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Alegadamente

Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente correto.

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Carta à Berta: O Regresso do Rei

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Olá Berta,

Uma boa tarde para ti, minha querida amiga. Espero que, quando receberes esta carta, te encontres bem e a aproveitar essas férias maravilhosas. Eu continuo na mesma, uns dias estou fino outros menos bem. Enquanto não conseguir ser operado à vesícula vai ser assim, quer queira quer não.

Não sei o que faria se não tivesse alguém com quem desabafar. Isto de se guardar tudo cá dentro deve entupir muitos canais, certamente. Falo assim, porque me sinto sempre muito mais aliviado e tranquilo depois de te escrever, amiguinha. Melhor ainda quando recebo as tuas respostas, que muito agradeço.

Hoje, vim propositadamente para te falar de nós, enquanto povo, pois somos realmente uma gente de brandos costumes. Depois de vivermos mais de um século numa república laica e tolerante, cujo aniversário será dos 110 anos será já a 2 de outubro próximo, continuamos a ter o herdeiro ao trono luso a aparecer na nossa imprensa floreada e a ter um tratamento diferenciado por ser quem é, mas também recebemos de braços abertos o Rei Emérito da vizinha Espanha.

Juan Carlos regressou a Cascais onde se exilou, de livre vontade, segundo dizem as letras gordas de alguns jornais cá do nosso burgo e até aplaudo a ausência  de burburinho.

Longe vai o tempo em que os espanhóis eram nossos rivais e mesmo inimigos. Longe vão os conflitos da independência nacional, da guerrilha na conquista marítima e da subjugação aos 60 anos dos Filipes de Espanha. Aceitamos tudo para que não nos chateiem. Aceitámos deixar Ceuta, Olivença, até mesmo a Galiza sobre o domínio espanhol, entre outros territórios, só para não termos de nos incomodar mais do que a conta. Como aceitamos hoje o regresso do velho monarca às suas terras em Cascais. Tudo na maior calma e passividade.

Estou certo que muito brevemente, se é que ainda não aconteceu, o monarca, sua majestade emérita, terá a visita do seu amigo Francisco Pinto Balsemão. Porque a camaradagem e os laços da juventude não desaparecem com a idade. Se forem genuínos até se fortalecem. Hoje, ambos com 82 anos, devem ter muito que recordar sobre tempos idos e sobre as aventuras conjuntas de tempos passados, daqueles que já lá vão.

Minha cara amiga Berta, sabes… eu gosto mesmo deste nosso país à beira mar plantado, que não apenas arde com os fogos do verão, mas que arde no coração de um povo que gosta de receber, de rir e de amar. Somos um povo de brandos costumes, espero que assim continuemos a sê-lo, independentemente de tantos problemas que nos rodeiam e cercam, tentando minar a nossa paciência.

Com este voto me despeço, cara amiga, amanhã cá estarei de novo para o desabafo do dia. Recebe um beijo deste que sempre pensa em ti,

Gil Saraiva

 

 

 

Carta à Berta: Parada's Garden: The Return Of The Yodas Concil - Part I /III

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Olá Berta,

Este domingo passado fui obrigado a sair do casulo onde tenho estado confinado desde que o ano teve início, pois tive de ir à farmácia por falta de um comprimido de toma diária e obrigatória. Foi esta saída que me levou a escrever a carta de hoje a qual intitulei de:

“Parada’s Garden – The Return Of The Yodas  Council - Part I/III”

O confinamento foi devido primeiro por um problema de saúde e depois por eu fazer parte de 2 ou 3 dos chamados grupos de risco. Em 5 meses e pouco esta foi a quarta ou quinta vez que tive de sair de casa.

À exceção da minha saída voluntária, para ir à reabertura do restaurante Verde Gaio, também ele localizado na minha rua, a Francisco Metrass, todas as outras foram por obrigações ligadas com o meu estado de saúde. Idas ao médico, consultas de controle e farmácia. Enfim, querida Berta, saí apenas e quase para o absolutamente necessário e imperativo.

Claro que a ida ao Verde Gaio, a 19 de maio, foi exclusivamente um imperativo da minha cabeça de confinado. Mas não deixou de ser um imperativo. Já fui até ao momento, testado, por 2 vezes, à Covid-19, e continuo tão negativo como antes da pandemia. Embora esta negatividade seja uma daquelas em que o sinal de menos é algo de positivo, não estava preparado para o cenário a que assisti ontem nas ruas do bairro. Tive a noite para pensar no assunto e mesmo assim não consegui descobrir o que poderia aconselhar à minha vizinhança.

Acompanhado pela música de um ciclista, muito conhecido de todos os residentes, que se passeia de bicicleta pelo bairro, em circuitos previamente determinados por um raciocínio que desconheço, engalanado com a bandeira do Benfica e com um rádio e gravador quase no máximo, a pimpar por onde passa, pude conferir o comportamento dos meus irmãos de bairro, nesse dia solarengo, de 7 de junho. Embora o ser domingo tivesse ajudado, a quantidade de gente que vi na rua, não me pareceu conjugada com a existência de um Estado de Calamidade.

Os cafés e as pastelarias, criaram verdadeiros salões de baile dentro dos seus espaços, sendo os únicos locais onde me apercebi haver realmente algumas medidas ligadas ao momento e às restrições. “O Meu Café”, o “Trigo da Aldeia” e o “Az de Comer” são 3 bons exemplos disso.

Quanto ao Jardim da Parada o desrespeito pela pandemia não tem descrição razoável que se possa fazer (eu dei uma volta maior do que o que realmente precisava para ver como as coisas corriam). A Hamburgueria da Parada esticou-se jardim fora, qual polvo que alarga os seus tentáculos gulosos, em vez de apenas reduzir o número de mesas. Os bancos, todos com as fitas vermelhas e brancas de proibição de uso, estavam salpicados de idosos a descansar as pernas e a ver o ambiente. O uso de máscara pareceu-me ter sido esquecido, porque deu para contar com as mãos, quantas pessoas as estavam a usar.

Contudo, o que mais me afligiu, minha amiga, embora não faça ideia como é que este espaço esteve no resto do domingo, foi ver a quantidade de séniores a encher, por completo, as 4 mesas de jogo do jardim, fixas ao chão, como sempre, a dizer que dali não vão a lugar nenhum, rodeadas de mais duas (ou mais) dezenas de gente de risco a assistir em pé, bem perto dos 16 jogadores sentados, ao decorrer das partidas. Perfeitamente indescritível.

Este perigoso, aflitivo, dramático e irresponsável ajuntamento de séniores, mais parecia saído da Saga da Guerra das Estrelas, onde o episódio anunciaria em título “Parada’s Garden – The Return Of The Yodas  Council - Part I/III”, em português seria algo como: “Jardim da Parada – O Regresso do Concílio dos Yodas - Parte I/III”.

Regressei a casa a pensar que assim, dificilmente, os números de infetados poderão vir a baixar em Lisboa. Se o que vi for realmente uma amostra do que se passa no resto da zona da Grande Lisboa e Vale do Tejo, então, sem dúvida, estão explicados os números e o aumento dos casos registados. Todavia, como sou fulano positivo, acalento ainda a esperança de que tudo isto tenha sido apenas um desabafo domingueiro e que esta segunda-feira todos voltem à normalidade cuidadosa que os tempos exigem.

Despeço-me com um beijo, este teu amigo do peito, com quem sempre podes contar,

Gil Saraiva

 

 

Carta à Berta nº. 222: Maddie, o Regresso - 13 Anos Depois...

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Olá Berta,

Neste regresso ao calor que parece definitivo assistimos ao anunciar da volta à ribalta de uma velha saga mediática. Hoje em dia já são poucas as coisas que me espantam, porém, não esperava por isto:

O Caso de Madeleine McCann

Não sei se tens visto as notícias da TVI. Uma das últimas revela drasticamente que a polícia identificou um alemão como suspeito formal pelo rapto e morte de Maddie McCann. Esta é a primeira grande surpresa do furo televisivo. Todavia, quando o jornalista identifica a polícia em causa, aparece a segunda surpresa da notícia. Não se trata propriamente de uma identificação exclusiva de uma só força da ordem. A alegada descoberta, minha amiga, é anunciada como proveniente de uma task-force internacional, composta pela nossa brilhante Polícia Judiciária, pelo Departamento Polícia Criminal Alemã e pela “Metropolitan Police of London”.

Pelo que nos é contado, o caso de Madeleine McCann, tem sido investigado e articulado em absoluto segredo nos últimos anos por estas forças policiais. O método silencioso foi tão eficaz que nem o Correio da Manhã o descobriu. Uma surpresa quase tão grande como as 2 anteriores, não achas Berta?. O apontar o dedo, de forma firme e acusatória a um suspeito, que será formalmente acusado do rapto e homicídio de Maddie, parece querer indicar que a criança inglesa, que à data, em 2007, tinha apenas 3 anos de idade, vai ter, finalmente, direito a justiça.

O caso, mundialmente mediatizado e que fez correr imensa tinta na época e no decurso de todos estes anos, pelo que se passou no remoto mês de maio, no concelho de Lagos, na Praia da Luz, há 13 anos, recentemente feitos e celebrados, anuncia poder chegar, por fim, a um verdadeiro culpado e assassino.

Este homem ou esta alegada besta demoníaca, como eu lhe chamaria se escrevesse a notícia para a TVI, é, ao que parece, um cidadão alemão, de 43 anos de idade, que se encontra atualmente preso no seu país de origem. Segundo a informação da TVI, cara Berta, trata-se de um predador sexual, com uma grande história no infeliz capítulo da predação sexual abominável.

A pena de prisão que cumpre na atualidade é devida a outro caso. Desta vez tratou-se comprovadamente da violação de uma mulher. No entanto, parece haver provas que o sujeito viveu no Algarve entre os seus 18 e 30 anos, o que significa entre 1995 e 2007, assim como todos os indícios recolhidos indicam que se encontrava na Praia da Luz, por altura do desaparecimento de Maddie.

Segundo o jornalista, que divulgou a notícia no Jornal das 8 na TVI, minha querida amiga, há provas, recolhidas nos últimos meses, que o colocam como presumível autor dos crimes de rapto e homicídio de Maddie. Quanto ao móbil do crime, desta criança de tão tenra idade a passar férias no Algarve entre pais e amigos da família, apontam ao que parece, exclusivamente, para motivações de natureza sexualmente predatória. O jornalista da TVI também adiantou que, na sequência de todas estas informações, o casal McCann já foi devidamente informado pelos serviços da polícia inglesa.

Contudo, Berta, relembro que, apesar das suspeitas formais que recaem sobre este cidadão alemão, o mesmo já aconteceu, pelo menos, a mais 4 pessoas, ao longo destes 13 longos anos de investigação, e sobre as quais recaiu, sucessivamente, o estatuto de arguido no processo, incluindo os próprios progenitores de Madeleine. Em resumo tem sempre existido muita parra, mas sempre pouca uva, no que a esta investigação diz respeito.

Se já não tens bem presente o caso, querida amiga, encontras na internet várias descrições exaustivas relativas a estes acontecimentos, havendo até, inclusivamente, um grande artigo na Wikipédia. Não é para admirar tanta informação, a correr por aí, uma vez que continua a existir uma recompensa de, pelo menos, 2 milhões e 940 mil euros, pela descoberta do raptor e possível assassino.

A divulgação da investigação nesta altura, prende-se com o objetivo de solicitar, a quem se encontrava na Praia da Luz à data dos acontecimentos, o favor de reverem as fotografias da época, para que confiram se, em alguma delas, encontram imagens de 2 viaturas, pertencentes ao individuo agora apontado como possível raptor e assassino. Quanto às viaturas eram: uma carrinha Volkswagen, modelo t3, de cor branca e amarela e um Jaguar XJR dos anos 90 de cor escura.

Para além de tudo isto, minha querida amiga, eu continuo cético quanto à prova de que este alegado novo suspeito seja o verdadeiro culpado. Mais cético ainda que a prova possa ou consiga ser produzida. Afinal, se a investigação já fosse totalmente consistente, já teriam divulgado o nome e o rosto do individuo, coisa que continua omissa em todos os comunicados feitos à imprensa até hoje.

É triste que assim seja, mas parece-me bem mais realista pensar que isto não se resolverá, do que engolir esta nova “História da Carochinha”, mais uma vez sem um fim à vista e carente de provas claras, para que o suspeito possa ser acusado e julgado. Despeço-me minha querida amiga com um beijo doce, este com quem sempre podes contar,

Gil Saraiva

 

 

Carta à Berta: O Regresso do Fantasma de Passos Coelho

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Olá Berta,

Como já deves ter visto nas notícias, morreu, devido ao problema oncológico, que a afetava desde 2015, Laura Maria Garcês Ferreira, a esposa de Pedro Manuel Mamede Passos Coelho. O facto não seria notícia se a senhora em causa não fosse a mulher do ex-presidente do PSP e ex-primeiro-ministro, Passos Coelho. Com o seu falecimento o regresso do político, ainda com 55 anos, às lides partidárias, deixará, algures após um período de nojo natural, de ser apenas uma ameaça fantasma para Rui Rio.

Pelas minhas contas esse regresso ocorrerá no final do próximo verão, após as férias dos políticos em agosto. Até lá, Passos Coelho, respeitará uns dignos 6 meses de luto enquanto, sem dar muito nas vistas, recupera, junto do partido e no seu seio, o capital político de que precisa para se voltar a afirmar.

No meu entender, Laura Ferreira era o único e verdadeiro travão que mantinha o ex-primeiro-ministro longe da luta política. Uma doença da gravidade da identificada à esposa, e o seu agravamento progressivo, terá funcionado como freio, mantendo Passos longe do circuito da luta pelo poder. Uma vez desaparecido o impedimento o que poderá deter agora este homem de avançar com as suas convictas ambições? Eu respondo-te, minha querida amiga, absolutamente nada.

Passos Coelho está, na linha de partida da corrida ao poder, prontíssimo. Conforme já referi, é claro que os 6 meses de recato se vão respeitar, por 2 motivos: primeiro, porque o eleitorado conservador veria com maus olhos um regresso logo após o falecimento da consorte, segundo, porque o calendário da luta política apenas se começa a tornar favorável a partir de setembro ou outubro próximos. Aliás, sendo 2021 um ano de eleições, com umas presidenciais logo em janeiro e as autárquicas por volta de outubro, o regresso de Pedro Passos Coelho terá tudo a ver com a proximidade dessas datas.

Quanto a mim, acontecerá logo em setembro, porque algures em outubro, ainda este ano, decorrerão as eleições legislativas referentes aos Açores. Um excelente ponto de partida para alguém que se quer reposicionar no xadrez político e partidário. Para quem pensa que estou a fazer uma mera futurologia política, embora admita que assim pode parecer, respondo com o facto de tudo se poder vir a esclarecer já daqui a 6 parcos meses.

Para além de Rui Rio existe mais um político preocupado, com o regresso do filho pródigo e com o renascer desta fénix da austeridade gratuita. Com efeito, o ressurgir político de Passos faz mossa nos seguidores de Ventura. A direita passará a ter, novamente, um protagonista de peso, que poderá abalar os planos de expansão de um Chega para quem um deputado não basta.

Muita água vai correr debaixo da ponte da direita política e será interessante ver que tipo de estratégias seguirão estes partidos. De qualquer maneira, desperto que fique o fantasma de Passos e logo após a sua genuína materialização, uma reorganização à direita parece ganhar força. A Iniciativa Liberal provavelmente vai diluir-se em pouco mais do que nada, o partido de Santana Lopes vai fazer um esforço enorme por ter o raio do anel a reluzir e já estou a ver um tal de Chicão, em bicos de pés, a gritar do meio da sala, das futuras alianças, “- Então e eu, ó Passos, então e eu?”

Por outro lado, lá para as bandas socialistas, a preocupação não existe no que concerne aos próximos 2 anos. Até porque as movimentações dos partidos à sua direita, antes de crescerem podem até ficar mais enfraquecidas. A grande preocupação do PS existirá, isso sim, nas próximas legislativas, porém, até lá, faltam quase 4 anos, e enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

Com isto termino, amiga Berta, veremos se esta carta se transformará numas meras páginas de ficção ou se, pelo contrário, se aproximará de um Oráculo por devir. Despeço-me com um beijo. Este teu eterno amigo,

Gil Saraiva

 

Carta à Berta: A Peça do Chinês - Parte VI- O Depois...

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Olá Berta,

Cá estou eu para terminar a novela da peça do chinês. Pese embora o principal já ter sido dito, falta relatar-te como tudo ficou concluído. Até porque já foi este ano de 2020, que a história finalmente chegou ao fim.

Depois da saída do hospital e apenas o ano passado, já tive outros episódios e chatices, mas que nada tiveram a ver com a narrativa da pedra na vesícula. No caso do último ano foram 9 AVC que me abalaram um pouco, mas que ficaram controlados um pouco depois do verão, sem terem causado grandes danos irreversíveis. Apenas um dedo da mão esquerda se mantém permanentemente dormente. O que é uma gota de água no vasto oceano de chatices que me podiam ter acontecido.

Só que desta vez recorri aos serviços da CUF, porque um seguro de saúde, que mantenho já há uns anos, me permitiu aceder, sem custos demasiado elevados a esse hospital. Tive sorte, não me descobriram a origem dos AVC, mas pelo menos, conseguiram controlá-los. Vistas bem as coisas já não foi nada mau.

Mas, voltando à vaca fria, é hora de escrever sobre a conclusão. Embora todo o problema tenha levado um pouco mais de 3 anos para ficar concluído, não teve o final esperado. Vamos à parte VI, da minha aventura, em torno da peça do chinês, com o epílogo a que chamei: o depois…

No meu regresso ao hospital, para ir buscar os exames e análises que não me tinham sido entregues, passados quase 4 meses, aproveitando o facto de o Bonifácio estar de regresso, devido a mais uma crise, acabei por visitar, por mera coincidência, a mesma enfermaria onde estivera internado.

Um novo paciente, que agora ocupava a cama onde eu estivera quando fora internado, acabou por se meter na conversa entre mim e o meu amigo. Parecia um sujeito um pouco amargo e de mal com a vida. Uma daquelas pessoas que, amiga Berta, nunca está satisfeita com tudo o que lhe calhou ou, pior ainda, que foi escolhendo ao longo do seu próprio percurso. O facto de estar mais falador devia-se, disso tenho absoluta certeza, à disposição alegre e contagiante do Bonifácio. O homem consegue fazer uma pedra sorrir.

Depois de um curto preâmbulo, após ter percebido que eu estivera ali, devido a um problema de pedra no canal biliar, para fazer uma CPRE, é que a sua expressão ganhou mais vida e vontade de interagir connosco. Por fim, lá me informou que o pai tinha morrido em 2005, devido a uma CPRE. Ele e a família até tinham posto o hospital em tribunal e, só não tinham ganho, porque aquela malta está toda feita uns com os outros. Era uma vergonha. Então não tinham decidido operar o pai sem consultarem a família? Tinham mesmo e trataram-no à balda, relatava revoltado.

O Bonifácio que já devia ter escutado aquela história, pelo menos umas 3 ou 4 vezes, ainda perguntou, com jeito, se o pai tinha autorizado ou não a operação. Tinha sim, respondia o outro, mas o homem estava velho demais para poder decidir, afinal estava quase nos 80 anos. Podia até estar lúcido, mas já não era admissível que tomasse uma posição daquelas sozinho.

O paciente insistia no tema. Mas não fora por causa disso que o tribunal não dera razão aos familiares? Fora, fora sim, mas o juiz estava era comprado. Pois eles tinham conseguido provar que o pai não sabia os riscos que corria e, mesmo assim, não tinha sido feita justiça. Não se podia mandar um homem daquela idade, assim sem mais nem menos, para uma intervenção delicada daquela envergadura, com anestesia geral e quase 2 horas de operação, sem lhe serem descritos os riscos inerentes a um tal procedimento, que ainda por cima era extremamente delicado.

Dizia ele que 10 por cento das intervenções com o CPRE derivavam para pancreatite aguda e em morte do paciente. Mas havia muitos mais problemas associados, como septicémias, perfurações, inflamações diversas, o homem não se calava, a coisa era grave e, segundo ele, apenas metade dos intervencionados passava pelo processo, sem riscos ou complicações de maior. A investigação do advogado concluíra que, se as consequências do pós-operatório fossem atribuídas à CPRE as mortes aumentariam mais 30 por cento.

Não acabara ele de me ouvir contar que o hospital se tinha esquecido de avaliar o meu estado, depois da CPRE, e que passara 4 meses com uma crise de fígado, provocada por falta de tratamento ao contraste, que me tinha sido administrado na operação? Confirmei, uma vez mais, que era verdade, mas acrescentei que talvez eu devesse ter ido mais cedo ao Egas Moniz, tentar descobrir o que é que se passava. A culpa do calvário de 4 meses era tanto minha como deles. Quem estava mal era eu.

Sim, sim advogava o sujeito, mas a culpa, o erro inicial, era do gastroenterologista que fora negligente. E se eu tivesse morrido? Sim, porque ele sabia de casos em que a reação ao contraste tinha provocado a morte do paciente. Eu devia era pôr o hospital em tribunal e pedir uma choruda indeminização. Isso mesmo, era o que aquela malta precisava para ver se aprendiam.

Afinal, não se brinca com a saúde das pessoas. Era verdade, confirmei eu a tentar conformar o revoltado individuo, contudo, eu nunca o faria, pelo simples facto de também eu ter sido descuidado e não ter ido saber porque é que me sentia tão mal. Mas não era alguém que se sente mal e que, ainda por cima, que está com receio de ter alguma coisa na vesícula ou no canal biliar, que tem de ser culpado por não ter agido. Eu era médico? Não era! A culpa era sempre do médico. Por causa das pessoas agirem como eu é que aquela malta ainda não tinha sido posta na ordem, afirmava.

Tendo falado isto, o homem concluiu que eu não era digno de perdão. Acabara de arranjar mais um culpado para a morte do pai, muitos anos depois do homem ter morrido. Eu! Bem, ou pessoas como eu, aquela gente que não faz queixa e não avança com as devidas ações para pôr fim às injustiças. Ainda a resmungar entre dentes, virou-se de costas e abandonou o diálogo connosco. E é assim, minha querida Berta, que uma pessoa se vê acusada de um crime que nem sabia ter existido. Está tudo na forma de raciocinar e naquilo que vai na cabeça de cada um.

Eu e o Bonifácio ainda ficámos na conversa mais uma boa meia hora e fomos juntos até ao snack-bar na saída do hospital. Nenhum de nós parecia na disposição de voltar a ouvir o revoltado paciente que à data ocupava a minha antiga cama, o que poderia muito bem voltar a acontecer se, no entretanto ele fizesse mais algum raciocínio distorcido como os anteriores. Foi engraçado rever aquele local, sem cadeira de rodas, e poder fumar um cigarro a um nível bem mais elevado do que sentado.

Para além disso, eu fiquei aliviado por me ver fora de um sítio que me fazia suar frio e que me causava náuseas e tonturas. Ele tomou um chá, feito com uma erva qualquer que forneceu à paisagem que nos atendeu ao balcão e eu bebi uma cola fresca. Estávamos ambos aliviados de nos termos livrado do queixoso paciente do terceiro piso. Finalmente despedimo-nos e eu regressei a casa.

Durante os seguintes 2 anos e oito meses e pouco, recebi mais umas 4 marcações para terminar a intervenção que ficara por concluir e também, pelo mesmo número de vezes, a mesma foi cancelada por, sem qualquer surpresa, nova avaria na peça do chinês. Só que, cada vez a avaria levava mais tempo a ser reparada, e cada vez também, a peça demorava mais a ser encomendada à China. Os cortes crescentes e bem pesados no Serviço Nacional de Saúde, asseguravam que assim tinha de ser e pouco havia a fazer em relação à situação.

Finalmente, no passado dia 3 de janeiro deste ano, 2020, recebi a tão aguardada chamada. A minha operação para remoção da vesícula e colocação do stent no canal biliar estava marcada para dali a 3 semanas. A médica que falava comigo informava-me que dificilmente se correria o risco de novo adiamento, porque o hospital optara, depois de um difícil consentimento da tutela, por mandar vir a peça, para o equipamento da CPRE, da Alemanha. A nova peça estava a funcionar em pleno, sem problemas há mais de um mês, pelo que achavam que a marcação era segura.

Já ia concordar quando algo despertou em mim um alarme. Tirar a vesícula? Mas eu não queria tirar a vesícula. Estava já há 3 anos sem problemas e, na época, nem se descobrira a origem da formação da pedra. O que eu tinha marcado era, apenas e só, a colocação do tubo, que ficara por pôr, devido à avaria do equipamento durante a minha CPRE.

Do outro lado fez-se silêncio por alguns segundos, a mim pareceram-me minutos, mas nestas situações o tempo é sempre mais psicológico do que real. Finalmente a voz da médica fez-se ouvir. Não, não, eu estava enganado. O que sempre estivera marcado fora a remoção da vesícula e a colocação do stent. Ela estava a consultar todas as marcações e respetivos adiamentos e era isso que constava na minha ficha.

Fui obrigado a contar que, após uma conversa com a cirurgiã, antes da minha intervenção, eu não tinha concordado com a remoção da mesma de forma preventiva, porque o hospital nem sequer conseguira concluir o que causara o aparecimento da pedra. Aliás, o médico concordara, embora tivesse insistido que já que iam ter de mexer podiam matar 2 coelhos numa só cajadada. Afinal, nada me garantia que não voltaria a ter outro calhau. Ao que eu rebatera que também nada me garantia que voltaria a acontecer, coisa com que ele concordara.

Portanto, concluía eu, ficou decidido, desde antes da CPRE que não haveria remoção de vesícula. Eu até podia ter toda a razão do mundo, informava-me a médica, mas não era isso que ali constava. Se eu não quisesse tirar a vesícula, 3 anos depois também já não fazia sentido colocarem o stent. Ficaria tudo anulado. Concordei e despedi-me da doutora.

Como vês minha querida amiga Berta, a peça do chinês andou comigo às voltas por 3 anos, para, quando finalmente foi trocada, me deixar de mãos a abanar sem concluir o procedimento começado. O depois, nunca é aquele que esperamos quando ainda estamos no antes. A vida é mesmo assim. Dá as voltas que entende, pelos caminhos que escolhe, e nós, apenas temos de conduzir com cuidado para evitarmos acidentes.

Despeço-me com um alegre até amanhã, acrescido de um beijo pleno de saudades, este teu amigo de sempre, que nunca te esquece,

Gil Saraiva

 

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