Carta à Berta: Memórias de Haragano - Confissões em Português - Parte XII
Olá Berta,
Cá estou eu para dar continuidade às minhas confissões, sem preocupações que não sejam as de tentar não me esquecer de detalhes que possam ser importantes. Assim:
Memórias de Haragano: Confissões em Português – Parte XII
“Porquê? Perguntarás tu, meu caro leitor, sem teres como vislumbrar uma razão lógica. Porque não contar friamente os factos ocorridos que levaram ao divórcio? Porque fazê-lo apenas serviria para minha satisfação egoísta e pessoal e não para um melhor crescimento e amadurecimento na adolescência de ambos os meus filhos. Era com a mãe que os 2 iriam viver, teria de ser com ela com quem melhor se teriam de relacionar, já lhes chegava a amargura da rotura e do afastamento face ao pai, que sempre fora presente. Já era trauma suficiente.
Falar da situação, gerar incómodos e possíveis atritos, para meu único benefício, nunca me pareceu de bom tom. Aliás, até corria o risco, depois de tantas vezes escutarem as queixas e a versão da mãe, de nem sequer acreditarem em mim. Não era algo que me tirasse o sono, mas, na realidade, era um cenário que poderia muito bem ter ocorrido. Bastava que lhes passasse pela cabeça que eu estava a tentar arranjar desculpas, para o que eles pensavam ter acontecido e cuja versão tomavam como verdadeira. Eu vivo com um compromisso fixo comigo mesmo na cabeça, que é, nunca ir contra a minha própria consciência, mesmo saindo-me mal disso.
Contudo, fico contente porque acompanhei intensamente a infância de ambos. Acabaram os 2 por vingar na vida e seguirem os seus caminhos de adultos preparados e com opções definidas e bem vincadas. Não se pode pedir mais, principalmente vivendo a muitos quilómetros de distância daquele que foi o meu lar.
Além de ter estado sempre presente, quando solicitado, fosse porque me queriam contar algo, fosse porque precisavam deste ou daquele bem, sempre puderam contar comigo. Nem mesmo quando vivi durante um ano e meio na rua, como um verdadeiro vagabundo, lhes dei a conhecer esse facto e a minha então precária situação, pelo contrário, mantinha o meu apoio, nem que para isso ficasse reduzido a uma sopa de feijão por dia. Feitios. Fazer o quê? Era feliz assim e eu prezo muito a minha felicidade, meu caro leitor.
Foi essa a razão que, nos termos do divórcio, renunciei à vivenda de 3 pisos, ao carro, à muito valiosa coleção de arte (na altura segurada em um milhão de contos), ao recheio da casa, etc., fazendo apenas exceção de parte dos meus livros e alguns dos meus discos de vinil, para além da minha roupa. O porquê também é simples e cristalino. Os meus filhos iam viver ali, já bastava perderem a presença do pai.”
Com isto me despeço até à minha próxima carta de confissões. Não te preocupes, querida Berta, que não considero que esteja a expor demasiadamente a minha vida privada. Não tenho o que esconder. Não te posso é deixar de referir que o que te conto não passa, infelizmente, da minha visão dos factos. Certamente haverá versões bem mais tenebrosas do que a minha. Recebe um beijo de até mais, este sempre teu amigo,
Gil Saraiva