Carta à Berta: Suu Kyi, Prémio Nobel da Paz e o Golpe em Myanmar
Olá Berta
Um novo golpe militar em Myanmar recolocou, mais uma vez, os militares no poder neste país antigamente designado por Birmânia. Este país é vizinho do antigo território de Bengala, que em 1971 deu origem ao Estado Indiano de Bengala e ao Bangladesh. A antiga Birmânia e a velha Bengala tiveram, no tempo dos descobrimentos portugueses e da descoberta do caminho marítimo para a Índia uma forte implantação lusa, tão forte que a Birmânia chegou a ter três reis portugueses.
O primeiro rei luso naquelas paragens foi Salvador Ribeiro de Sousa, embora interinamente e apenas até ao regresso de Filipe de Brito e Nicote (sendo o Nicot originário do pai que era francês), que se encontrava ausente em Goa e que seria proclamado pela população local como o segundo rei português do Pegu (uma vasta região da velha Birmânia, na viragem de século, dos anos 1500 para os 1600 - século XVI para o século XVII - estava Portugal subjugado ainda ao domínio espanhol de Filipe II), sucedendo a Salvador Ribeiro de Sousa que ocupara interinamente essa posição.
Por curiosidade, querida Berta, se consultares a história do Bangladesh verás que, a história local, reconhece ambas as situações, com a diferença que designa Salvador Ribeiro de Sousa pelo nome de Massinga, enquanto que descreve Filipe de Brito e Picote por Nga Zingar.
O terceiro português que se tornou rei, na região da antiga Birmânia, foi Sebastião Gonçalves Tibau, natural de Santo António do Tojal e filho de pais humildes. Sebastião Gonçalves Tibau fundou, na ilha de Sandwip, uma república de piratas, fundada com a ajuda de cerca de três mil homens, da qual ainda hoje existem descendentes lusos, que são bem fáceis de reconhecer pelos apelidos.
Mas voltemos, minha amiga Berta, ao momento atual e ao facto de Suu Kyi estar novamente detida em Myanmar, sendo que o seu apoio internacional não é o mesmo, nem nada parecido com o que foi anteriormente. Aliás, muitos dos seus antigos apoiantes, no seio da comunidade mundial, não parecem querer perdoar a sua cortesia reverente para com os militares, nem o modo como chegou a defender e a disputar as alegações das atrocidades cometidas por estes contra o povo Rohingya, que são um grupo étnico, existente na antiga Birmânia, que pratica o islamismo e fala a língua rohingya, um idioma indo-ariano parente do bengáli.
Atualmente, após novo golpe de estado levado a cabo pelos militares em Myanmar, Aung San Suu Kyi, a líder civil do país e agraciada com um Prémio Nobel da Paz, encontra-se, pela segunda vez na sua vida, em prisão domiciliária, tal como já acontecera há quase uma década.
É verdade que diversos países e a Organização das Nações Unidas se insurgiram contra mais este golpe de estado, porém também é uma realidade que Aung San Suu Kyi já não usufrui do mesmo suporte internacional que teve, por parte da comunidade internacional, durante os quase 15 anos em que esteve detida na sua residência, antes da sua chegada à presidência do país.
Enquanto esteve no poder Suu Kyi foi severamente criticada pela cedência e apoio que deu aos generais que deveria ter combatido e até pela forma como defendeu as atrocidades cometidas pelos militares, sob comando destes, contra os muçulmanos da etnia Rohingya, uma situação considerada como genocídio quer pelos Estados Unidos da América, quer pela Amnistia Internacional quer por muitas das nações ocidentais, mas não só.
Bill Richardson, um dos elementos da diplomacia norte-americana, declarou à Associated Press que: “Acredito que a Aung San Suu Kyi tem sido cúmplice dos militares. Espero que ela perceba que o facto de ter compactuado com o diabo se voltou contra ela, e que agora tome a posição correta em nome da democracia”, tendo ainda salientado que espera agora que esta se torne finalmente uma verdadeira defensora dos direitos humanos. Porém, acrescentou o diplomata: “Mas se ela não se afastar, acho que o National League for Democracy (NLD, o partido de Suu Kyi) precisa de encontrar novos líderes”.
Internacionalmente ninguém se esquece da maneira como Aung San Suu Kyi reagiu no Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, no início de 2020, no que concerne aos crimes e atrocidades alegadamente cometidos pelos militares contra a etnia Rohingya. A líder de Myanmar discordou das alegações de que os seus generais e o corpo militar teriam assassinado expressamente civis Rohingya, quer pegando fogo às suas casas quer ao descalabro que foram as mortes causadas e a violação massiva das mulheres daquela etnia.
Tudo isto, agravado pelo facto de Suu Kyi se recusar a aceitar como válidos os testemunhos, os relatórios e as alegações incríveis das vítimas dos mesmos sobre o que sofreram ao longo dos últimos anos.
Para a também Nobel da Paz, Jody Williams, galardoada pelo seu trabalho no desarmamento de minas terrestres, essa mudança de perspetiva por parte de Suu Kyi só pode ser vista como um virar de casaca, uma verdadeira traição à causa que a levou a receber anteriormente o Nobel. Jody chega ao ponto de interrogar: “Para lá da retórica durante as campanhas para eleições, em que é que ela realmente acredita? O que é que a democracia significa para ela.”
Suu Kyi continuou de uma forma absurda a dar “tiros em ambos os pés” ao discordar de todas as críticas de que tem sido alvo, achando-se inclusivamente injustiçada pelas mesmas e argumentando que nunca se considerou uma defensora dos direitos humanos e que esse reconhecimento lhe foi atribuído por terceiros, até porque, alega, ela sempre foi uma apenas e somente uma política.
Robert Taylor, um historiador e perito na história de Myanmar, ainda defende, amiga Berta, que, pese embora o desapontamento da comunidade internacional em Suu Kyi, esta se mantém extremamente popular no seu país, pelo que qualquer transição democrática terá de passar novamente por Suu Kyi. É perentória a forma como realça que: “Ela vai ter 76, 77 anos quando forem organizadas as próximas eleições. Estará enfraquecida, mas, enquanto estiver viva, vai continuar a ser a número um”.
Falta compreender agora como vai evoluir toda a situação em Myanmar. Se os generais voltaram a confiar em Suu Kyi ou se arranjaram maneira de a fazer “desaparecer” do panorama político da região, uma vez que foram eles que lhe retiraram o tapete e o poder, apesar da defesa que ela fez em Haia em nome deles, negando que qualquer genocídio no seu país alguma vez tivesse tido lugar.
No meu entender, querida Berta, Suu Kyi, ainda poderá ser a melhor forma de normalizar Myanmar nas eleições que os militares, responsáveis pelo golpe, prometem realizar daqui por um ano. Nem que se sirvam dela como um fantoche para atirar areia para os olhos dos observadores internacionais. Contudo, e é isso que falta entender, algo se passou para a terem deposto em primeira instância.
Muita água vai ainda correr debaixo desta ponte. Despede-se este teu grande amigo, certo de que esta história toda ainda está longe de chegar ao final, com um beijo,
Gil Saraiva