Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente
correto.
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Conforme te comuniquei ontem resolvi acrescentar mais uma carta sobre a saga do Malandro. Primeiro porque me falta falar ainda do Malandro mais conhecido por “A Grande Besta” e depois porque acho que o assunto necessita mesmo de um Epílogo.
“A Grande Besta” não é, em si mesma, mais uma categoria no mundo dos Malandros. Este homem tanto pode ser um “Criador de Esquemas”, um “Casanova”, um “Chico-Esperto”, um “Marginal de Trazer por Casa” ou um “Homem da Noite”, ou vários deles misturados, porém, o que o carateriza é a sua falta de jeito seja para o que for, por mais que tente e se esforce.
À “Grande Besta” falta tudo: esperteza, argúcia, inteligência, “savoir faire”, modos, subtileza, jeito, contactos, charme, discrição, enfim, tudo mesmo. Trata-se de alguém que achou que podia ser malandro, mas sem possuir a devida vocação. Normalmente, ao fim de algum tempo sem qualquer sucesso, desiste ou acaba por cair nas malhas do crime e do banditismo. É trapalhão, troca-tintas, abrutalhado e mesmo burro demais para possuir o elevado padrão de qualidade exigido a um Malandro que se preze. Daí os “clientes” usarem com ele, com bastante frequência, a expressão de minha “Grande Besta”, que efetivamente o carateriza, nesta que é uma carreira de exige “finesse”.
Há ainda que referir, minha querida amiga Berta, em modo de elogio final e de verdadeiro Epílogo, o Grande Malandro. Trata-se do verdadeiro Mestre na carreira. Ele consegue ser o “Criador de Esquemas”, o “Casanova”, o “Chico-Esperto”, o “Marginal de Trazer por Casa” ou o “Homem da Noite” simultaneamente. Conforme as circunstâncias assim ele age com a destreza e a agilidade de uma pantera negra. São muito raros estes mestres.
Todavia, aqui e ali, lá vamos indo ouvir falar de um ou outro que despontam por este mundo fora. Este é o Malandro dos livros policiais de Leslie Charteris, conhecido pelo nome de Simon Templer ou o Santo. Também aparece como o ladrão cavalheiro nas aventuras rocambolescas de Arsène Lupin, do escritor Maurice Leblanc.
Estes exemplos a que poderíamos acrescentar o espírito de Robin Wood, são a essência do Grão-Mestre da Malandragem, enfim, o Grande Malandro, rei e senhor entre todos os que trabalham na margem da lei, incluindo os malandros, malandrecos e afins.
E com estas anotações finais termino, amiga Berta, este Epílogo sobre a saga do Malandro, que pouco tem a ver com bandidos, corruptos, traficantes, assassinos e torturadores que invadem diariamente as notícias e os noticiários em todo o globo. Deixo um beijo saudoso, deste amigo teu,
Eu sei que hoje deveria chegar ao fim a minha saga sobre o Malandro. Afinal, é o sexto e último episódio da saga programada para ser contada em seis partes. Contudo, o entusiasmo divertido da minha escrita criativa fez-me escrever um pouco demais sobre cada personagem e, assim sendo, só amanhã terminarei estas narrativas sobre o Malandro, com o acrescento de um epílogo final.
O Malandro de hoje é “O Homem da Noite” um gato pardo que vive, sem ter qualquer vocação para vampiro, habitualmente depois do crepúsculo. Ele é o homem das sombras, do mistério, dos ambientes pouco iluminados. Discreto, bem parecido de figura, com tendência para usar roupas escuras ou fatos que não o destaquem em demasia no meio onde se insere.
O «bafon», o secretismo dos seus negócios e a sua procura eterna por não ser notado, dão-lhe o ar de personagem de livro ou filme policial, por onde se move como ninguém, oculto na penumbra e normalmente afastado de quaisquer tipos de holofotes.
“O Homem da Noite” é normalmente romântico, nos meios noturnos onde se encontram as felinas da escuridão e costuma ser muito popular no seio do sexo oposto. Aliás, as meninas são não apenas amigas, como, enquanto confidente e próximo, servem de fonte inesgotável de informações.
Este Malandro transaciona influências, dinheiros de origem duvidosa, contactos, informações, organiza eventos clandestinos, tem sempre um ou dois amigos na polícia local, nos tribunais e no ministério público. Conhece a vida noturna como ninguém e embora chegue com facilidade às atividades marginais perigosas, dos negócios noturnos, nunca se envolve neles profundamente. Prefere fazer pontes entre contactos, receber comissões pelos serviços prestados e não entrar demasiadamente na marginalidade que invade a noite e que por vezes se torna altamente criminosa ou até letal, o que contraria, evidentemente, a sua necessidade de absoluta discrição e de «low profile».
Como bom profissional é amigo de porteiros e seguranças de bares, discotecas e clubes privados para quem realiza pequenos favores sem qualquer cobrança, exatamente da mesma forma como o faz com rececionistas e outro pessoal da hotelaria existente no seu raio de ação.
Mas este “O Homem da Noite” tem uma variante mais exuberante e apimentada, que entra na personalidade dos gigolos e dos conquistadores de charme, onde o papel das damas ganha uma enorme relevância. O amante oculto e misterioso atrai o sexo feminino com a luz atrai as traças, tornando-o irresistível. Este, contudo, dava por si só muito que contar e possivelmente um capítulo próprio.
Contudo, e porque está na hora de me despedir, essas são contas de outro rosário. Deixo-te um beijo de até amanhã,
Neste que é hoje o quinto episódio do Malandro Luso é tempo de me referir ao «Marginal de Trazer por Casa». Este é um Malandro que pode ter cadastro. Nada de grave, alguns delitos menores, como ser apanhado a vender aos amigos algum material que caiu de um camião quando ele ia a passar, uma pequena lata com 10 cigarritos de haxixe a um hippie reformado e com artrite reumatoide ou até um bilhete para o próximo jogo de futebol no Estádio da Luz já com público nas bancadas.
Na verdade, o «Marginal de Trazer por Casa» é o típico desenrasca, para os amigos. É possível encontrá-lo em pequenos circuitos, seja na sociedade recreativa de um bairro ou aldeia, num pequeno clube desportivo que já viu melhores dias e onde hoje o que mais se pratica é o dominó e a sueca e até nas feiras e mercados que atravessam o país de uma ponta à outra. Contudo, para quem tenha conhecidos ou amigos junto da etnia cigana, não terá dificuldade em chegar a um destes artistas honrados que tentam sobreviver mesmo sobre o risco da lei.
Aliás, este tipo de Malandro é o herdeiro natural do antigo contrabandista de outros tempos e mantem a aura romântica de outrora ainda com alguma luz. Não se mete em grandes alhadas ou esquemas que o possam levar para o xadrez por demasiado tempo, mas não deixa de correr alguns riscos.
É, por assim dizer, um desenrasca com pinta de bandido o quanto baste. Se trouxer consigo uma arma ou não leva balas ou já nem funciona, apenas serve para manter o respeito, um certo mistério e a admiração do seu grupo de conhecidos e amigos.
A sua rede de contactos é admirável. Ele conhece o eletricista que aldraba os contadores de luz analógicos, o advogado que apenas cobra uma comissão nos casos em que há dinheiro envolvido, o talhante que vende bife do lombo ao preço do de peru, o gajo das apostas clandestinas, caso não seja ele próprio o negociador, a casa de penhores que aceita ouro e joias por fora sem perguntar a origem, o examinador da carta de condução que precisa de uns trocos extras para acabar a cozinha, porque a esposa lhe anda a massacrar a cabeça, o médico que coze uma facada de um meliante sem fazer perguntas ou que passa a receita “xpto” para a tiazinha que já não arranja outra forma de comprar o Victan.
Em resumo, o «Marginal de Trazer por Casa» é um desenrasca e conhece quem faça tudo o que ele diretamente não entrega pronto. É um pintas com pinta. Para além disso tem um peculiar, mas elevado, código de honra. É amigo do seu amigo e incapaz de fazer o papel de bufo seja lá do que for, independentemente da tentativa de coação que lhe tentarem aplicar. Por hoje é tudo, minha querida Berta, espero que te encontres bem, recebe um beijo de despedida do teu amigo sempre pronto,
A próxima personagem da minha coleção de tipos de Malandro, chega hoje ao «Chico-Esperto» nesta que é a quarta parte da narrativa, que te envio com gosto por saber que te tem agradado.
Ora, o herói de hoje é um sujeito com uma capacidade de adaptação acima da média. Sendo igualmente um ás do oportunismo imediato. Não planeia a longo prazo, nem tem paciência para criar armadilhas. Nada disso. Ele é o rei do momento, da ocasião e da conjuntura.
Se os ventos estiverem a seu favor, ele apresenta-se com o seu arrogante ar de sabidão, normalmente agreste, superior e deliberativo como se tivesse o rei na barriga e certo de que a sua opinião é a mais válida.
Ao contrário do «Criador de Esquemas» e do «Casanova», este Malandro não cai na graça de quem o conhece, nem sequer tem o respeito dos seus públicos. Seus apenas porque ele os considera seus, diga-se, na boa da verdade. A forma como consegue enervar todo um grupo de pessoas não o torna popular, muito pelo contrário.
É muitas vezes criticado e arrasado quando erra. Afinal, estão todos fartos da gabarolice que lhe é caraterística e de uma altivez que não faz por merecer e que jamais se justifica. Só o ar deste Malandro já irrita quem se encontra na sua presença. Na verdade ninguém aprecia um sabidão.
Os únicos indivíduos deste grupo que verdadeiramente têm sucesso são aqueles que não se apresentam em estado puro. Os mistos. Um «Chico-Esperto» que ao mesmo tempo seja um «Criador de Esquemas» em vez de irritar é cómico, sarcástico e satírico nas alturas certas, trazendo risos e sorrisos aos que o rodeiam. Nesta mistura especial a arrogância dá lugar à boa disposição e a prepotência é substituída pela voz oportuna, sem a vaidade caraterística do seu parente puro e duro.
O mesmo acontece com o Malandro misto, que para além de Chico-Esperto é simultaneamente um Casanova. Esta fusão de tipos resulta num género de Casanova que normalmente chega com facilidade a uma situação de fortuna ou mesmo de verdadeira riqueza. É aqui que se encontram os verdadeiros mestres do golpe do baú. Não têm a vaidade do tradicional e puro Casanova, e são peritos em camuflar as suas verdadeiras intenções. É com facilidade que os encontramos nos notários, nas leituras de testamentos, apresentando-se como herdeiros inesperados de falecidas mulheres abastadas.
Há muitos destes sujeitos entre elementos religiosos, principalmente padres, ao contrário do que seria de esperar. Muitas vezes, sem que ninguém entenda bem porquê, são os primeiros herdeiros das beatas que pululam em seu redor como ovelhas em rebanho.
Com a história do rebanho me despeço, deixando um até amanhã carinhoso e sorridente. Recebe um grande beijo deste velho amigão das horas boas e más, sempre ao teu dispor,
Grato por reconheceres tão bem esta personagem da minha pequena saga. Com efeito, ao entrar na terceira parte, é tempo de falar do Malandro tipo «Casanova», o qual, embora dedique grande parte do seu tempo ao género feminino, armado em gigolo, em pintas ou em macho latino, muitas vezes alastra a sagacidade às outras áreas abrangidas pela sua atividade, a modos que profissional. Não é difícil vê-lo a aproveitar uma ocasião para dar um ar da sua graça como «Criador de Esquemas», entre outros tipos do seu vasto reportório.
O “Três-Bêços” e o “Zézé Camarinha” são duas das estampas lusas que se tornaram famosas aí pelas praias, aldeias, vilas e cidades do Algarve onde te encontras, amiga Berta. O «Casanova», se conseguir amealhar alguma riqueza, vinda das suas relações amorosas, não a rejeita nem despreza, pelo contrário, demonstra com atos e palavras o seu profundo agradecimento à vítima, digo, à namorada da altura.
A grandeza do Casanova está em conseguir obter o máximo proveito, seja ele de cariz económico, social ou simplesmente amoroso ou sexual, sem que a sua companheira do momento o veja como um oportunista sem préstimo. Se for ela a ir fazendo voluntariamente as ofertas, sem que ele fale diretamente no assunto, é porque desempenhou o seu papel com perfeição e profissionalismo.
Os exemplos algarvios de que te falei atrás chegaram, cada um com as suas variantes, a receber carro, barco e moradia de presente, de várias das suas princesas e não apenas uma delas, apenas e só porque os queriam ver felizes e melhores na vida. Tudo sem que qualquer pedido fosse feito da parte deles. Jamais! A arte estava em ter tudo sem nada, nem uma vez que fosse, pedir às ditas queridas.
Uma vez, num café muito conhecido da cidade de Faro, e que hoje já não existe, presenciei a mestria de um deles a convencer uma Bifa (nome que os Marialvas davam às inglesas) a convidar uma amiga para, em conjunto, viverem um verão a três. A coisa levou cerca de uma hora e foi feita com tal lisura que só mesmo alguém muito atento é que perceberia que a ideia não fora da senhora, mas do garboso meliante.
O Casanova típico nunca aborda diretamente uma presa. Pode até meter conversa para pedir um cigarro ou um isqueiro ou para perguntar as horas. Com essas solicitações lança um ténue elogio à dama, faz uma ou outra observação jocosa e, se a mulher não inicia conversa afasta-se novamente. Essa que parece ser a pior hipótese é muitas vezes a sua melhor arma. Pois numa segunda ocasião em que encontra a mesma pessoa, o seu reconhecimento desta gera normalmente empatia e diálogo mais fácil. Daí a levá-la para a cama está a grande diferença entre um Casanova e um fala-barato.
Podia contar-te muito mais destes imanes do sexo oposto, mas o que escrevi é suficiente, minha querida amiga, para facilmente reconheceres o género. Termino com o envio de um forte abraço, este que não te esquece,
Entramos hoje na segunda parte da saga sobre o Malandro luso. Das seis categorias principais que te apresentei, na introdução, aquela classe que mais parece representar o verdadeiro Malandro, na melhor aceção da palavra, é a do «Criador de Esquemas», um autêntico desenrascador de coisas e situações, portador de um comportamento apimentado, com uma ponta quase ingénua de malicia.
Este Malandro, que não tem problema, no meio do seu processo criativo, de pisar o risco da ilegalidade e da marginalidade, procura com naturalidade resolver qualquer problema recorrendo ao engenho da sua mente. Estas ações incluem os negócios paralelos, fora do controlo da Autoridade Tributária, as cunhas e favores, a destreza de (muitas vezes) ter de vestir a pele do «Faz-Tudo» ou o faro apuradíssimo para descobrir uma falha na legislação que lhe permita agir e atuar, com relativa segurança, à margem da mesma sem, contudo, a infringir (pelo menos em demasia).
Este «Criador de Esquemas» não é o cidadão indolente, preguiçoso e oportunista descrito por quem desconhece as artes do ofício. Apenas a palavra oportunista se conjuga com o seu “modus operandi”, pela esperteza e sagacidade com que o Malandro consegue agarrar uma oportunidade, que apenas ele granjeia vislumbrar e utilizar, em proveito próprio, com a consequente vantagem e ganho.
Este especialista é um ser social muito ativo, que se integra em ambientes que não são os seus, agindo com a naturalidade de um felino que saca o peixe já temperado da beira da travessa de uma janela de cozinha entreaberta por descuido, sem que ninguém se dê conta. O seu génio criativo consegue realizar milagres no papel de intermediário entre duas partes, muitas vezes antes mesmo de ambas saberem que precisam do que ele encontra, levando o produto ou serviço gerado por alguém, ou inventado por si ao produtor, até ao consumidor ou vendedor do mesmo.
É maioritariamente um homem bem parecido, bom falante e que nos agrada com alguma simplicidade, seja pelas boas maneiras, seja pela forma eficaz e aparentemente desinteressada com que nos resolve uma situação, um problema ou nos disponibiliza um produto a preços que, de outra maneira, nunca conseguiríamos obter. Todavia, nem sempre este ser inteligente usa a sua astúcia para tirar vantagens imediatas dos atos que pratica. Muitas vezes deixar o alvo do desenrascanço a dever-lhe um favor mostra-se, a médio e longo prazo, uma estratégia bem mais eficaz e rentável do que aquilo que poderia parecer à primeira vista, sem grande investigação.
O «Criador de Esquemas» é o bacano que todos conhecemos e a quem recorremos porque, sempre que pode, nos desenrasca sem nada pedir em troca (pelo menos assim pensamos) com aquele ar de amigo do seu amigo.
Na esperança de ter ajudado a entender este Malandro tão lusitano me despeço por hoje, minha querida amiga, com o usual beijo de até amanhã, deste teu ombro sempre pronto a servir-te,
Hoje, neste dia 7 de dezembro dou início a um ciclo de seis cartas, incluindo esta, se os meus cálculos estiverem corretos, sobre uma personagem tipicamente lusa: o Malandro. Já o tinha abordado há poucos dias, mas só para o usar como exemplo de como faz parte de um certo espírito nacional inventar o melhor esquema para contornar uma situação. Ora o Malandro agrega um lote alargado de tipos que não se esgota no típico dono do melhor esquema.
Porém, antes de dar início à temática, porque o Malandro é essencialmente homem, não queria deixar de referir que do lado feminino existe uma outra corrente que concorre diretamente com este, na primazia de quem decide à margem, seja da lei e da ordem, seja da ciência e do conhecimento, seja mesmo da lógica.
Na mulher o papel do Malandro é essencialmente ocupado pela inspirada «Intuitiva», onde se incluem aquelas que defendem as teorias da conspiração, as que radicalizam comportamentos negacionistas, alimentares ou orientais, as energéticas de inspiração parapsicológica, as exotéricas, as espirituais ou as de fé, a quem se juntam ainda algumas malandras, que agem da mesma forma que os ditos malandros, e as referidas intuitivas, de sexto sentido apurado que, mesmo sem estarem na posse da verdade seja lá do que for, acham-se as detentoras da razão primária.
Intuitiva e Malandro, contudo, não se devem confundir com gente sem escrúpulos, com criminosos ou com gente do mal e do piorio. Nada disso, são pessoas comuns, como muitos de nós, que tendem a pensar que lhes assiste o direito de escolher o seu caminho alternativo. Ora, se esse caminho colidir com o status quo, instituído e normalizado na sociedade, isso é algo que ultrapassa o interesse destas pessoas, para as quais o que importa mesmo é a sua própria forma de pensar.
Se tiveres interesse, amiga Berta, numa outra altura, poderei dedicar-te algumas cartas sobre a «Intuitiva» porque se trata de um género luso deveras interessante, se bem que, com nuances enormes no seu seio. Mas esta série de cartas é mesmo dedicada ao Malandro.
As categorias principais deste personagem são, a do «Criador de Esquemas», a que se segue o «Casanova», o «Chico-Esperto», o «Marginal de Trazer por Casa», o «Homem da Noite» e, o pior de todos, a «Grande Besta». Todavia, convém esclarecer e insistir, que embora, nos casos extremos, algumas destas categorias de malandros possam ter elementos mais radicais que entram na verdadeira marginalidade e no crime deliberado, não é essa franja menor que pretendo abordar.
Por hoje é tudo, minha querida Berta, mas amanhã continuo esta demanda fascinante sobre o Malandro luso. Despede-se com um beijo, este amigo de sempre,
Esta faz parte das cartas que não te cheguei a enviar em 2020. Hoje vai a primeira. Foste para o teu refúgio da pandemia sem internet e, como tal, acabou por ficar esquecida numa pasta. Dito isto, cara confidente, regresso à carta original, que se mantém absolutamente atual:
Querida amiga, ando farto desta censura velada que se está a implantar por todo o lado. Não se pode fazer uma piada sobre malucos porque é politicamente incorreto gozar com os deficientes mentais ou, pior ainda, os atrasados mentais, aliás, nem se podem usar tais nomenclaturas.
Agora, temos de nos referir a eles como portadores de transtorno de desenvolvimento intelectual, vulgo TDI. Se a terminologia “atrasado mental” pode ser ofensiva em determinados contextos, até pode, mas, amiga, uma anedota sobre malucos nada tem a ver com esse contexto.
Quantas vezes chamamos de maluco a um amigo, que faz algo que para nós seria impensável ou imprevisível? Muitas! Não se trata de um atrasado mental, mas de alguém que faz algo que foge ao nosso entendimento ou expectativa. Estou como o Ricardo Araújo Pereira, o humor, por si só é isso mesmo, humor. O que te parece amiguinha?
Quanto a insultar alguém por usar os termos: atrasado mental ou deficiente mental até reconheço que, em certos contextos, as expressões possam poder ser consideradas ofensivas, principalmente se for evidente a componente insultuosa. Todavia, dizer que aquela pessoa, coitada, é atrasada mental, é referir apenas uma condição existencial da pessoa e não um insulto. E contar anedotas de malucos é gozar com os deficientes mentais? Por amor da santa, diria uma grande amiga minha. Contudo, minha querida, os exemplos destas novas sensibilidades andam aí. Estão na moda e são deveras irritantes.
Se eu disser a alguém de raça negra que, enquanto pessoa, ela não passa de um ou de uma idiota, estou a ser racista? Não, não estou! Realmente, Bertinha, eu não estou a fazer juízos de valor quanto à raça da pessoa, estou a chamar estupido ou estupida à pessoa pelo que eu acho que ela é e não pela cor da pele com que nasceu.
Então agora não posso contar anedotas sobre espanhóis ou sobre alentejanos, bêbados, malucos, brancos, negros ou amarelos porque posso estar a ofender alguém? Não posso contar piadas religiosas? Era o que mais faltava. O humor pode ser contado em todo o lado e falar sobre qualquer coisa enquanto for somente isso mesmo, humor. O que te parece minha querida?
Sempre fui muito ao Brasil, terra que aliás, adoro. Tu sabes cada amiga, quantas vezes ouvi anedotas sobre portugueses? Milhentas vezes. Algumas exatamente iguais às que nós contamos sobre alentejanos, contudo, nunca tal me ofendeu. O que me irrita é esta nova mania do politicamente correto. Enfim, Berta, outros tempos, outra gente, outras mentalidades. A tacanhez sempre gerou discórdia e maldade. Por hoje é tudo, beijo do amigo,
É hoje que concluo o assunto começado há 2 dias. Ainda deves estar intrigada sobre o propósito de trazer a cultura, a literatura, Aquilino Ribeiro e o livro <<Andam Faunos Pelos Bosques>> à temática destas cartas. Contudo, a coisa vem de trás, foi um assunto que ficou latente na Parte V das Confissões em Português, no passado dia 18 de maio há precisamente 14 dias atrás.
Confesso, porém, que a abordagem apenas me serve de imagem, alegoria ou hipérbole, de algo muito corriqueiro e usual no mundo animal e humano. Em última análise trata-se de tornar polido e educado algo que carece dessa vertente harmoniosa, por motivos que na narrativa que se segue te pareçam óbvios e perfeitamente claros e justificáveis. Pelo menos, foi com essa intensão que a figura de estilo foi usada por mim. Assim:
Memórias de Haragano: Confissões em Português – Parte XIX
“Pronto! Caro leitor, antes de mais uma explicação. Começo, muitas vezes, a divagar baseado num determinado tema e, às páginas tantas, como se costuma dizer no Norte, dou por mim completamente fora do enquadramento e do assunto que me fez começar a escrever em primeiro lugar.
Há muito experiência adquirida no tempo passado a virar frangos, como também há muita maneira de fazer bacalhau. Tudo para dizer que a situação do que fiquei por relatar não ficou esquecida, apenas suspensa, à espera de uma nova oportunidade para regressar e ser concluída. Porém, deixar passar tantas páginas foi, desta vez, um verdadeiro exagero.
Vou regressar ao ponto em que me referi às nunca solicitadas incursões dos intestinos no nosso quotidiano… caro leitor, quando eu abordei o assunto sobre a adivinha da poia, enquanto explicava de seguida a sua utilidade para desbloquear uma conversa, não me referi a uma outra situação derivada do mesmo tipo de temática. Ficou, portanto, algo relevante por esclarecer, porquê? Bem, nessa altura o que tinha começado a deslindar acabou por se perder, com a introdução das quadras da adivinha, ficando omisso um esclarecimento. O parágrafo iniciara-se da seguinte forma, aproximadamente:
O que faço eu quando, coabitando com uma companheira, sou obrigado a abordar a temática constrangedora do peido, da bufa, do pum, do traque, do flato ou flatulência, do vento ou da ventosidade, do petardo, ou até da bomba atómica que, mais tarde ou mais cedo, um de nós acaba por dar ou largar na presença do outro? Antes de responder essa questão, deveras pertinente, importa chamar ao texto a imagem, a alegoria e a hipérbole previamente anunciadas.
Se bem te lembras, amigo leitor, quando falei de Aquilino Ribeiro, e do seu romance <<Andam Faunos Pelos Bosques>> referi que iria fazer uso dele mais tarde. É precisamente este o momento. O título refere a possibilidade de existência de Faunos, enquanto entidade oculta, de que não se conhece verdadeiramente nem a sua essência, nem mesmo se nos estamos a referir a uma quantidade singular ou plural, ou seja, tudo à volta dos Faunos no romance de Aquilino é um mistério, um tabu não desvendado, um assunto incómodo, uma inconveniência até social.
O mesmo se passa com a temática do peido na presença de segunda ou terceiras pessoas. Pode ser detetado ou não o responsável pela sua proveniência, quando existem pelo menos 3 indivíduos presentes, é um ato incómodo, que aparece como que vindo do nada, oculto, resvalando clandestinamente por uma ou outra borda de roupa, um mistério, um tabu temático e realmente uma inconveniência social, que chega a ser tomada como falta de educação, mesmo na intimidade de um lar ou na presença única de uma companheira ou companheiro.
Ora, aquilo que eu faço, sempre que uma inconveniência destas ocorre, e na presença de alguém a quem já falei da minha analogia, mesmo não quando não sou eu o flatulento, é dizer, com um ar inocente: <<andam faunos pelos bosques>> e, logo de seguida, acrescento: <<é melhor darmos de frosques>>. Quem conhece, sorri.
No caso de existir a presença de alguém que ainda não tenha escutado a minha explicação, fica lançado o tema para uma conversa brejeira, sem maldade e que também ajuda a esquecer o descuido da incauta pessoa que libertou a fragrância.
Se a palavra <<faunos>> se refere diretamente aos peidos, já o <<andam>> revela o seu aparecimento, enquanto o <<pelos bosques>> aponta para a origem misteriosa e possivelmente desconhecida da sua proveniência, ora desculpando o culpado, ora significando que se desconhece a origem. O acrescentar da expressão <<é melhor darmos de frosques>> não só rima com a frase anterior, como serve de aviso, não vá o aroma ser demasiado desagradável, para que se consiga manter o bom ambiente ou o agradável convívio até então existente.
Portanto, caro leitor, se alguma vez na sua conveniência social escutar a frase <<andam faunos pelos bosques>> já sabe que está na presença de alguém que também leu esta minha história e eu, se fosse a si, aproveitava para me pôr na alheta, antes que alguém profira: <<é melhor darmos de frosques>>.“
Termino, querida Berta, mais uma carta, esperando que, tenhas a sorte de nunca me ouvires dizer que “andam faunos pelos bosques”. Despeço-me rindo, com um beijo do amigo de todos os dias,
Dando seguimento à última carta, que agradeço que tenhas referido ter-te deixado curiosa, sigo de imediato para a narrativa. Assim:
Memórias de Haragano: Confissões em Português – Parte XVIII
“Se devidamente analisado, à luz do seu tempo, Aquilino Ribeiro mostra-se muito à frente da sua época e das ideias de então. Neste romance ele promove aquilo a que se poderia muito bem chamar uma verdadeira revolução sexual. De notar que a ação decorre 40 anos antes dos famosos anos 60, esses muito conturbados tempos da paz e do amor e da reivindicada liberdade sexual.
Aliás, embora nunca tenha lido nada que possa sequer comprovar o que vou escrever, eu acho provável que os loucos anos 20, na América, possam ter influenciado o papel verdadeiramente diferente do habitual, naquela altura, atribuído à mulher, por parte de Aquilino, na sua obra. Por ventura, as notícias do novo mundo podem ter ajudado na quase sátira de Aquilino Ribeiro ao <<status quo>> instituído e tomado como certo.
Podia ter também falado aqui da personalidade única do escritor. Ele que foi beirão, emigrante, preso, procurado pela polícia, fugitivo, seminarista, fundador de revistas literárias, membro da Biblioteca Nacional de Portugal e do grupo com a mesma denominação, sócio da Academia das Ciências de Lisboa, desertor, arguido em tribunal militar, condenado, caçador e até estudante universitário da Sorbonne, em Paris.
Contudo, também foi cavaleiro, republicano, contacto regular do movimento regicida, presidente e fundador da Sociedade Portuguesa de Escritores, presidiário, evadido da prisão, clandestino, cronista na imprensa escrita, professor, sem licenciatura, filho, pai e avô.
Somando aos demais parágrafos Aquilino foi ainda escritor, proposto para o Prémio Nobel da Literatura em 1960, acusado de anarquista, maçon, militante acérrimo da candidatura à Presidência de Humberto Delgado, Comendador da Ordem da Liberdade.
No topo do bolo, qual cereja, Aquilino Ribeiro é um dos ilustres portugueses a ter o direito de ter os seus restos mortais a descansar no Panteão Nacional.
Tendo em conta os últimos 4 parágrafos, tudo o que foi escrito relata o escritor, entre outras coisas, e não necessariamente por esta ordem, escolhida propositadamente, por mim, para parecer conturbada e polémica como aliás foi toda a sua vida.
Aquilino Ribeiro era, por si só, um caso único e invulgarmente admirado na cena literária portuguesa e internacional, de que são exemplos as honras recebidas no Brasil e em Paris. Eu, aqui, podia vir falar dos mais de 40 livros que deixou, enquanto obra publicada. Porém, não era sobre Aquilino Ribeiro, propriamente dito, de que me interessava falar. Prefiro referia-me sim, apenas e só, à sua obra: <<Andam Faunos Pelos Bosques>>.”
Despeço-me com uma piscadela de olho e um sorriso franco, deste que sempre será teu amigo, com votos de que estejas a ter um excelente dia, com amizade,