Carta à Berta: A Teoria do Amor - Parte III - Viagem Para o Paraíso
Olá Berta,
Desculpa ontem ter enviado 2 cartas, mas tive que desabafar. Há coisas que não devem ficar para o dia seguinte. Sei que não te importas destes pequenos abusos da minha parte, mas mesmo assim, por seres a amiga que és, acho que fica bem uma justificação.
Mando-te a terceira parte do poema que te tenho enviado aos poucos porque, ao fim ao cabo, são 4 poemas num só. Não quero que apanhes um enjoo de linguagem poética. Assim, aos poucos digeres melhor. Aqui vai:
"OS OUTROS - TRAGÉDIA EM QUATRO ATOS"
III
"VIAGEM PARA O PARAÍSO"
Perante os migrantes vindo do Oriente,
A Europa justa vai abrir os portões,
Dizem os líderes da União Europeia,
Criam cotas, repartem apoios, vão à televisão…
Mas a verdade esconde-se, abriga-se,
E o que se fala nada quer dizer, nem tem tradução;
Mas todos prometem intenções tão boas,
Numa teoria que jamais será Tese, Lei ou Saber.
Aceitam milhares, dizem os jornais,
Mas fazem-se muros, que é farpado o arame,
Entram meia dúzia, um pouco mais, mas de pouco não passa,
A custo, a medo, que a vergonha não esconde a cara…
Impera o cinismo, dizem que é cedo,
Mas para os migrantes o tempo parou,
E tentam entrar de qualquer maneira nessa Europa
Onde solidariedade se escreve a borracha,
Onde esperança é palavra oca que o vento varreu…
Por entre os milhares, fugidos da Síria curda,
Entre fome e sangue, entre dor, pânico e sobrevivência,
Uma família que o lar perdeu na perdida Kobane,
Já na Turquia, procura uma forma de chegar à Grécia, a Kos,
Nem terra, nem ar, que apenas o mar é solução…
E ali, em Bodrum, a dois passos da Europa,
Um casal com dois filhos decide arriscar,
Um entre os milhares que já são milhões.
Da praia de Ali Hoca partem de barco feito borracha
Que apaga vidas…
Onde cabem dez viajam cinquenta,
E dá-se a tormenta, o naufrágio, mais um,
Sobrevive o pai, sucumbe a mãe e as duas crianças,
De três e cinco anos que a idade é tenra
Mas a morte não.
A viajem acaba, como começou, em calamidade,
Igual a tantas outras que a precederam,
E assim chegaram, todos ou quase, por fim, finalmente,
A um paraíso que não tem país.
Sabes, minha amiga, costumo dizer que a maior sorte que tive em toda a minha vida foi ter nascido em Portugal. Para esta gente que nasceu nestes lugares, para onde o inferno tem os portões abertos, sobreviver já é uma aventura. Quando penso nisso e nos meus problemas acho que reclamo de barriga cheia.
Deixo-te um beijo de despedida, com as saudades que imaginas deste teu velho amigo de sempre,
Gil Saraiva