta, que as minhas cartas para ti são todas, sem exceção, incluídas no domínio do alegadamente. Mesmo assim, após 40 anos de jornalismo, prefiro ter as minhas fontes, sobre qualquer tema que escrevo, o melhor documentadas e verificadas que me for possível.

Não é essa a situação de hoje. Não tenho, efetivamente, como fazer prova sobre o que se passa de concreto no âmbito das minhas interrogações, nem sequer sei se tudo o que agora afirmo poderá alguma vez sair do universo do alegadamente. Apenas tenho a enorme convicção de que alguma coisa se está a passar e de que a verdade está a ser distorcida.

Deves estar a interrogar-te sobre que raio é que eu estou para aqui a escrever. Para te responder a isso tenho que te explicar que, dos meus 40 anos de atividade profissional enquanto jornalista, mais de metade foi passada a fazer investigação. Ainda por cima, manter uma carteira profissional nos últimos 25 anos, na qualidade de freelancer, em Portugal, não é pera doce.

A importância da investigação gera em nós, enquanto investigadores, uma espécie de instinto para detetar quando algo não bate certo. Podemos nem saber ao certo do que se trata, mas se algo estiver errado, no meio de um conjunto de informações que nos vão chegando, algures, cá dentro do meu cérebro, toca uma espécie de alarme como que a prevenir que há um erro seja lá onde for. Foi esse alarme que eu passei a sentir desde o último sábado.

Já agora, falando concretamente do que me chamou a atenção, no sábado, eu vi e ouvi uma reportagem com o Jorge Jesus, em que este se mostrava visivelmente abalado, com o facto de ter perdido um grande amigo, nesta luta contra o Covid-19. No entanto, a única morte confirmada pelo SNS apenas teria lugar na segunda-feira, tendo sido anunciada como um óbito, efetivamente, ocorrido na segunda. (Um aparte: eu digo “o” Covid-19 porque se trata de um vírus e não “a” Civod-19 por ser uma doença, aliás, também digo o Cancro ou o Ébola, mas admito que existam opiniões divergentes sobre masculino ou feminino na designação).

Ora bem, pela entrevista de Jorge Jesus, o que me pareceu, na altura, foi que a família do antigo massagista do Estrela da Amadora, um homem de 80 anos, tinha acabado de comunicar o óbito, derivado por infeção com o coronavírus, ao treinador, mostrando-se esse sinceramente consternado com a notícia. Já a repeti por diversas vezes, pois guardei o videoclip, e chego sempre à mesma conclusão: Mário Veríssimo faleceu a 14 de março de 2020.

Contudo, o Serviço Nacional de Saúde, apenas declara a morte no dia 16 de março. Como se esta tivesse ocorrido na madrugada desse dia. Para ainda me deixar mais incomodado, no dia 15 dá-se a transmissão de um novo clip de Jorge Jesus, 24 horas depois da sua primeira declaração, com o homem notoriamente atrapalhado, a dizer que fez confusão, que sabia que o amigo estava em risco de vida e que poderia perecer, tentando dar o dito por não dito, coisa que não se pode pedir a este ilustre homem do futebol, devido à sua falta de jeito para as artes teatrais.

Porém, alguém, na minha interpretação a própria Direção Geral de Saúde ou o Ministro da tutela, solicitou este desmentido. O óbito acaba por ser declarado dia 16, provavelmente alguns dias antes do que o SNS pretendia, para que não se levantasse a lebre sobre a fiabilidade das informações da DGS ao público em geral. Em conclusão, passei a achar que o fluxo diário das informações da DGS, todos os dias ao meio-dia, não passa de um cozinhado.

Repito, um cozinhado, criado para nos ir dando, ao ritmo desejado, as notícias sobre o vírus que o Governo julga aconselhável transmitir. Aliás, se este fosse um caso único, se esta fosse a única ação fora de contexto, eu até poderia estar realmente a imaginar uma Teoria da Conspiração. Todavia, juntando esta coincidência (e eu não acredito em coincidências) a outros detalhes ocorridos durante todo este mês, desde o dia 2, levam-me a acreditar que a informação está a ser globalmente manipulada pelo Estado.

Algumas das incongruências foram assinaladas na Sic, por Miguel Sousa Tavares, outras fui apanhando nos diferentes noticiários, imprensa e nas notícias que recebo via Agência Lusa. Por exemplo, na semana passada o Infarmed ia distribuir um milhão de máscaras, a notícia foi transmitida e ninguém mais se lembrou disso. Contudo, este passado fim-de-semana, os dentistas, o pessoal dos aeroportos, algum pessoal médico, e outros, queixaram-se de não ter máscaras, bem como diversos equipamentos de proteção, também, anteriormente anunciados como prontos para entrega, pelo Infarmed.

Hoje, perante a insistência dos repórteres, o mesmo Instituto anunciou a distribuição de 2 milhões de máscaras e mais equipamentos, entretanto, passou uma semana. As ordens da DGS saíram, rigorosas e nacionais, mas os portugueses que regressam a Portugal, por fronteira terrestre, vindos por ou de Espanha, não estão a ser monitorizados.

Então estamos a receber pessoal de elevado risco e não estamos a verificá-los? O mesmo se passa nos aeroportos, quem lida com aquela gente toda, funcionários, seguranças, polícia, e por aí em diante, não tem sequer uma máscara para se proteger dos magotes de gente que acedem ao local e aos balcões. Estranho, não?

Estou convicto que não só não temos conhecimento de toda a estratégia global do Estado, como considero ser real a manipulação dos dados relativos ao Covid-19, por parte da DGS, como punha as mãos no fogo como temos muito menos material de proteção do que aquele que tem sido anunciado publicamente de 2 de março até ao dia de hoje.

Há outros detalhes que não jogam uns com os outros, nem batem certo, como as explicações dadas para a instalação dos hospitais de campanha ou de triagem, ou, ainda, a forma como foram amontoados os 70 nepaleses, num único local, no Algarve. Todos estes detalhes não combinam com o plano concertado e anunciado aos portugueses, como sendo aquele que está a ser posto em prática.

Até a quarentena do Presidente da República me parece, neste momento, uma estratégia forjada, para amanhã, se anunciar o Estado de Emergência, saltando 2 patamares de uma vez, o Estado de Contingência e Estado de Calamidade. O caso de Ovar, então, soa incrivelmente a gato escondido com rabo de fora. Só espero que toda esta estratégia de segredo esteja a ser concertada para se evitar o pânico.

Em conclusão, parece-me evidente, pelo desenrolar dos eventos e pelas discrepâncias que vou detetando, ajudado por 40 anos de atividade jornalística que o SNS, a DGS, o Infarmed, o Governo e a Presidência da República, nos estão a mentir descaradamente, contudo, até prova em contrário, espero que seja porque eles pensam ser essa a melhor maneira de manter a população calma. Caso seja por isso ainda lhes dou o benefício da dúvida, embora, pessoalmente, preferisse saber a verdade.

Fica descansada, amiga Berta, que continuarei atento. Darei novidades sobre a pandemia, sempre que se justificar. Despeço-me com um beijo fofo,

Gil Saraiva

Carta à Berta: Série: Quadras Populares Sujeitas a Tema - 18) Meio Caminho Andado

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Olá Berta,

Do lado oposto ao teu, em Guimarães, ainda não vai a meio, hoje, dia 12/02, o Reino da Diversão, que durará 30 dias. O evento decorre no Multiusos de Guimarães e espaços envolventes e conta com uma Pista de Gelo, apresentada como a rainha da companhia, os Carrinhos de Choque, o Tornado Loopping, o Carrocel Circus, os Barquinhos Infantis, o Twitter Infantil, a Minipista, a Scalextric, os Elásticos Radicais, o Carrocel Familiar, o Mega Crazy, as Rolling Balls e ainda o Pavilhão dos Matraquilhos. Este é um Reino que já vai no oitavo ano de história e sucesso.

A juntar-se à diversão, como não poderia deixar de ser, quiosques e tasquinhas trouxeram o elemento da restauração ao Reino da Diversão. A lembrar as antigas feiras e mercados regionais, este megaevento de 30 dias, entre 1 de fevereiro e 1 de março, proporciona, em Guimarães e arredores, uns dias bem divertidos com muitos sorrisos à mistura, num ambiente criado para toda a família, que promete continuar a fazer história na região. Durante este período o berço da nacionalidade é, novamente, um Reino de alegria e riso.

O motivo que me levou a assinalar aqui o acontecimento tem a ver com a taxa de felicidade acrescida que realizações deste género incutem nas populações que servem. Somos um país com uma taxa de suicídio que é a maior da Europa, de 13,7 pessoas por cada 100 mil habitantes, sendo que a média europeia é agora de 10,5 a par com a mundial, apenas nos ultrapassam, em números de suicídios por cada 100 mil habitantes, 7 países no mundo, a saber, em ordem decrescente: a Guiana, a Coreia do Norte, a Coreia do Sul, o Suriname, Moçambique, Nepal, Burundi e, logo depois, estamos nós, Portugal.

Outra nota menos engraçada é o facto de, até 2012, Portugal não ter um lugar de destaque neste nefasto ranking. Sendo nessa altura o oitavo lugar ocupado pela Alemanha com 10,7 suicídios por cada 100 mi habitantes. A partir da amaldiçoada governação de Passos Coelho e do clima de ultra austeridade implementada com a ajuda da Troika, centrada diretamente no indivíduo e não no consumo ou nas empresas, rapidamente o nosso país galgou lugares neste ranking até se instalar de pedra e cal no oitavo lugar, de onde parece não querer sair. No quadro europeu, segue-nos agora a França, com 12,1 de taxa, ainda bem longe nos nossos números absurdos.

Precisamos, por tudo isto, de mais Reinos da Diversão e sem sombra para dúvidas de incutir um maior otimismo e esperança nos estratos populacionais mais desfavorecidos. Sei que já te falei deste problema numa outra carta, mas considero realmente este um ranking do qual temos de sair com urgência.

Para que se atinjam estes objetivos não chegam os Reinos Divertidos, são precisas estratégias concretas de combate a este flagelo que rouba um cidadão ao país a cada 6 horas que passam. Espero sinceramente, amiga Berta, que se procurem medidas efetivas na redução do problema de forma pensada e urgente.

Quanto ao teu desafio, referente á minha produção de quadras sujeitas a mote, escolheste para hoje o tema “Meio Caminho Andado”. Espero, corresponder ao proposto, com estas novas quadras. Tive de construir 3, em vez de uma, para me sentir satisfeito com o tema. Contudo, é mesmo assim, nem sempre apenas uma nos dá o retorno que esperamos alcançar. Mas julgo que, pelo menos a terceira quadra, responde perfeitamente ao desafio. De qualquer maneira seguem as 3, para que possas avaliar por ti se o que digo faz sentido.

Série: Quadras Populares Sujeitas a Tema - 18) Meio Caminho Andado.

 

Meio Caminho Andado I

 

Meio caminho é, pela estrada,

Não sofrer, antes sorrir,

É saúde encomendada

Doença levada a rir.

 

Meio Caminho Andado II

 

Sem saúde, paz, dinheiro,

Não se chega a nenhum lado,

Procura rir tu primeiro,

É meio caminho andado

 

Meio Caminho Andado III

 

É meio caminho andado

Pelos azares da vida,

Manter o foco apertado

E rir de cada partida.

 

Gil Saraiva

 

Está na hora de terminar esta carta, minha querida Berta, com um beijo pleno de saudades regularmente enviado como os antecessores, por este que não te esquece,

Gil Saraiva

Carta à Berta: A Peça do Chinês - Parte III - Nova Viagem, Nova Estadia...

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Olá Berta,

Hoje, vou continuar a contar-te a minha história sobre a peça do chinês. É uma descrição, minha querida amiga, que requer ainda uma boa caminhada até ao final, no episódio 6, e este é apenas o terceiro. Contudo, julgo que não darás o tempo de leitura por mal empregue.

Esta terceira parte da peça do chinês, fala de uma nova viagem, nova estadia… um pouco mais para a frente entenderás o título. Para já, vamos ao mote deste momento único: morfina, morfina, morfina e mais morfina. Qual janado, apaixonado por uma nova droga, dei comigo na firme disposição de trair, sem o menor dos embaraços, a minha velha, boa amiga e companheira, Nicotina. A traição, um ato que sempre repudiei por achá-lo característico de pessoas estilo Donald Trump, Andrés Aventureiros, Carlos Alexandrinos e dos consumidores genéricos de metadona, aparecia no meu horizonte como algo natural, lógico e até desejado.

A nova paixão, essa deliciosa, refinada e recém-chegada Morfina, tornava não só o meu quotidiano mais fácil de suportar, como me ajudava a ter esperança num futuro sobre o qual ainda não possuía qualquer vislumbre. A nova droga transformava o tempo ao meu redor. Com ela, as dores pareciam paisagens no horizonte e a realidade era como um filme, onde os dias se passavam apenas em horas.

Sabes, minha amiga, como ficamos no inverno, depois de estar umas horas ao computador, com a mão no rato? Pois é, gelam-nos os dedos primeiro e depois toda a mão. Porém, eu interrogo-me se aconteceria o mesmo se em vez de um rato o aparelho tivesse uma rata, que te parece? Por certo a mão estaria bem mais quente e seria um prazer deslizar os dedos por ali. Ora, nesta coisa de me tirar as dores o rato aparece representado pelo famigerado Nolotil, enquanto a rata se chamaria, sem qualquer dúvida, Morfina.

Contudo, o namoro foi breve. A rata, quero eu dizer a morfina, ficou confinada e diluída na solução analgésica intravenosa durante cerca de 3 dias, sumariamente à espera da reação provocada pela atuação de outros fármacos, sendo ela, mal a coisa se tornou viável, arrancada de meus braços pelos carinhosos, mas vigilantes, responsáveis pelo meu estado de saúde. Não me queriam ver viciado na rata, digo, morfina, e esta é muito dada a criar dependência.

No quinto dia (relembro-te, Berta, que esse tempo me pareceu durar apenas algumas horas), ainda sob o efeito da minha nova paixão, mas a vê-la desvanecer-se na bruma hospitalar, fui informado que o meu problema era de cálculo. Estranhei a informação. Como poderia eu ter errado no cálculo se eu não fazia contas há dias? Não, não era nada disso. Eu estava a confundir as coisas, ainda por culpa dos efeitos secundários da droga administrada. Rapidamente voltaria a entender tudo de novo, diziam.

Aliás, um cirurgião com quem troquei algumas palavras, durante uns poucos instantes de lucidez, achara imensa graça ao meu comparativo do Nolotil e da Morfina com o rato e a rata, principalmente, pelo ar carrancudo da enfermeira que o acompanhava. Todavia, dizia-me que essa criatividade se iria dissipando à medida que a droga desaparecesse do sistema.

Por fim, com a paciência dos sábios, e usando uma linguagem que o meu cérebro meio perturbado pudesse entender, lá me informaram que um calhau, que tinha residido clandestinamente na minha vesícula, uma espécie de tonel devidamente preparado para lidar com a bílis, tal como os toneis lidam com o vinho, junto à adega, que neste caso era o meu fígado, tinha sido desmascarado e, consequentemente, posto de imediato em fuga, talvez com receio que eu lhe cobrasse renda ou solicitasse uma musculada ação de despejo.

Porém, na pressa de fugir, o meliante acabara por ficar retido numa viela, à qual o meu douto sábio cirurgião chamou de canal biliar. Em resumo, no meu entender, o velhaco calhau, disfarçado de gôndola que desliza por um canal em Veneza, tentou esquivar-se, sem ter reparado que a sua estadia o engordara ao ponto de ele nunca se conseguir fazer passar por um barco veneziano, mas sim, tomar a forma de um paquete turístico transatlântico. A consequência óbvia foi ter encalhado, nas águas pouco profundas, no meu canal biliar.

Soube mais tarde que a descoberta do vadio paquete se ficou a dever a um jovem médico, que decidira não abandonar o seu turno, terminado há algum tempo, sem pôr em pratos limpos o que era aquilo, que só ele julgava estar a ver e que lhe parecia ser efetivamente uma sombra. Uma sombra que poderia estar a ocultar algo mais, tipo o meu famigerado transatlântico. A sua observação aos resultados das diferentes ecografias, que mandara repetir por 3 vezes, contrariava a palpação e a douta opinião do experiente cirurgião de serviço e chefe da equipa da urgência, que nada sentira.

Contudo, à chegada da terceira ecografia, finalmente, o calhau, a pedra, o paquete transatlântico, foi localizado. Estava encravado ou, na linguagem marítima, encalhado, e sem hipóteses de fuga, num recanto do tal canal, ou seja, no canal biliar, que nada tem a ver com O Tal Canal, protagonizado na RTP pelo comediante Herman José, que para aqui não é chamado e cuja alusão parece referir um outro canal não só mais desejado, como também absolutamente feminino.

Em resumo, depois de 2 dias e meio de fuga, ficou claro que se impunha uma intervenção para remover o patife obstrutor da propriedade alheia, esse paquete de trazer por casa, que me levara, sem aviso prévio, a conhecer paragens localizadas muito para além dos quintos do inferno, algures em terras de Dante.

Não só já não ia ser recambiado para casa, sem sequer levar comigo um diagnóstico conclusivo, como defendera primeiramente o chefe da equipa, como teria de ser intervencionado, tipo campo agrícola, depois da passagem revolucionária da reforma agrária. Tudo isto porque, um abençoado jovem médico, daqueles teimosos e obstinados, jejuou, nadou contra a corrente e resolveu bater o pé, qual prova de triatlo original, na senda da sua nobre demanda de descobrir que raio de coisa era aquela que ele achava ser, na melhor das hipóteses, uma sombra.

Dizem que a sorte protege os audazes. Acredito que sim, contudo, também me protegeu, numa altura em que a diferença entre mim e uma múmia paralítica era apenas a dos meus gemidos de dor, sem ter sequer a consciência de estar a gemer. Portanto, o ditado devia ser alterado para esta situação bem mais abrangente, talvez para: a sorte protege os audazes e as múmias paralíticas.

Tive de esperar pelo fim de quarta-feira e o início de quinta-feira para ser transferido, definitivamente, para os serviços de gastroenterologia do hospital que guarda a memória do nosso Nobel da Medicina, na forma referenciada e clara do uso do mesmo nome. Estou a falar da minha transferência, não confundir com trasladação, até porque continuava vivo e bem vivo, para o Hospital Egas Moniz. A decisão da minha mudança de instalações fora tomada logo após a descoberta da obstrução do canal biliar e era definitiva.

Por mim aguardava essa nova viagem e nova estadia num outro lugar, num outro hospital, já devidamente diagnosticado e pronto para uma intervenção que colocaria um ponto final nas minhas mágoas e sofrimento. Mas, como em tudo na vida, cada coisa tem sua hora, o seu momento, porque tudo tem um tempo certo para ocorrer. Não vale a pena ter pressa em demasia porque, por mais que se deseje o inverso, as coisas só acontecem no tempo certo, quando, efetivamente, têm de acontecer.

No meu caso, seria uma nova viagem a efetuar, mas só quando vagasse uma cama no terceiro piso do Egas Moniz, onde estavam localizados os respetivos serviços, que interessavam à minha situação, nesta instituição. Pondo a coisa de outra forma eu só tinha 3 hipóteses para ser transferido para o local da minha nova estadia.

No primeiro caso, era se um dos pacientes do terceiro piso dos serviços de gastroenterologia morresse e eu fosse ocupar o lugar do morto, o que seria algo como me ficar destinada a cama fúnebre, a segunda situação era um paciente descobrir que ia ser operado por um seguidor do criador de Frankenstein e pôr-se em fuga do hospital indo eu ocupar o leito do apressado fugitivo, a terceira probabilidade era a de alguém ter alta hospitalar e eu receber a cama que vagasse por essa auspiciosa saída. Não existia uma quarta hipótese, nem qualquer outra alternativa para que a transferência tivesse lugar.

Vale a pena referir, que graças às “troikices” de Passos Coelho e ao desinvestimento e cativações de Centeno, já na sua mágica cadeira ministerial de guardião financeiro do pecúlio do povo português, os serviços do Hospital Egas Moniz estavam assoberbados de pacientes e carentes de recursos. Algo que nos 3 anos seguintes se tornaria no calvário de quem fosse caindo nas garras forçadas e afiadas do Serviço Nacional de Saúde, vulgo SNS.

Porém, mais uma vez, a sorte protegeu a múmia paralítica, ou seja, eu. Lá fui, uma vez mais, de ambulância, acompanhado ainda e sempre pelos prestáveis bombeiros, para a minha nova estadia, a cama 316 do Hospital Egas Moniz, acabada de vagar por um paciente que tivera alta ao meu quinto dia de Hospital São Francisco Xavier.

Importa esclarecer que muitos destes meus relatos não foram vividos diretamente por mim, embora eu estivesse presente em todos eles. Foram-me transmitidos por quem também os acompanhou, ou a minha amiga que se provou incansável em toda a saga, ou os bombeiros, os auxiliares, os enfermeiros e os médicos que, nos meus períodos muito curtos de lucidez, me foram inteirando dos diferentes factos e situações.

Só já na nova estadia, a tal cama 316 do Egas Moniz, é que o efeito da morfina passou por completo e eu regressei, qual migrante contrariado, à realidade e ao presente abandonando a bruma onde fora Senhor por alguns dias.

Sempre me lembrarei desse tempo de Senhor da Bruma, sem qualquer noção de existir, absolutamente irresponsável pelos meus atos, entregue a uma amante chamada de Morfina, mas que, para mim, fundia Vénus e Minerva numa só entidade mítica e maravilhosa. Iria ter saudades, minha querida amiga Berta.

Foi no dia seguinte que, pela primeira vez, me falaram da Peça, sim, a do Chinês. Contudo, amiguinha, isso fica para a quarta parte da nossa curta novela. Despeço-me com um beijo de saudades, este teu amigo de sempre,

Gil Saraiva

Carta à Berta: A Peça do Chinês - Parte I - O Antes...

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Olá Berta,

Vou-te contar nas próximas cartas uma história da minha vida, em 6 episódios, que poderia ter corrido mal, mas que acabou por terminar, finalmente, no início destes anos 20, ou seja, hoje, para ser exato. Tudo começou há 3 anos, um mês e alguns dias atrás.

Corria a véspera dos idos de dezembro de 2016, segundo o antigo calendário romano, pelas 20 horas, mais coisa, menos coisa, e eu, sentado placidamente no sofá, fazia o balanço dos últimos dias.

Iria no dia seguinte à cirurgia plástica na Clínica Ibérico Nogueira (numa visita quase de rotina, para remover uma dúzia e meia de pontos do rosto junto aos glóbulos oculares, fruto duma intervenção efetuada cinco dias antes, onde me livrara de três monstruosos quistos, que me desfiguravam o fácies e que ameaçavam seriamente um dos meus nervos óticos).

Sorri, lá pelo facto de me julgar poeta não me estava a ver de pala no olho, qual Camões dos tempos modernos, menos inspirado talvez, mas igualmente convicto de possuir alguma sensibilidade no que ao dom da escrita diz respeito, não só na prosa como na vertente lírica.

O médico, de quem a clínica herdara o nome, tinha sido supereficiente, o que abonava a favor da fama que dele se apregoa no meio, mas, mais ainda, a favor da minha amiga que, simpaticamente, mo tinha indicado.

Enfim, aos 55 anos não me podia queixar em demasia. Já tinha passado por alguns episódios de saúde menos felizes, mas saíra sempre deles airosamente e sem grandes consequências para o futuro.

Olhei para o relógio, à direita do sofá, e dei-me conta que era tempo de tratar dos "comes". Seria um jantar frugal, uma coisa simples, pois, apesar da hora, a fome não abundava nessa segunda-feira calma e pachorrenta. Contudo, estava na hora de comer.

Elevei-me da preguiça com algum esforço e avancei para a cozinha, decidido a iniciar as tarefas a que me tinha proposto, ia provido de alguma alegria, o que a princípio pode parecer estranho, mas que é bem verdade, principalmente pelo facto de eu ser daquele tipo de homens que adora cozinhar.

Por favor, Berta, não me confundas com os que, aqui ou ali, de vez em quando, fazem um petisco ou outro. Nada disso, eu sou mesmo daqueles que se pelam por criar novos e saborosos pratos, diariamente, e para muita gente se for preciso. Porquê? Não sei bem, mas acho que tem a ver com todo o processo de criação de uma boa refeição e com a expetativa de ver se os outros gostaram ou não do que acabei de produzir.

Quando ouvi o bater das 21 horas já eu ia nos "finalmentes" da preparação da janta. Uns bifinhos de frango, grelhados no carvão, que começara por fatiar, temperados com muito alho, picante, vinho branco corrente, algumas gotas de limão e uma mistura de ervas onde o manjericão e os coentros predominavam, acompanhados por umas batatinhas cozidas em água e sal, a ser regadas por um claro e fluído molho de manteiga.

Conforme podes confirmar, pela descrição que acabei de fazer, tratava-se de uma comidinha descomprometida, leve, mas de carne, porém, ao mesmo tempo, simples, para um jantar de início de semana. Eis senão quando o inesperado aconteceu…

Como esta é uma história longa, de 6 episódios, fico-me por aqui, no meio do suspense, e continuo amanhã. Tu, minha amiga, só não conheces os primeiros 5 capítulos porque, nessa altura, te encontravas fora de Lisboa, em serviço, segundo me recordo. Acho que ainda estiveste mais de um par de meses ausente, talvez 3, mas já não tenho certezas quanto a isso.

Sendo assim, despeço-me com um saudoso beijo, até ao segundo episódio desta história, que nunca me lembraria de inventar, mesmo que tivesse de escrever algo de parecido sobre o assunto. Por isso, Bertinha, aqui fica o meu até amanhã carinhoso, deste teu amigo de sempre,

Gil Saraiva

 

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