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Alegadamente

Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente correto.

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Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 52

A Felina - 52.jpgNo caminho, a pensar que era bom não fazer nada quando não lhe apetecia, sentiu-se uma privilegiada Em Portugal, haveria muito pouca gente a poder agir assim. Enquanto conduzia lembrou-se que não pedira os três símbolos do Jaguar no carro. A cabeça em letras pretas e cromada na grelha, o animal em relevo lateral cromado nas traseiras e o jaguar cromado em três dimensões, a saltar, no capô.

Ligou para a Carclasse e avisou o Diretor Comercial. Dois deles já vinham de origem, disso ela podia estar descansada, quanto ao do capô eles tinham em stock e iram coloca-lo com muita honra. Ela que estivesse descansada, nem teria de pagar esse acrescento. A Carclasse tinha todo o prazer em oferecê-lo. Se ela quisesse até podia instalar o dispositivo que permitia a recolha do símbolo do capô, para o seu interior, evitando roubos. Eles tinham uma grande equipa pronta para trabalhar assim que as peças chegassem, não seria esse o problema, nem o atraso. Íris, agradeceu simpaticamente e aceitou a sugestão do processo antirroubo.

Ainda no trajeto, a rapariga ligou para a sua oficina de confiança, mais um daqueles a quem ajudara no passado, e perguntou ao dono se era possível mudar os emblemas traseiro e da grelha de um jaguar através de um qualquer tipo de chapa rotativa comandada de dentro do carro, num ela queria que se lesse a palavra jaguar e ativando o botão que este fosse trocado para um logo sem letras. O homem disse-lhe que sim, levava para aí uma semana, mas ficava um trabalho perfeito. Íris agradeceu.

Finalmente, estava a chegar à quinta. Passou o portão, vestiu-se de Felina, depois de estacionar na berma, logo a seguir à primeira curva do lado esquerdo da estrada e já virada em sentido contrário. Conferiu se não via ninguém, deu uma corrida até à sua árvore de eleição e chegou ao cimo do muro do terreno do solar.

Um movimento no interior obrigou-a a esconder-se na árvore que acabara de trepar. Em cima do muro podiam vê-la. Viu dois homens em direção a uma escada que estava encostada ao muro para lá do portão. Ambos tinham rostos fechados e cabelo cortado a pente um. Pareciam ser gente de Leste. Não entendia tudo o que diziam, mas tinha a certeza que falavam russo.

A língua russa não era uma das especialidades de Íris. Entendia o suficiente para compreender o significado de uma frase, mas não tinha domínio da língua para a falar, pelo menos fluentemente. Várias vezes entendeu o nome Kalinka, mas não o contexto. Aquilo era o nome de uma famosa canção russa, mas não lhe parecia haver enquadramento no contexto das frases. Também não entendia o que fazia dois russos, de escada às costas ali dentro da quinta. Tinha que entender o que se passava.

O segundo homem a subir puxou, com a ajuda do primeiro, a escada para cima e colocou-a do lado de fora do muro. Foi aí que ela reparou no Skoda Octavia Break RS 2.0TDI, de cor branca, do outro lado da estrada. Aquilo era carro para ter custado mais de cinquenta mil euros até porque a matrícula era recente. Vestiam sem gosto, mas eram dois tipos secos e altos, de estilo militar. Toda aquela envolvência era estranha, muito estranha.

Os fulanos desmontaram a escada de harmónio e prenderam-na no tejadilho do carro. Estavam a entrar para a viatura quando uma carrinha passou por eles na subida da ladeira. Não só ambos não entraram logo, como ficaram a ver se a carrinha parava ou se fazia algo suspeito. Só quando confirmaram que não, é que entraram no Skoda e partiram em direção da Malveira da Serra. Pararam uns metros à frente para prenderem melhor a escada que tinham colocado no tejadilho, voltaram a entrar e não pararam mais.

A Felina confirmou que tinha a costa livre e desceu para a estrada. Tirou o fato no carro, guardou tudo e desceu a colina de volta a Lisboa. Uma vez na capital, decidiu ir almoçar ao restaurante “O Madeirense”, no Amoreiras Shopping. Apetecia-lhe umas lapas grelhadas com limão, um filete de peixe-espada com banana e maracujá e uma maçã assada com Vinho da Madeira, à noite ia comer carne.

Finalmente despachada rumou a casa. Estacionou o Dácia na garagem e subiu pelo elevador ao primeiro piso. Foi buscar um digestivo e sentou-se ao computador no seu quarto secreto. Ora, ela ouvira Kalinka, nas primeiras páginas do Google apenas lhe apareciam coisas sobre a música russa. Todavia, quando passou para a imprensa online deu logo com uma notícia do JN, sobre a Máfia russa do Porto, autodenominada de Kalinka. Era isso!

Para ela a Máfia russa devia estar à procura de poiso na capital. Depois de investigar mais um pouco descobriu que a quinta estaria à venda em hasta pública brevemente. Tinha de estar atenta. Aquele pessoal quereria por certo ocupar as posições de Jô Muttley, ou pelo menos parte delas. Bonito serviço. Se tudo aquilo tivesse ficado sem ser badalado na televisão provavelmente os mafiosos não saberiam tão cedo que havia um lugar a ocupar. Iam mudar as moscas, mas a merda continuaria a mesma.

Como sempre ninguém pensara que anunciar com aquele espalhafato o fim de uma enorme rede mafiosa iria atrair fregueses indesejados prontos para a substituírem-na. Era triste, às vezes achava que vivia num país de galarós idiotas. Os culpados da Kalinka vir para a capital eram eles.

Todavia, outra notícia tinha mais informações sobre a Kalinka, segundo outro artigo do JN a Kalinka fazia parte do Grupo Wagner, os assassinos privados ao serviço de Putin, que tinham estado na linha da frente na guerra na Síria e que lideravam as hostilidades russas na guerra na Ucrânia. A Kalinka era o braço mafioso do grupo terrorista e estava espalhado por toda a Europa. E agora, graças à PJ e ao Governo, vinham-se instalar em Lisboa. Aquilo tirava-a do sério. Cambada de gabarolas.

Ela ia ter que ter atenção redobrada dali para a frente. Não os podia deixar levar muito a garimpa. Aquilo era outro nível de mafiosos e com outro treino. Algo como uma divisão principal. Mais uma vez a Felina agradeceu ao seu instinto de predador, porque tinha de ser na altura exata em que decidira ir visitar a quinta que os russos haviam de lá estar? Ela não sabia explicar, mas tinha sorte, muitas vezes com aqueles seus repentes, mais, muito mais do que seria normal acontecer.

Isso ia implicar que teria de voltar a assinar a assessoria com a Polícia Judiciária, mais dia menos dia. Ela ainda nem descansara devidamente. Enfim, faria o que fosse preciso. Mas não ia poder estar parada por muito tempo. Agora, o que lhe apetecia mesmo, era um gelado da Santini de Cascais, a geladaria mais badalada da zona metropolitana de Lisboa. Novamente meteu-se no carro. Desta vez com destino para o número cem da Alameda dos Combatentes da Grande Guerra na baía de Cascais.

Íris, não dera pelo passar do tempo em Cascais. O fim de tarde estava maravilhoso e ela andara a ver montras, vira malas, jeans e sapatos, muitos sapatos. Por gostaria ela tanto de sapatos? Não sabia bem, mas era quase uma doença. Não precisava de comprar sapatos, mas a temática não podia ser discutida sobre o precisar ou não. Era muito mais, isso sim, o ter que ter ou não aquele ou outro par de sapatos.

Regressou a casa, foi mudar de roupa para a noite e finalmente arranjou-se para sair. Ao preparar-se para entrar na Rua de São Bento, vinda da garagem e, ao olhar para a direita, viu à porta principal do seu prédio, sentado no chão, o surfista desgrenhado da noite anterior. O seu táxi devia estar a chegar. Fez-lhe sinal, o homem voou pelo passeio e veio ter com ela com um sorriso de orelha a orelha. Pelos vistos este gostara do que comera.

Com a chegada do táxi, e com o seu surfista atrás, foi um instante em que chegaram ao representante da Jaguar. Íris, olhou para as horas, nem meia hora demorara, faltavam dez minutos para o fim do prazo. O Diretor Comercial vi-os chegar e veio ao encontro da cliente. Na mão trazia o comando da viatura. Estavam a terminar apenas a limpeza final. O seu chefe de oficina estava a chegar com a viatura. Não devia demorar muito.

Realmente, uns três minutos antes do final do prazo combinado o homem entrou com a viatura. Ambos estavam à espera de uma inspeção rigorosa por parte de Íris, contudo, ela sorriu e disse que quem cumpria o que prometia, não erraria depois disso nos detalhes. Dizendo de outra maneira, insistia, tinha agora total confiança na Carclasse. Não seria necessário e muito menos preciso fazer qualquer verificação.

Só faltou meter um babete por debaixo do queixo do Doutor Henriques Figueira. O homem estava delirante com o elogio à empresa.  Até o Jaguar se fazer à estrada o homem disse e repetiu umas dez vezes que estavam ali para o que fosse preciso. Qualquer coisa que a Doutora Íris Vasconcelos precisasse bastava ligar. Se não tivesse acontecido ele próprio tinha dúvidas que o que tinham realizado seria possível. No entanto, o impossível acontecera afirmava a rapariga e ela tinha muito orgulho, afirmava sorrindo, de ser cliente de uma empresa que consegue o impossível.

Rumo à Malveira da Serra o surfista foi fazendo perguntas sobre aquela última conversa e ela lá foi descrevendo a história por entre as exclamativas admiradas do desgrenhado morenaço. Sem vir a propósito a jovem perguntou-lhe:

      ― Olha lá, e tu estás à espera do quê para me dizeres o teu nome? ― quis saber Íris.

     ― O meu nome é Ricardo Melro Miranda, tenho uma pequena empresa de distribuição. Faço serviços de distribuição de mercadorias em Portugal e no Brasil. ― respondeu o surfista e prosseguiu. ― Consigo gerir as operações todas por telemóvel. A vida é bela.

Depois prosseguiu esclarecendo que também tinha dois excelentes diretores comerciais e dois ótimos gestores de frotas. Uma dupla em Portugal e a outra dupla no Brasil. Porém, ela que não pensasse que ele era rico, pois não era. Vivia bem, esclarecia, normalmente quase que só fazia o que queria. Mas ainda estava longe de não ter que trabalhar.

Enquanto lhe era possível ia tentando aproveitar a vida. Porém, tivera sorte, herdara algum dinheiro e investira na distribuição. Começara com três camiões, hoje tinha quarenta e sete. Dezasseis em Portugal e trinta e um no Brasil. A camionagem no Brasil era mais rentável que em Portugal. No entanto, graças à pandemia, tinha conseguido crescer bastante no país, principalmente com os transportes de longo curso, em viagens à Alemanha e a Inglaterra, na maioria dos casos.

Chegados ao Restaurante Estrela da Serra, o surfista atacou uma gigante espetada de carne de vaca e camarão. Era preferiu um tornedó fabuloso, de fazer água na boca só de olhar.

A noite acabou uma vez mais na cama, no duche, em cima da mesa da sala de jantar, na cozinha, aqui e ali, onde calhava e foi uma verdadeira loucura. Era evidente para Íris que o rapaz se entusiasmava com ela. Estava constantemente a inventar disparates eróticos para fazerem e divertidíssimo por a ver alinhar nas suas fantasias. Quando acordou, no dia seguinte, estava, como na primeira vez, a dormir sozinha.

 

(continua no Capítulo XIII) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 51

A Felina - 51.jpgEla estava romântica naquela manhã, era normal nos dias de Lua Cheia, foi ver, como habitualmente o seu correio eletrónico, depois de se arranjar, conferiu ainda a sua lista de auxílios aos necessitados, tinha sete em que já terminara a investigação prontos para enviar, esteve a fazer as encomendas e deixou tudo pronto para entregar ao seu amigo dos CTT. Levara um rombo de mais duzentos e cinquenta mil euros. Verificou online os saldos das suas contas. Estava à vontade, o ano tinha sido muito produtivo.

Depois deu uma vista de olhos pela imprensa online, anotou mais três aflitos do Correio da Manhã, para futura investigação e possível auxílio, e quase no final deu com ele: um Jaguar F-Type Convertible R 75P575 AWD Automático, entrou na publicidade da marca, com todos os acessórios o Jaguar preto custava cerca de cento e noventa e cinco mil euros. Estava apaixonada. Na garagem ainda tinha espaço para mais dois carros e três motos, pelo que havia onde o guardar.

Com o número do representante a chamar, enquanto assobiava baixinho, aguardou uns trinta segundos. Estava decidida a comprá-lo no nome de Íris, era uma excelente viatura para os seus devaneios noturnos ou quando fosse para fora da cidade ou quando quisesse dar nas vistas. Na conta do Millennium BCP havia verba que dava e ainda sobrava muito. Do outro lado, escutou o bom-dia do representante. Descreveu o carro, definiu os acessórios e perguntou a que horas podia ir buscá-lo. Pela linha, o homem confirmava que tinham um pronto e em stock, mas que alguns dos acessórios demoravam uns dias.

Nada disso avançou Íris rindo, ela queria hoje. Ele que falasse com o gerente, ela pagava mais cinco mil euros pela urgência, mas ou era hoje ou não era nunca. O homem engasgou, ia a tentar argumentar quando ela o avisou de que estava a perder tempo. O sujeito pediu um momento.

Quando regressou pediu-lhe o contacto, o gerente estava a falar para a fábrica e ele já ligava de volta dentro de meia hora. Íris disse-lhe que o contacto era pessoal e que ligaria dali a meia hora. Saiu de casa, no seu Dácia, foi à sua dependência do Millennium BCP, pediu um cheque visado de duzentos mil euros e rumou à Carclasse, o concessionário da Jaguar.

Estacionou na Avenida Marechal Gomes da Costa número trinta e três, vinte e sete minutos depois de ter desligado a chamada. Entrou nas instalações da Carclasse e pediu para falar com o gerente. Pediram-lhe que aguardasse um instante pois o Doutor Henriques Figueira, normalmente em Braga, era o Diretor Comercial que hoje ali se encontrava ao serviço, mas estava a ultimar um telefonema urgente. Íris olhou para o relógio, a meia hora acabara de passar. Sorriu mais uma vez e disse:

      ― Diga ao Senhor Doutor que a Doutora Íris Lobato de Lemos Pessanha Vasconcelos, está aqui à espera e que é por causa dela que ele está ao telefone, porém, lamento muito, mas a meia hora já passou.

O homem ia para argumentar, mas a jovem não o permitiu. Fez-lhe sinal que fosse dar o recado e ficou a marcar o tempo. Um minuto e meio depois o Diretor Comercial chegava um pouco afogueado, com o outro atrás. Pediu desculpa, pois a chamada demorara um pouco mais. Estivera a falar com a Jaguar Land Rover no Reino Unido, diretamente com a sede, efetivamente, com a proposta de extra que ela fizera era possível ter o carro já com matrícula e tudo no nome dela se ela pagasse ainda hoje e lhe entregasse cópia da sua documentação. Íris pegou na pastinha que trazia debaixo do braço e passou-a ao Doutor Henriques Figueira. Este abriu e verificou que esta tinha tudo o que ele precisava, incluindo um cheque de duzentos mil euros, visado, em nome da Carclasse. O homem quase que se engasgava ao engolir em seco. Ainda atrapalhado proferiu:

      ― Parece-me que está tudo certo Doutora Íris Lobato Vasconcelos. Se me permite vou já tratar da encomenda pois vem um avião de Inglaterra com as peças em falta. Quer o troco em cheque ou em numerário? ― questionou o Diretor.

      ― Não quero troco, quero é vir buscar o carro pronto às oito da noite em ponto, acha possível? ― indagou Íris.

      ― Se não lhe fizer muita diferença preferia à oito e quinze. Nós fecharemos um pouco mais tarde para lhe deixar tudo pronto... ― retorquiu o Diretor.

Ela concordou, estaria ali às oito e quinze em ponto. Guardou o recibo e saiu.

A rapariga vinha divertidíssima. Aquele ar de durona que ela às vezes colocava, deixava sempre os homens em sentido, principalmente quando havia dinheiro envolvido e era ela a pagar. Era bom que à hora marcada lhe passassem as chaves do carro para a mão e que este viesse atestado e com os papeis tratados como ela referia na cartinha que constava dentro da pasta que lhes entregara, senão anulava a venda, só porque sim.

Henriques Figueira sentiu o rosto voltar ao normal. Tinha que ter tudo pronto mesmo à hora certa. Pelo que constava na carta que acabara de ler, a venda ficaria sem efeito se houvesse atraso na entrega da viatura. Confirmou tudo com a Sede em Inglaterra, referiu bem os prazos que tinha e o detalhe e que a venda seria anulada pela compradora se a viatura fosse entregue fora de prazo. Do outro lado confirmavam-lhe que as peças já estavam a caminho do jato que as traria para o aeródromo de Tires.

O Diretor Comercial disse que ia enviar de imediato uma carrinha para o aeródromo e falar com a alfândega. De seguida ligou para um amigo da Alfândega do Porto e expôs o problema, este disse-lhe que podia estar calmo que já lhe ligava de volta. Quando retornou a chamada o outro garantiu-lhe que tratara do assunto e deu-lhe o nome de quem deviam contactar em Tires a quando da chegada do avião.

Estava a desligar e o seu telefone tocou novamente, era o homem que mandara tratar dos papeis do carro a dizer que estaria tudo resolvido dentro de hora e meia. Henriques Figueira estava satisfeito. Mais um telefonema para enviar a carrinha para Tires e depois cuidou de convocar a equipa da oficina para estarem todos de prontidão para tratarem da viatura a tempo de entrega e avisou ainda que a mesma tinha de ser entregue atestada.

Só depois de sentir tudo a andar é que o homem descansou um pouco mais. Estava a aproximar-se dos quarenta anos de idade, já tinha vinte anos de casa e nunca lhe tinha acontecido uma destas. Ainda não estava relaxado. Até ver o automóvel pronto a entregar, não ia ter como descontrair. Uma coisa daquelas era inédita. Ainda havia algo na sua cabeça… ele conhecia o nome e aquela cara de algum lado, mas de onde? De repente, sem saber bem como, lembrou-se, era a Assessora da PJ a que se demitira depois de os entalar.

Aquela mulher era fogo. Ela até conseguira correr com um coordenador superior da Polícia Judiciária. Pelo que ele sabia do currículo dela que vira na altura na internet, a sujeita era assessora da casa mãe da Rolex, da Louis Vuitton, da Dácia, e de mais uma boa dúzia de marcas internacionais. Também vira que ela era doutorada em Antiguidade Clássica, o que nada tinha a ver com as suas assessorias, mas o facto é que parecia que todos a queriam. Só podia ser uma pessoa muito inteligente e ainda por cima era cá um pedaço de mulher, vá lá, vai.

Íris, achou que depois de ter o seu carro novo devia ir jantar a algum sítio diferente. Teria de ser com companhia, depois veria quem convidaria, o problema estava em escolher onde ir. Lembrou-se do Restaurante Estrela da Serra, na Malveira da Serra, já fazia algum tempo que não visitava a sua amiga e sócio-gerente do local, a Tê Beleza Figueira. Ela que há pouco andara por aqueles lados na quinta do Muttley e nem se lembrara de lá ir comer. Ligou para a amiga e aguardou. Ao fim de meio minuto foi atendida.

      ― Olá Tê, daqui é a Íris. Eu sei, eu sei, agora sou estrela de televisão. Olha, tem lugar para mim na mesa da direita junto à lareira para esta noite? Somos dois para o jantar, lá para as oito e meia, um quarto para as nove... ― quis saber Íris.

      ― Para ti sempre, minha querida. Escolhes quando chegares ou tens alguma ideia prévia? ― perguntou a amiga.

      ― Escolho quando chegar, mas diz-me, quanto ao vinho tinto, ainda tens Quita do Vale Meão de 2012? Tens! Ótimo, reserva-me duas garrafas. ― respondeu a jovem.

     ― Certo, podes contar e vens em negócios ou romance? Romance, tudo bem, vou pôr as velas e acender a lareira. Ainda está calor, mas à noite é mais fresco e fica lindo… ― garantiu Tê Figueira.

A rapariga estava contente, o dia continuava maravilhoso como começara. Até ia dar um salto ao muro da quinta de Jô, só para matar saudades. Não, a ir a esse lugar ia agora, à noite podia estar demasiado arranjada para andar a trepar às árvores.

Saiu de casa novamente e tirou o carro da garagem, ia dar um olhar à quinta.

 

(continua) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 50

A Felina - 50.jpgA Direção Nacional anunciava por último, em ofício separado, que devia ser implementado o quanto antes, pelo Comando Metropolitano de Lisboa, um comportamento de tolerância zero para com a Kalinka, caso esta se viesse mesmo a instalar no raio da área da Grande Lisboa, dependente daquele comando. O ofício vinha assinado pelo Superintendente-Chefe e Diretor Nacional, Miguel Agosto Margina da Silveira.

Seguia-se um anexo com explicações detalhadas sobre a Kalinka, de acordo com o último relatório apresentado pelo Intendente Vítor Fernandes de Melo, onde constava a negrito que esta organização mafiosa era um braço que, comprovadamente, estava integrado estruturalmente no Grupo Wagner e espalhada por roda a Europa. Ora, sendo o grupo Wagner uma organização privada militar, ao serviço da Rússia e de Putin, responsável por crimes de guerra na Ucrânia e na Síria, entre outros locais, a Kalinka em Portugal fora recentemente classificada, pelo Governo português, como uma máfia terrorista integrada no Grupo Terrorista Wagner, devendo ser perseguida e erradicada, a todo o custo, do território nacional.

Tendo em conta todas aquelas novidades e o modo como Vítor agira durante a sua passagem pela cidade Invicta, o Comandante do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, encarregou-o de criar, organizar e escolher os elementos para os Gamas de Lisboa, que ficariam instalados no edifício anexo ao da sede daquele comando.

Assim que o grupo estivesse formado ele passaria a comandar essa unidade com o posto de Superintendente. Todos os elementos deviam fazer parte dos quadros policiais pertencentes à área geográfica do Comando Metropolitano de Lisboa da Polícia de Segurança Pública e já ter, pelo menos, na sua folha de serviço, cinco anos de experiência na polícia.

O futuro Superintendente enviou para todas as esquadras e outros serviços do comando de Lisboa, uma nota informativa sobre a abertura das vagas para os Gamas, explicando que seria um grupo que atuaria contra organizações mafiosas ou com foras-da-lei como a Felina. Ele sabia que, com este detalhe afastaria do seu núcleo todo e qualquer admirador da gata o que, só por si, era um excelente indicador de futura fidelidade a si e aos Gamas.

Tendo em conta a popularidade da gata na capital, foi deveras surpreendente até para Vítor assistir à inscrição de oitenta e sete polícias voluntários nas candidaturas aos Gamas. Porém, através da análise curricular conseguiu, com relativa facilidade, formar um grupo com sessenta indivíduos. Muitos deles já com alguma experiência no combate ao crime organizado. Para dar formação ao grupo foi buscar um grupo de oito instrutores aos diversos ramos policiais e militares do país. Do SIS, às Forças Armadas, passando pela própria polícia, SEF e GNR.

No final, tinha uma seleção de polícias devidamente treinados para os desafios que poderiam defrontar. Foram escolhidos dez elementos para o plano de apoio e coordenação na sede e, cinquenta, divididos por grupos, núcleos e brigadas, com valências específicas cada um. A formação do pessoal levou-lhe o final de setembro e todo o mês de outubro.

Entretanto, conseguira que Alex Budvi adquirisse em asta pública a quinta de Sintra que pertencera a Jô Muttley, através de uma empresa de fachada que funcionava como filial de uma multinacional russa controlada pelo líder do Grupo Wagner. Essa seria a sede da Kalinka na Grande Lisboa. Porém, em vez de adquirirem outras propriedades recorrem antes ao aluguer de meia dúzia de vivendas espalhadas pela zona metropolitana e estrategicamente colocadas pelo território.

Para os chefes da Kalinka deslocados do Porto para Lisboa foi relativamente fácil aglutinar os pequenos grupos de delinquentes russos e de países de Leste existentes na zona, através da Embaixada Russa que sabia bem caracterizar os seus cidadãos na zona em causa. Alex Budvi deixou o seu lugar de tenente, à número dois, Natacha Kutcheva, encarregue da organização no Grande Porto e veio, ele próprio, liderar a sede a Sul. Tratava-se de um passo importante para a organização e não podia entrega-la nas mãos de terceiros.

Juntamente com Budvi vieram ainda mais três dos chefes dos grupos do Norte, para que a estrutura pudesse iniciar a atividade com alguma maior experiência e devidamente fortalecida. Dois deles até já tinham vivido uns anos na zona da Grande Lisboa.

A estrutura da Kalinka na capital seguiu as diretrizes da organização no Porto e no resto da Europa. A meio de outubro já tinham recebido todo o armamento de que necessitavam, angariaram no próprio mercado local o primeiro lote de prostitutas a que juntaram mercadoria própria vinda de Leste. Os pontos de distribuição da droga foram fornecidos por Vítor, bem como de outros negócios tendo em conta a antiga rede de Muttley.

No final de outubro já estavam a laborar a todo o gás, como se estivessem há muito anos instalados na região. Para que isso fosse possível, muito contribuíra o conhecimento passado por Vítor, ao detalhe, para as mãos agradecidas de Alex Budvi. O homem estava admirado com a sede de vingança que alimentava o seu amigo da polícia. Ele achava Vítor cada vez mais disposto a fazer qualquer coisa para levar a bom porto a sua missão de destruir e por fim eliminar a Felina.

Ora, para a Kalinka em Lisboa, a gata também era um entrave ao progresso e prosperidade da organização. Por isso mesmo já fora lançado um plano especialmente desenhado para a conseguir deitar abaixo. Aliás, Budvi considerava que isso era bem mais simples do que todos lhe diziam. Ela não passava de uma mulher só, sem apoio de homens com maiúscula, a combater uma das maiores e mais bem organizadas máfias da Europa.

Com eles não haveria lugar para samba ou farró. A Kalinka podia também ser uma música, mas era a música dos bravos e resilientes duros da nova e moderna Máfia russa. Era uma organização que jamais vergaria perante um mero e pouco relevante rabo de saia. Devido aos avisos constantes de Vítor iriam ter mais cuidado do que normalmente faziam com um inimigo individual, mas no fundo, para Alex Budvi, o perigo da Felina era algo insignificante e meramente residual.

A máfia instalou-se metodicamente desde a Península de Setúbal, até aos concelhos na margem sul do Tejo e toda a zona metropolitana de Lisboa, abrangendo assim os concelhos da Amadora, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Odivelas, Oeiras, Sintra e Vila Franca de Xira. O intuito era poder atuar num vasto território de três milhões de habitantes, onde o poder de compra era bem mais enriquecido do que no resto do país.

Na noite de Lua Cheia, a dez de setembro, sábado, a Felina sabia, como que por instinto, que nem valia a pena tentar estudar. Todo o seu ser ansiava outro tipo de diversão que nada tinha a ver com o seu gosto pelo estudo. Mesmo estando muito entusiasmada com o seu mestrado essa não era uma boa noite para esse tipo de passatempo.

Ao verificar que já eram sete da tarde, Íris confirmou se tinha o seu bilhete para ir ao Coliseu de Lisboa assistir ao concerto de Xavier Rudd. Não conseguia entender como é que o concerto do músico australiano estava esgotado, contudo, era um facto, ela apenas o escolhera por ser o evento que mais lhe agradara para iniciar o segundo dos Ciclos da Luz, o da Lua Cheia, Era uma música umas vezes melódica, mas lenta ou então confusa e demasiado tribal para o seu gosto, mas o cantor sufista tinha obviamente bastantes fãs na capital portuguesa.

Ela ia ao concerto porque lhe parecera o melhor cartaz do início da Lua Cheia em na capital e podia ser que o “Follow The Sun” sempre se ouvisse naquela noite. Não era o mesmo do que seguir a Lua, mas era a coisa mais aproximada. O concerto teve início à hora marcada e a sorte fez-lhe companhia. Ao seu lado estava um surfista de cabelo castanho, desgrenhado, aloirado pelo Sol de muita praia, algures na casa dos trinta e poucos anos, que já devia ter fumado uns quantos charros antes do concerto.

O sujeito acabou por passar a noite com ela a surfar pelo seu corpo como se o conhecesse melhor que a sua mais estimada prancha. Só por isso o concerto já valera a pena, porque em termos musicais, a música no palco não lhe dissera grande coisa. Já o atlético companheiro da noite valera bem pelo bilhete, tendo tido uma atuação digna de vencer as mais altas ondas da longa euforia que durara e renascera diversas pela noite fora, como se o mar a invadisse, em marés agitadas, pleno de vagas e ondas vigorosas de puro prazer.

Quando acordou já o seu noturno companheiro partira rumo ao nascer do Sol, lá para os lados da Ericeira, onde os cavalos selvagens ainda pareciam correr em liberdade, quais cavalos marinhos na crista de ondas impossíveis de transpor, que não pelos poucos sonhadores da liberdade.

 

(continua) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 49

A Felina - 49.jpg XII

A Ameaça da Máfia Russa

XII

Vítor Fernandes de Melo não sabia muito bem o que fazer com a sua vida. Sabia que no Comando Metropolitano da PSP, embora ninguém lhe dissesse nada, também já estava queimado, mais do que o falhanço a apanhar a Felina no Museu, fora a TVI, com uma ajuda do Expresso, quem lhe tinha feito a cama. Precisava reagir e depressa para não se afundar rapidamente.

Ultimamente, o seu tempo era passado na sede do comando a atualizar sistemas, a reorganizar o modo como deveria estar a funcionar o arquivo, enfim, a modernizar e trazer para o presente século aquele órgão policial. O certo era que essa atitude, de não ter levantado muitas ondas e ter começado aquele trabalho interno, o mantivera no lugar. Começara, ainda, naquela semana, a organizar a articulação do comando com outros comandos regionais, com as esquadras e com os serviços centrais, bem como com as outras forças policiais e os seus respetivos departamentos.

De momento, embora o seu ódio pela Felina crescesse minuto a minuto, nada podia fazer para a apanhar. Tinha que manter, para já, um perfil sereno e esconder do mundo o seu absoluto desejo de vingança. Por sua vontade ou a prendia com a pena máxima ou lhe dava um tiro que acabasse com ela, se pudesse alegar legitima defesa. Das duas ele sabia que uma haveria por acabar por acontecer mais cedo ou mais tarde.

Era a missão da sua vida e nada, nem ninguém, impediria, mesmo que tentasse, que esse objetivo fosse atingido. Todavia, por agora, tinha de se manter aparentemente calmo e desinteressado desse tema, mas estava atento, muito atento.

Por volta do dia cinco de setembro, uma segunda-feira, Vítor, recebeu do Comando Metropolitano do Porto da PSP um ofício interno a comunicar que a Kalinka, uma organização mafiosa oriunda do leste europeu, principalmente composta por russos, parecia estar a querer expandir a sua área de intervenção em Portugal, do Porto, único local onde se sabia haver um elevado número de elementos, para Lisboa.

Ora na capital, como no resto do país, não era conhecida até à data qualquer ramificação da organização. A informação tinha por base três escutas particulares a elementos dessa máfia, autorizadas pelo tribunal e relacionadas com vários casos de venda de armas no submundo nortenho. Nelas tinha sido descoberto o envio de vários elementos para a zona metropolitana da capital a fim de ser estudada a melhor localização de uma nova base.

Do que as conversam tinham conseguido apurar, a organização queria aproveitar o vazio deixado pela quadrilha de Jô Muttley na área metropolitana de Lisboa. Aparentemente a pressão da procura de serviços antes prestados por Muttley estava a aumentar significativamente e a oportunidade, a haver uma, parecia ser imediata. Tudo levava a acreditar que a Kalinka pretendia aglutinar os pequenos grupos de bandidos oriundos do Leste e fundi-los em torno de si mesma, fazendo nascer a base de Lisboa, sob o comando de um dos líderes do Porto que se deslocaria para Sul. Infelizmente, nenhuma das conversas referia datas ou locais que pudessem servir de referência e de informação mais detalhada.

Depois seguia-se um relatório sobre as atividades da Kalinka no Grande Porto e a explicação de que o nome da máfia derivava do significado da palavra, que em português era o de uma árvore da família do zimbro ou do cedro, cujas principais caraterísticas eram a facilidade de implantação em novos territórios, uma excelente resiliência e longevidade e uma dureza impressionante, tudo caraterísticas desta máfia que, segundo os dados do comando do Porto, mais não era que um braço civil de bandidos do poderoso grupo de mercenários russo designado comumente por Grupo Wagner.

Este era, então, o mesmo grupo que parecia liderar o lado russo na guerra da Ucrânia. No Porto, mais uma vez, a organização tinha dois subgrupos, os bandidos, ladrões, traficantes, extortores, conhecidos pelos Zimbros e as chefias, os raptores e assassinos designados por Cedros. Este último subgrupo, muito menor que o primeiro, detinha o comando, o controlo e a liderança de toda a Kalinka.

Com este dossier na mão, Vítor, apresentou às chefias a sua ideia de ir umas semanas para o comando do Porto, aprender mais sobre esta máfia, de forma a que o comando de Lisboa se pudesse preparar atempadamente, antes da chegada da organização à capital. A ideia foi muito bem recebida, principalmente por o afastar a ele dos holofotes da comunicação social por mais algum tempo, mais do que pela importância imediata de uma situação que, até ao momento, era uma mera conjetura.

Com a guia de marcha na mão e uma vez a proposta aceite pelo comando do Porto, no dia sete de setembro, este apresentou-se na sede nortenha ao serviço. A pronta resposta de Lisboa, que não assim tão vulgar, agradara imenso às chefias na Invicta. Ainda mais ao verem o genuíno interesse do oficial enviado. Com a chegada do fim-de-semana, no domingo, a onze de setembro já Vítor tinha prontos os novos arquivos que iria levar para Lisboa, com toda a informação que o Porto tinha sobre a Kalinka.

Porém, em vez de regressar à capital e usando a desculpa de querer entender como eles funcionavam no terreno, integrou o grupo que o Comando Metropolitano da Porto da PSP tinha a trabalhar no assunto. O Intendente ia a tudo, vigilâncias, detenções, rusgas, o que quer que fosse.

Ganhou, aliás, excelentes relações com os líderes do comando do Porto e com o grupo com quem trabalhava diariamente. Vítor, ajudou a otimizar os serviços metropolitanos da PSP na Invicta enquanto, sem nunca se impor, e parecendo aceitar e fundir as ideias dos outros elementos, sem qualquer ressentimento, criava novas estratégias e planos de atuação para aquilo que designou como o Grupo Anti Máfia de Ação e Segurança, os Gamas.

Para estes criou até um emblema e um nome. Eles passaram a ser conhecidos como os Gamas da PSP. O emblema era azul escuro torneado a dourado com umas tripas cinza em cruz, no interior, e um coração vermelho no centro, com a palavra gamas a dourado no topo. Também propôs, e foi aceite, o lema: “Fazemos das Tripas, Coração!” que ladeava os dois lados do emblema. Os homens estavam felizes, motivados e mortinhos por mostrar serviço, o que agradara sobremaneira às chefias nortenhas desejosas de por fim àquela máfia na cidade, que se espalhava como um polvo.

No domingo à noite, de regresso à pensão onde se encontrava, Vítor estava delirante, pois tudo corria conforme planeara. Antes dessa noite terminar conseguira ser conduzido à presença do líder da Kalinka no Porto, um indivíduo russo de nome Alex Budvi. Fora a ele que propusera juntar-se à Kalinka e ajudá-los a expandir a máfia para Lisboa. Sem rodeios colocara as suas condições, pretendia fazer parte dos Cedros, ser pago com um valor equivalente às chefias e impunha a condição da ajuda da organização para caçar e liquidar a Felina de uma vez por todas. Em contrapartida aceitaria quaisquer circunstâncias que lhe fossem impostas pela máfia, sem a mínima oposição ou reclamação.

A Alex Budvi aquele negócio caíra do céu. Podia não saber o que contar por parte da PJ em Lisboa e Porto, mas passaria a controlar as ações da PSP que, até ao momento era quem lhe tinha trazido mais problemas. Ter um informador, ainda por cima motivado pela vingança era como ter um cão fiel ao fundo da cama. Claro que possivelmente, quando matassem a Felina, teria de o abater também a ele, mas podia até ser que não. O acordo ficou fechado.

Para Vítor, aquele domingo, onze de setembro era o primeiro dia do fim da pantera negra. Ele ia ter a sua vingança e rir por último.

Para poder fazer figura, antes de regressar a Lisboa e esperar pelo elemento dos Cedros, que veria organizar a célula da capital, Vítor, combinara com Budvi, apanhar e prender, ao serviço do Comando do Porto, as franjas do Zimbro que o russo considerasse corruptas ou a necessitar de serem substituídas por grupos mais ativos.

O homem do Leste achou uma boa maneira de limpar os indesejáveis ou os incapazes e, numa semana, o comando do Porto prendeu quase quarenta mafiosos em ações cirúrgicas planeadas pelo, cada vez mais admirado, novo elemento do Comando Metropolitano da PSP do Porto. Ao regressar a Lisboa, no início de outubro, mais propriamente no dia três, foi com mágoa que o comando do Porto, no Largo 1º de dezembro e os Gamas, também ali instalados, o viram partir.

Ficara, aliás, o convite de que se alguma vez quisesse regressar ao Porto seria recebido de braços abertos, segundo o Superintendente-chefe, que liderava o comando da Invicta, nem sequer conseguia entender porque é que um elemento com o gabarito de Vítor era mal-aceite no comando de Lisboa. Por se ter enganado uma vez? Era ridículo, afirmava.

Os elogios e o relatório de serviço do Comando nortenho, eram de tal maneira positivos e elogiosos que o Comandante do Comando Metropolitano de Lisboa considerou que talvez tivesse havido algum preconceito, em Lisboa, na avaliação que tinham feito de Vítor Fernandes de Melo, principalmente por causa de toda a confusão à volta da Felina e da assessora da Direção Nacional da PSP. O relatório do seu colega no Porto não podia ser mais positivo, nem mesmo que ele o quisesse fazer.

Aliás, a Direção Nacional da PSP, enviara-lhe uma norma de serviço, baseada no trabalho do seu Intendente, para que também em Lisboa, a nível metropolitano, fosse criada a unidade especial dos Gamas, a exemplo do que fora proposto pelo Comando do Porto e integralmente aceite pela Direção Nacional. Com esta norma chegara ainda uma recomendação, em forma de nota interna, da passagem do Intendente para Superintendente, numa data que deveria ser próxima, de forma a reparar a subavaliação que fora feita relativamente ao oficial Vítor Fernandes de Melo.

 

(continua) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 48

A Felina - 48.jpgEsses sim, eram os verdadeiros heróis. Esses sim, podiam e deviam ser recompensados e aplaudidos pelos seus pares e por todos aqueles a quem serviam com humildade e abnegação, diariamente, num quotidiano sem fim. A eles, a todos os que serviam o bem comum é que era devido, hoje e sempre, um verdadeiro e sincero aplauso.

Para os partidos de esquerda a gata não passava um produto de uma sociedade que não cuidava dos seus. Num país realmente democrático e em que os que trabalham fossem devidamente remunerados pelo seu contributo, não poderia nem haveria lugar para este tipo de personagens. Porém, perante a miséria e a falta de condições de vida não era de admirar o aparecimento destes ditos heróis ou heroínas.

Mais do que tudo o importante era o Governo reconhecer que era precisa ser feita uma profunda reforma social. A atual heroína, que o povo tanto apreciava, deixaria de ter lugar e de fazer qualquer sentido, se essas reformas fossem implementadas. No entanto, ninguém se devia admirar que estes processos voltassem a acontecer caso tudo se mantivesse na mesma. Era este que devia ser o foco e era isso que defendiam, fosse a sua posição ou não do agrado de terceiros.

Já o líder da direita radical, um tal de Tomé Frescura, era a favor da prisão efetiva dos parasitas da sociedade, que vivem à custa do povo português, disfarçados de ovelhas, enquanto não passam de grandes cabras. Segundo ele, a Felina existia porque o Governo o permitia, ela apenas servia para afastar as atenções de que é ele quem, efetivamente, desviava todos os dias o dinheiro do povo.

Tomé Frescura, lembrava que noutros tempos, chamados de mais bárbaros, aos ladrões era cortada uma mão e depois a outra em caso de reincidência. Embora algo assim tão radical já não pudesse ser considerado algo politicamente correto, no entanto ver um ladrão a ir perdendo um ou outro dedinho como pena de um crime de roubo não era assim nada de tão radical. A sociedade poderia dessa maneira começar a assistir realmente a um testemunho visível de que os prevaricadores não ficavam impunes. Só assim se poderia eficazmente confirmar existir uma justiça eficaz.

Para os comentadores da comunicação social as posições eram das mais variadas. Para o humorista Renato Marujo Macieira o papel de uma larápia que se dá ao trabalho de gamar terceiros, tendo o cuidado de não desviar verbas de quem delas precisa, como de pão para a boca, já era um princípio que ele valorizava de sobremaneira. Mas ainda lhe parecia mais louvável que ela acudisse aqueles que não tinham a quem recorrer, sem nada lhes pedir em troca.

Com efeito, ele via com bons olhos uma jovem, com todas as curvas nos devidos lugares, a dar o corpo ao manifesto sem cobrar por isso, a ajudar aqueles a quem o Estado não prestava a devida atenção. No entender do comediante entre as alternativas de uma gaja boa a dar dinheiro a necessitados e a pôr na prisão malfeitores perigosos e dos banqueiros da nossa praça ele optaria sempre pela que oferecia mais entusiasmo.

Para além disso, Renato Marujo Macieira, achava excelente que a existência da Felina, não dependesse da aprovação do Tribunal Constitucional, como a Lei da Eutanásia dependia. Talvez isso ajudasse a explicar porque é que a esta existia e a Lei da Eutanásia não. Quanto ao facto de roubar a ladrões, o humorista lembrava o velho ditado onde se diz que: “ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão” ou lá o que é.

Ele aceitava ainda que o seu pensamento pudesse gerar polémica, por exemplo, no seio da igreja católica, mas jurava que se tivesse de ser ele a escolher preferia, fossem quais fossem as circunstâncias, ajoelhar-se perante a Felina, ou vice-versa do que ter de se ajoelhar perante um padre. Pelo menos em frente à mulher gata o falo derivaria sempre, desse por onde desse, do verbo falar.

Compreendia também a oposição dos marialvas e dos machos latinos que se recusavam a ver a Felina a ficar por cima, afinal, para estes era mais fácil agir se ela tivesse o rabo entre as pernas. No entanto, era-lhe simples aceitar alguém, que tentava repor o dinheiro de onde este nunca deveria ter desaparecido e que para isso fazia umas maldadezinhas, do que achar justa a cada vez maior diferença entre ricos e pobres sendo estes últimos, aqueles que acabam, como sempre, por ficar na mó de baixo.

 A visibilidade dada pela TVI à gata gerara, efetivamente, na sociedade e entre a comunicação social um falatório animado, ora aplaudindo ora deitando abaixo as atitudes e ações da Felina. Porém, quando a TVI apareceu com uma sondagem sobre as personalidades portuguesas que os lusitanos mais admiravam, a Felina aparecia a liderar as preferências nacionais entre os inquiridos, que responderam com oitenta e sete porcento a seu favor, seguia-se o cantor Jordi Ofício com seis porcento, o humorista Renato Marujo Macieira com cinco e o Presidente da República com três, sendo que os remanescentes três porcento estavam espalhados entre mais de vinte personalidades.

Um sociólogo, convidado pela estação de televisão, veio explicar o porquê de tão forte tendência em apoiar a gata. Para o homem era lógico que o povo se identificasse por um personagem que parecia tirado de um filme ou livro de ficção e que ajudava os mais fracos, mesmo que ficasse com alguma coisa para si próprio.

Era preciso compreender que os portugueses estavam a atravessar uma fase terrível com o peso da inflação e da subida das taxas de juro sobre as suas costas. Depois o país atravessava uma crise onde muita gente, dos reformados aos que tinham vencimentos iguais ou perto do ordenado mínimo, não conseguia fazer face a todas as despesas do mês.

Para Xana Lombas, a analista política, que era membro do PS, comentadora de televisão e ex-eurodeputada, ninguém devia perder tempo com personagens de ficção, cujo campo de intervenção é meramente residual e sem importância alguma no contexto social. Uma mascarada até poderia ter a sua graça num qualquer corso de carnaval, mas apenas isso.

Xana, que gostava de deixar as coisas claras, quando da análise da vida dos outros se tratava, tinha por hábito não ter papas na língua, desde que não lhe viessem falar de parte de uma sua propriedade construída ilegalmente em área protegida, avançava ainda que não entendera porque é que o Governo não ordenara um verdadeira caça à tal Felina, que, pelo que lhe era dado a entender, se tratava de um animal selvagem sem qualquer respeito pelas normas e pela conduta humana numa sociedade onde roubar é crime.

Opinião diferente tinha o comentador do PSD, Acres Lentes, um sujeito baixinho e muito opinativo, para quem a dita mulher-animal não passava de uma moda e de um fait-diver que, rapidamente, seria esquecido e ultrapassado pelo fenómeno mediático que se lhe seguisse. Qualquer aberração, como por exemplo, o homem mais alto do mundo ou o mais gordo, tinha o seu momento de fama, mas não passava disso mesmo, um soundbite que rapidamente seria substituído pelo próximo.

Quando interrogado sobre qual seria a melhor atitude do Governo o diminuto ser, dissera do alto do seu metro e quarenta que o Ministério da Administração Interna já deveria ter deixado claro a todas as forças de segurança que era uma prioridade absoluta pôr fim à fantochada de uma gata escondida com rabo de fora. Não devia ser um jogo do gato e do rato, proferira o pequeno hámster. O Estado tinha o poder do cão, mesmo do lobo e facilmente deveria extinguir de vez com reinado de uma Felina, em vez de a vir felicitar com agradecimentos bacocos.

Já o Presidente da República, Felisbelo Rabelo de Lousa, achava que seria interessante ter uma conversa com essa jovem, porque, bom… vistas as coisas pela positiva, ela tinha comportamentos que indicavam poder vir a seguir um novo rumo. O facto de ela fazer o papel de Madre Teresa dos Meliantes indicava poder haver um bom fundo que poderia ser aproveitado pelos Serviços de Reinserção Social para uma vida mais produtiva e sem a persistência da tendência para o crime.

Rabelo de Lousa lembrava que, como o gato, gata escaldada de água fria tem medo. Ora, segundo o mais alto magistrado na nação, era preciso aproveitar o facto de a pessoa em causa ter acabado de prestar um excelente serviço ao país, para se ser proposta alguma clemência, caso ela devolvesse o ouro roubado e decidisse, voluntariamente entregar-se às autoridades. Felisbelo estava convencido que ela estaria a ponderar isso mesmo.

Já para Josué Palheto Palmeira, o ex-dirigente e ex-deputado do PSD, comentador televisivo e Diretor da biblioteca e revista Fátua, achava que iriamos assistir nos próximos anos ao aparecimento de fenómenos semelhantes. Porque há sempre imitadores prontos para o disparate.

Segundo Palheto Palmeira, a democracia em Portugal estava com dificuldade de dar resposta aos reais problemas da população e, por isso mesmo, o aparecimento de líderes populistas, por um lado, quer à esquerda, quer à direita, e o despontar de fenómenos bizarros, por outro, como heroínas mascaradas ou heróis de cuecas, tinham um vasto campo para poderem crescer cada vez mais.

Sidónio Raposa Cister, o comentador do CDS no programa “O Começo da Hesitação” era totalmente contra a popularização de ladrões de bancos encapuçados. A vida real não era a mesma coisa que a “Alice no País das Maravilhas”, pelo que se tornava necessário pôr as coisas no seu devido lugar. O comentador afirmara: “― Ora, vamos lá ver se nos portamos como adultos e deixamos as brincadeiras para as crianças” …

 Ainda segundo Raposa Cister proferira: “― Não é possível admitir que os devaneios de uma ladra virarem, agora, porque sim ou porque não, fábulas justiceiras de trazer por casa. Eu nem me admirava nada, com tanta fantasia à mistura, que um dia destes, alguém anunciasse que essa gata é membro do PS”.

Na realidade, por toda a comunicação social, o assunto sobre a temática da Felina parecia não deixar ninguém indiferente. Só mesmo Íris se mantinha verdadeiramente satisfeita com a situação. Entrara uma vez mais nos Ciclos da Luz e os próximos sete dias seriam importantíssimos para se dedicar aos seus estudos, entregar se possível ainda em setembro a sua tese do último mestrado em que se metera e pôr na devida forma a sua destreza física, que com a caça aos bandidos ficara um pouco atrasada.

A jovem precisava desse tempo para si. Era importante viver uma boa pausa. Fazer aquelas pequenas coisas de que tanto gostava. Ela teria certamente, até ao próximo domingo, dia onze de setembro, tempo para dedicar à sua pessoa. Para além disso ainda iria de necessitar de um algum bom período para o romance, assim que chegasse a Lua Cheia. Isso parecia-lhe uma evidência, principalmente, depois de ter perdido a paciência com um palhaço, não porque o sujeito fosse um mau amante, mas naquele caso, em vez de um verdadeiro macho, como ela afirmara, afinal: “― o museu pariu um rato”.

 

(continua no capítulo XII) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 47

A Felina - 47.jpgUma das outras convidadas fora a Doutora Íris Lobato de Lemos Pessanha Vasconcelos, que confirmara a Cassandra Banheiras, da TVI e CNN Portugal, ser consultora quer do Museu Nacional de Arte Antiga, quer da Polícia Judiciária, mas apenas até ao momento da acusação feita pelo coordenador superior Vítor Fernandes de Melo da PJ, altura em que cessara a assessoria com a Judiciária.

De momento, afirmara Íris, embora já tivesse terminado um projeto para o museu, a sua assessoria mantinha-se em vigor, até que uma das partes a desse como extinta. Posteriormente, relatara a sua intervenção na história do bando de Jô Muttley e como vira a Felina, pela primeira e única vez, pendurada na árvore junto ao muro da quinta de Sintra. Depois falara do desmaio ao cair da árvore e do facto de ter enviado a sua localização de GPS à PJ quando acordara. Contara também como chegara à quinta e até como e porque detetara os bandidos junto à sua casa de família.

Quando Cassandra lhe perguntou sobre o seu envolvimento com o, na altura, coordenador superior da Polícia Judiciária, não teve qualquer problema em explicar que o perigo, a excitação, a queda da árvore, o desmaio e o regresso a casa a tinham deixado muito combalida, extremamente frágil e que o Diretor Adjunto da PJ, Carlos Farelo, preocupado com a situação e não podendo ir ele velar pela sua segurança, não tivesse ela de algum modo sido detetada pelos bandidos, lhe enviara lá casa, o responsável pelo dossier da Felina.

O seu braço direito, dissera-lhe o Diretor Adjunto, far-lhe-ia companhia até ele próprio lá poder ir ter. Entretanto, o coordenador Vítor chegara e fora extremamente cativante e ela, naquelas condições, acabara por envolver-se com ele, sem ter a mínima consciência que este apenas se estava a aproveitar do seu momento de fraqueza e fragilidade, somente com o fito de a usar sexualmente, sem nutrir qualquer espécie de sentimento por ela.

Nem estranhara, em absoluto, o coordenador superior omitir ao seu chefe a situação do envolvimento. Apesar de tudo, ele envolvera-se com uma assessora da Polícia Judiciária, portanto, sua colega, num momento em que ela estava absolutamente abalada e, possivelmente, o homem teria a noção de que o sexo, mesmo que consentido, não seria bem visto pelo seu superior.

Face ao sucedido, ela sentira-se realmente usada quando ele a acusara de ser cúmplice da Felina. Porque, afinal, no momento dos factos tinha-se entregue num puro ato de amor total entre dois seres convergentes e agora apenas se sentia sodomizada, face às verdadeiras intensões do companheiro daquela noite. Por isso mesmo não tinha como perdoar a Vítor Melo. Não queria afirmar que não voltaria a trabalhar com a PJ, agora que o homem fora obrigado a mudar-se para a PSP, mas certamente que uma decisão desse calibre ainda ia levar o seu tempo.

Para a reconstituição do assalto ao museu, a TVI, tivera acesso à mesa cortada de forma perfeita para retirar a barra de ouro por baixo, porém, ao querer fazer a reconstrução deste passo, não arranjara forma de o fazer com a precisão com que o trabalho fora feito e, ainda por cima, em silêncio. Este era, aliás, um dos grandes mistérios do roubo da gata. Para simular a perfeição e o silêncio tiveram que filmar sem som e só depois o editar posteriormente por cima da gravação. Mas, na realidade, como o teria feito a pantera ninguém sabia ao certo.

Foi igualmente entregue na estação, pelo senhor Januário, uma sequência de cópias de fotos da Felina com o seu fato, mas sem quaisquer especificações técnicas, sem mais explicações que não fosse a palavra TVI. O sujeito descobriu-as na sua caixa do correio após receber uma chamada da Felina a pedir-lhe que verificasse a correspondência.

As fotografias da Felina tinham sido a base para a ideia da criação da série de nove programas e da própria novela. A primeira fotografia apenas indicava no seu verso que o fato para parecer real tinha de ser criado a partir de um tecido respirável, elástico e preto, bem junto ao corpo da modelo utilizada. Porém, nada dizia sobre a composição do verdadeiro, nem sobre os acessórios visíveis nas imagens.

Quanto à moeda utilizada pela estação de televisão fora usada a que era propriedade da Dona Hermenegilda. Aliás, a espontaneidade da senhora e o seu uso na recriação da cena do furto, fora a chave do sucesso do videoclipe sobre a descoberta do roubo. Embora o ator que fazia de coordenador da PJ também tivesse representado deliciosamente o furioso Intendente.

A propósito dos mistérios sobre o assalto ao museu, existiam muitos aspetos que pareciam não ter explicação. Segundo Cassandra Banheiras, até o aparecimento da carta da Felina na redação da TVI acontecera de modo insólito. Com efeito, ela dera pela existência da carta, dentro da sua carteira, na redação, mas que não fazia a menor ideia como é que esta fora lá colocada nem em que altura. Quanto ao museu em si, os peritos não tinham encontrado qualquer falha na segurança.

Por um lado, não existia o mínimo vestígio de arrombamento. Por outro, tinham sido vistoriadas as imagens das gravações da vigilância sem se conseguir entender como é que o assalto não aparecia nas filmagens. Não tinha sido verificado qualquer corte nas gravações originais, nem mesmo faltava um segundo que fosse nas filmagens.

O que dificultava ainda mais a investigação era o facto de não se saber sequer em que dia fora realizado o roubo. Podia ter sido num qualquer momento desde o início até ao final da exposição. A empresa responsável pela vigilância do museu ainda ia fazer uma triagem mais fina percorrendo todos os conteúdos filmados, mas sem uma pista concreta da data e sem a deteção de cortes na gravação, nem mesmo uma hora para a ocorrência, alegavam ser dificílimo deslindarem o caso.

Fontes da Polícia Judiciária apontavam os dias do Operafest Lisboa 2022 como sendo os mais prováveis para a realização do assalto, contudo, não tinham prova alguma de que assim fora. Outro mistério era o corte feito na madeira de faia com um centímetro exato de profundidade. Tudo indicava ter sido efetuado a laser, porém, não se conhecia nenhum equipamento portátil para o fazer eficazmente e, ainda por cima, tendo a madeira uma almofada forrada a veludo sobre ela, que não indicava qualquer queimadela gerada por contacto com o laser.

O trabalho indicava impossibilidades sobre impossibilidades e o mistério era muito mais complexo do que parecia. Por exemplo, como é que a fazer um corte a laser por debaixo de uma mesa com um equipamento que tinha que ser portátil, mas que não existia, a gata conseguira fazer um círculo perfeito? Só este simples círculo parecia mais um impossível.

Íris, foi ouvindo o que diziam as estações de televisão. Aquelas recriações, reportagens e episódios da TVI iam manter as atenções sobre si ligadas aos televisores e não à sua atuação na vida real e isso era excelente. O Governo já viera, entretanto, dizer que o facto de o país estar grato à Felina, como efetivamente estava, pelo seu papel no desmantelamento do bando de criminosos, esta mantinha-se uma marginal e que se fosse capturada teria de responder pelos seus crimes.

Contudo, depois de julgada e mostrando arrependimento, mas principalmente graças às muitas atenuantes que lhe eram devidas, podia ser que a pena não fosse muito pesada e que até não era impossível que se viesse a pensar em alguma espécie de indulto. Agora, que teria sempre de ir a julgamento isso era inegável porque havia que se fazer justiça.

Carmo Notas, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, também declarara publicamente, na sua conhecida voz irritante de cana rachada, que não podia haver perdão para os criminosos e que não era uma boa ação da ladra aqui e ali que a livrariam de ser remetida, no devido tempo, para trás das grades onde merecia estar.

Dizia o homem que, num país democrático como Portugal, jamais existiria lugar para uma heroína de banda desenhada absurda se vir armar em delfim do povo, enquanto enchia os bolsos à custa deste. O povo tinha a previdência, a segurança social, as IPSS, o SNS e até a Câmara Municipal de Lisboa, no que aos seus munícipes dizia respeito, para tomarem conta dele.

Nunca uma vida marginal e fora da lei seria, neste país, um paladim do que quer que fosse. A Felina não passava de um mau exemplo numa sociedade moderna. Achava até deplorável o papel de heroína que a TVI lhe estava a tentar atribuir. Uma pessoa que vive do roubo e depois distribui umas migalhas do fruto dos seus crimes, pela sociedade, não era digna de louvor, mas de condenação, de repúdio e de repulsa por parte de todos os portugueses. Os verdadeiros heróis eram os trabalhadores da saúde, das instituições de solidariedade social, os bombeiros, as forças da ordem, a proteção civil, até ele que, humildemente, servia diariamente o povo de Lisboa, com abnegação e vontade de lutar por uma vida melhor para os seus munícipes.

 

(continua) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 46

A Felina - 46.jpgAquele pensamento de sodomizar a gata dava-lhe alguma pica. Se calhar, provavelmente, nem precisaria de a forçar a isso. Podia ser que ela, uma vez caçada por ele se decidisse a entregar nos seus braços antes de ser devidamente enjaulada, para poder pagar pelos seus crimes. Com as mulheres nunca era fácil prever a reação, contudo, a ideia não lhe parecia de todo descabida.

Independentemente da imagem que o másculo Intendente fazia de si próprio o retrato apresentado por Cassandra Banheiras do polícia era totalmente o oposto. Para a estação de televisão o sujeito não era mais do que um arrogante e pretensioso polícia, absolutamente machista, de mau caráter e com tendência para o abuso de poder. Ora, esta visão antagónica da realidade é que levava o indivíduo a pensar que ia ganhar facilmente os processos em tribunal. Iria exigir milhões de compensação.

Contudo, embora o assalto fosse o enfoque do primeiro episódio da série sobre a Felina, o que daria origem aos seguintes e à criação da própria novela, era o que aparecia numa pequena apresentação daquilo que seria a restante série, mesmo antes do primeiro episódio terminar. Com efeito, existia muito mais que o público em geral desconhecia sobre a famosa gata. Em primeiro lugar, ela não aparecera só agora no panorama criminal português.

De acordo com o testemunho de Hermenegilda Fonseca e do livreiro Januário do Ó, a Felina começara a sua atividade há dez anos. Este facto dava a entender que a mesma deveria ser uma mulher entre os trinta e os trinta e cinco anos de idade. Altura em que ambos referiam terem sido praticados os primeiros roubos conhecidos e assinados. Sim, sim, porque a gata assinava sempre os seus feitos desde a primeira hora. Segundo o senhor Januário ela não queria ser acusada de fazer algo que efetivamente não fizera, por mais espetacular que um roubo pudesse ser.

Era assim mesmo e a PSP confirmava. Todos os crimes da bichana eram assinados por uma medalha, tipo moeda de dois euros, com uma imagem de uma cabeça de pantera de um lado e da pantera completa do outro, tendo em ambas as faces, escrita, no topo, a palavra Felina. A medalha era totalmente feita de cobre, revestida com um verniz transparente muito fino.

A polícia pensava que o revestimento a verniz, não só não permitia que o cobre oxidasse, como ajudava a peça a reluzir no escuro, nas noites em que os roubos eram praticados, de maneira a permitir que o assaltante fosse devidamente identificado. Pela busca feita pela TVI, por todo o país, principalmente na zona metropolitana de Lisboa, existiam até à presente data trezentos e sessenta e quatro medalhas ou moedas da Felina, nos registos de prova da pantera negra, nos arquivos da PSP, da GNR e da PJ.

Com efeito, chegara à redação da TVI uma carta da gata a confirmar que iniciara a sua atividade em 2012, explicando que vinha de uma família de honrados ladrões, que se perdia em muitas gerações passadas e que sempre assinava os seus trabalhos. A carta, que confirmava os testemunhos policiais, de Hermenegilda e de Januário, adiantava ainda, numa folha A4, de papel timbrado com as imagens das faces da medalha, que jamais roubava gente honesta e que só roubava o Estado ou Instituições sob a sua alçada, porque o Estado não era efetivamente uma pessoa de bem.

As surpresas da TVI, relativamente à Felina, não se tinham ficado apenas pelo número de roubos efetuados que constavam nas diferentes polícias. Uma outra, fora a descoberta de que a ajuda prestada à Polícia Judiciária em identificar e prender os cabecilhas do maior bando de criminosos alguma vez capturado em Portugal, deixando-os prontos a serem caçados pela PJ, com provas dos restantes contactos nacionais e internacionais, de toda a rede existente e das diferentes atividades e negócios que possuíam, não era a única efetuada pela pantera.

Com efeito, todos os meses, dois fins-de-semana por mês, desde há dez anos, apenas com algumas exceções, em meses em que a gata não devia estar no país, que a Felina entregava à polícia, principalmente em esquadras da área metropolitana de Lisboa, vários bandidos das mais diversas espécies, sempre com provas dos seus crimes.

Para ela era indiferente que eles fossem fabricantes, traficantes ou armazenistas de drogas, assassinos ou assaltantes violentos, chulos ou gente envolvida em tráfico humano ou de armas e até violadores, pedófilos ou simplesmente gente que prejudicasse gravemente o ambiente.

Em resumo, andavam na casa dos milhares, os marginais entregues pela gata às devidas autoridades durante todo o tempo em que atuara. No entanto, não se tratava de evitar a concorrência como seria fácil de se pensar. Todos os bandidos em causa dedicavam-se a atividades em que parecia não haver qualquer código de honra ou em que os crimes eram violentos. Situações e crimes que não constavam no modo de operar da pantera, que revelava um padrão muito restrito de código de honra.

Nas principais esquadras da noite lisboeta não parecia haver um polícia que desejasse ver a Felina ser apanhada, embora todos afirmassem que cumpririam o seu dever, se o tivessem que fazer, perante um flagrante, coisa que até aqui nunca tinha acontecido, segundo as afirmações constantes nos vários testemunhos de guardas e oficiais das esquadras da PSP envolvidas na segurança da noite na capital.

Mas, afirmava a estação de televisão nada disso era tão relevante como a última grande descoberta feita pela TVI. Com efeito, a IPS, sigla que se traduzia pela Irmandade da Pantera Salvadora, era uma espécie de confraria informal, que contava já com mais de mil elementos, era a prova de que a Felina não era uma ladra vulgar.

Assim, ao que parecia, as verbas roubadas nos trezentos e sessenta e quatro roubos efetuados eram, em grande parte, distribuídas pela larápia por pessoas com necessidades graves e que precisavam urgentemente de dinheiro para resolverem os seus problemas, fossem eles meramente financeiros, de saúde ou de sobrevivência. O importante para a gata era que, sem a sua ajuda, esta gente, muita dela pertencente às classes mais desfavorecidas da população, visse as suas situações acabarem sem solução ou, pior ainda, em tragédia.

Segundo os dados do senhor Januário, que era o líder da informal Irmandade da Pantera Salvadora, as ajudas não se limitavam à área metropolitana de Lisboa, mas espalhavam-se por todo o território português, incluindo os arquipélagos da Madeira e dos Açores. Adiantava ainda que sempre que alguém era ajudado pela pantera, a situação não era apenas uma mera contribuição, não! Ela resolvia de vez o problema da pessoa necessitada.

O relato de Dona Hermenegilda Fonseca registava os sessenta e cinco mil euros que recebera da Felina, há vários anos atrás, numa altura em que precisava da verba para que o seu filho efetuasse, em tempo útil, um transplante de medula óssea por causa de uma leucemia. A verba não lhe permitira apenas operar o filho, mas também aguentar-se enquanto tomava conta dele, durante a sua recuperação em Londres.

Porém, afirmava que depois disso já recebera outra verba, desta vez para fazer face à inflação e à subida do custo de vida. O modo como este testemunho fora relatado em primeira mão, ao vivo na televisão, por entre a emoção da mãe, colocara meio país de lágrimas nos olhos de tão vivido que o mesmo provara ser. No final do primeiro episódio, a senhora ainda fizera um apelo sentido para todos os apoiados pela Felina, se juntarem, enviando os seus dados e contactos para a Irmandade da Pantera Salvadora.

A TVI ainda entrevistou um advogado sobre a legalidade dos donativos da Felina. Estariam as pessoas a receber um donativo legitimo, válido e legal? A opinião do especialista em doações, donativos e ações de solidariedade foi positiva. A haver crime este só poderia ser imputado à pessoa que deu o dinheiro, caso este tivesse sido roubado. Já quem recebe, não tem como saber se o dinheiro pertence legitimamente à própria Felina, que pode até ter fortuna própria ou se é fruto de algum roubo.

Entretanto, a providência cautelar, interposta pelo Intendente Vítor Fernandes de Melo à TVI, como forma de impedir a repetição da transmissão deste episódio ou dos outros da mesma série, foi rejeitada pelos tribunais ao abrigo da liberdade de imprensa.

Segundo o tribunal, os fundamentos apontados não apresentavam prova suficiente no que à verdade dos factos diziam respeito e, portanto, a aplicação de tal providência seria um atentado ao dever de informação de uma estação de televisão e à liberdade de imprensa, pelo que jamais poderia ser aplicada face aos prossupostos então expostos como justificativos da mesma. O Intendente ainda tentara recorrer desta decisão com uma nova redação da providência, contudo, uma vez mais, acabara por ver essa segunda tentativa rejeitada com base nos mesmos motivos da primeira recusa.

 

(continua) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 45

A Felina - 45.jpg

XI

O Museu Pariu um Rato

XI

 A entrevista na TVI e na CNN Portugal, foi preparada com requinte. Foram entrevistados o Diretor do museu, o Diretor Adjunto da Polícia Judiciária Carlos Farelo, o representante da companhia de Seguros Fidelidade, o representante do Banco de Portugal, alguns Seguranças do Museu e até um subcomissário da polícia participara, não se sabe bem como, mais uma série de gente, sob recomendação da estrela da noite, a Encarregada da Limpeza e Higiene do Museu Nacional de Arte Antiga, a Dona Hermenegilda Fonseca, bem como o dono de uma livraria da baixa lisboeta, um tal de Januário do Ó.

Ao mesmo tempo o Expresso Online (tal como o de formato de papel do dia seguinte) apresentava a sua reportagem original e exclusiva sobre o assalto, complementada com uma série de investigações efetuadas sobre o perfil da Felina, a quem a publicação apelidava da versão portuguesa feminina do Robim dos Bosques dos tempos modernos.

O Expresso assinalava numa secção especial que a Companhia de Seguros Fidelidade, que segurara a exposição, ia mesmo para a frente com o argumento que não pagava o valor do ouro roubado, porque o objeto do seguro fora efetivamente adulterado. Eles tinham feito o seguro a uma exposição e em ponto algum da apólice constava a armadilha montada pela Polícia Judiciária.

Quer a televisão, quer o semanário apresentavam um vasto dossier sobre o que se sabia da Felina. Porém, para espanto da população em geral, vários aspetos da atividade da gata foram publicamente revelados e estes faziam toda a diferença. Em poucos dias a ladra, que tinha ajudado a Polícia Judiciária na operação do milénio contra o bando armado do brasileiro Jô Muttley, passou de um estatuto de uma ladra normal para a condição de Robim dos Bosques no feminino e de justiceira heroína da vida real, uma pantera negra como que saída das histórias da banda desenhada para o dia-a-dia dos portugueses.

Cassandra Banheiras, ao contrário do jornalista do Expresso que apenas na sexta-feira lançou um caderno dedicado à Felina, apresentou uma série de nove episódios transmitidos dia sim, dia não, imediatamente a seguir aos jornais da noite da TVI e da CNN Portugal. O impacto foi de tal forma estrondoso que a CNN Internacional adaptou a série para a língua inglesa e a divulgou internacionalmente nos seus canais.

Ambos os jornalistas iniciaram as histórias do mesmo modo. O roubo, por parte da Felina, da exposição estival dedicada ao primeiro ouro vindo do Brasil, durante o período colonial, no Museu Nacional de Arte Antiga. Detalhadamente, e com testemunhos, explicavam que a exposição fora uma ideia criativa de um ex-elemento da Polícia Judiciária, para desenvolver uma armadilha eficaz com o fito de capturar a pantera negra.

Apresentavam o perfil do autor do plano, à data um coordenador principal da PJ, especialista em crime e com provas dadas na instituição, mas que atualmente se encontrava ao serviço do Comando Metropolitano de Lisboa, com a patente de Intendente de seu nome Vítor Fernandes de Melo. O conceito da armadilha era simples: atrair a gata ao museu e não a deixar sair.

O sujeito, tinha intempestivamente, acusado a mais recente Assessora da Polícia Judiciária, a Doutora Íris Lobato de Lemos Pessanha Vasconcelos, de cúmplice da pantera negra, por esta ter sido a primeira pessoa a ver e a descrever fisicamente a Felina, isso na noite em que graças ao alarme dado pela assessora, tinha sido desmantelado o pior bando de criminosos em Portugal, liderado pelo famigerado Jô Muttley, que previamente, nessa mesma noite, a Felina manietara deixando provas e pistas para que a PJ conseguisse desmantelar o bando em Portugal e no estrangeiro.

Ora, o simples facto de a assessora e a gata terem estado ambas na quinta de Sintra, onde o bando fora encontrado, e ainda o de a doutora ser igualmente assessora no Museu Nacional de Arte Antiga, levara o indivíduo a avançar com a acusação sem sequer ter prova alguma, nem mesmo circunstancial. Fora, aliás, essa mesma acusação, feita em público e no museu, que acabaria por ditar o abandono do coordenador principal da PJ e a sua passagem como Intendente para a PSP.

Quisera ainda o destino que, no roubo da barra de ouro de dez quilogramas do museu, a Felina, deixasse várias mensagens dirigidas especificamente a Vítor Melo explicando-lhe que não se atiça uma pantera com vara curta e agradecendo a barra de ouro. Toda a descrição da descoberta do roubo da barra pela boca da testemunha Hermenegilda Fonseca fora absolutamente hilariante e levara a estação de televisão a contratá-la para ser o fio condutor dos nove episódios da série.

A estação informava ainda que o Intendente do Comando Metropolitano de Lisboa da Polícia de Segurança Pública se recusara a prestar qualquer declaração em sua defesa e que, ainda por cima, apresentara queixa em tribunal da TVI, da CNN e do Expresso, por difamação da sua imagem e da sua elevada reputação policial e de investigação criminal.

Logo no primeiro episódio da série de Cassandra Banheiras, com a colaboração de Hermenegilda Fonseca, fora efetuada, com utilização de diversos atores famosos da estação, uma recriação da cena da descoberta do roubo do ouro que fizera as delícias do público. A cena fora recriada em português e depois em inglês para a transmissão internacional.

O primeiro episódio de “A Felina” denominado “O Museu Pariu um Rato” teve tal sucesso, pulverizando todos os recordes de audiência, alguma vez registados em Portugal em todos os tipos de programas, que a estação de televisão criou a dita série.

Sabia-se igualmente que estava em preparação uma novela com o mesmo nome a estrear brevemente no horário nobre da TVI, porque, revelava Cassandra Banheiras, a própria Felina, acordara ceder todos e quaisquer direitos do uso da sua imagem, se os mesmos fossem distribuídos por uma lista de gente carenciada, que ela enviara conjuntamente com a carta de cedência dos direitos de imagem e televisivos.

Afirmava ainda que se dispunha a ajudar a produção a produzir uma imagem realista de si mesma, se esses pagamentos de direitos continuassem a ser entregues aos carenciados indicados ou a indicar em futuras listas. A TVI comprometia-se assim publicamente a atribuir um montante por episódio da série e posteriormente da novela como cachê da Felina a ser entregue aos signatários listados pela pantera negra, mas utilizando a norma da estação de prestação de um serviço de solidariedade social, de maneira a poder declarar legalmente a distribuição dos rendimentos atribuídos.

Vítor Fernandes de Melo assistira revoltado ao sarcasmo com que a sua pessoa fora tratada pelo canal de televisão. Ele recusara liminarmente ser entrevistado pelo canal e avançara judicialmente sobre a estação e sobre o semanário. Aquilo era inadmissível. Iam todos pagar pelo desaforo. Bem, quase todos, afinal fora ele que não agira do melhor modo com Íris.

Porém, na altura, estava tão convicto da sua descoberta que não raciocinara convenientemente. Mesmo podendo suspeitar da fulana, devia ter investigado mais cuidadosamente. Essa fora, todavia, a sua única falha em todo o processo e não admitia qualquer outra culpa, fosse ela qual fosse. Mas iam todos pagar por isso. Ele jurava que iam ou ele não se chamasse Vítor Fernandes de Melo. Enquanto o tribunal tratava dos casos com a TVI, a CNN e o Expresso ele iria ajustar contas com a Felina. Quem é que aquela rafeira pensava que era? Ele jamais admitiria ser humilhado por uma mulher, quanto mais uma imbecil qualquer mascarada de gata.

O mais enervante de tudo para o Intendente era o facto de o estarem a fazer passar por oportunista, chico esperto, desprovido de inteligência e ainda por cima por o compararem publicamente a um rato. Um idiota de um rato apanhado na sua própria armadilha, como um mentecapto qualquer. A Felina fizera dele um palhaço, mas não seria a última a rir. Ela não percebia, mas não se tratava de saber se ele a ia apanhar, nada disso. A questão que se punha era apenas quando é que ele a ia apanhar? Nem mais, nem menos. Aí, nesse dia, a vingança seria consumada.

Já a coitada da Íris ele entendia. Fizera o que quisera dela, lambuzara-se à vontade e à vontadinha, deixando-a pensar que podia namorar com um indivíduo do seu nível e depois quisera prendê-la. Era normal que sendo apenas uma mulher, pois já tinha mais de dezoito anos, se pudesse sentir ofendida. O sexo feminino tinha muito aquela mania estupida de se vitimizar em vez de agradecer a atenção de um verdadeiro macho. Sim, a tipa não voltaria tão cedo a estar com alguém do seu gabarito.

Contudo, teria sido mais honesto da parte dela, reconhecer o privilégio de ter tido sexo com ele e desfrutado da sua companhia e conforto. Seria igualmente coerente desculpar-lhe a acusação lógica de que ela era cúmplice da Felina, até porque, se ele não tivesse visto com os seus próprios olhos a gata, Vítor preparava-se era para a acusar de ser ela própria a pantera negra. Até tivera muita sorte.

Realmente a grande diferença de altura e de linhas entre as duas fizera-o compreender que não havia como uma ser a outra disfarçada. Ninguém disfarça volume e tamanho apenas pondo um fato colado ao corpo. Fora isso que o levara a concluir que se elas eram pessoas diferentes e, então, só podiam ser cúmplices uma da outra.

Uma vitória insignificante numa batalha, só lhe iria dar mais mérito quando a guerra estivesse acabada. Aí o mundo veria quem era, afinal, o verdadeiro guerreiro. Teria sido giro se ele se pudesse gabar de ter ido ao cu à Felina, mas isso ainda não estava de todo afastado. Tudo dependeria do modo como a conseguisse agarrar. Ele estava convicto de que não falharia. Aliás, como nunca falhara até ali. Por vezes, apenas perdia umas batalhas, nada mais.

 

(continua) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 44

A Felina - 44.jpgÍris, estava pasmada. Vítor, tinha uma fixação. Mas também tinha azar, escolhera-a a ela. Não sabia há quanto tempo ele tinha o seu ficheiro na pasta de prioridades, todavia, ela levava-lhe vários anos de vantagem. Vantagem a ajudar a polícia, vantagem a conquistar o carinho da população e a vantagem, fundamental, de ser mais inteligente do que ele, embora ele se achasse o suprassumo da barbatana.

A repetição, aos fins-de-semana, da limpeza de Lisboa, por parte da Felina, durante os Ciclos da Sombra, mantinha a alta consideração por parte dos polícias das esquadras, se bem que, nos centros de comando a coisa não fosse equivalente. Durante os três dias que se seguiram os resultados das ações noturnas da gata tinham ultrapassado o fim-de-semana anterior. O único senão, era não ter conseguido caçar pedófilo algum, nem sequer qualquer rede mafiosa ligada a essa praga. Porém, os flagrantes de práticas que envolvessem pedofilia implicavam que ela tinha que estar na altura certa, no local exato.

Na segunda-feira, dia vinte e nove, bem como na terça, dia trinta, o estudo ocupara-lhe integralmente o tempo. Mais do que um passatempo, aprender novas coisas da sua área deixava-a feliz. Ela gostava daquilo como quem gosta de bife em sangue com batatas fritas. Não conseguia explicar, mas que lhe dava um prazer enorme, lá isso dava.

Se uma gata não come o bife, ou a gata não é gata, ou o bife não é bife, pensava Íris, recordando a sabedoria popular. Com ela era mesmo assim, se havia algo de que ela gostasse, como dedicar-se às suas áreas de estudo, não havia exceções e era sempre com deleite que se entregava aos seus estudos. O mesmo acontecia com o desporto e as rotinas físicas para se manter em perfeita forma.

Quando, por fim, chegou a quarta-feira, dia trinta e um, a jovem contava os minutos para a chegada das seis horas da tarde. Finalmente, depois de horas de frenesim o momento acabou por acontecer. O Diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, o Diretor Adjunto da PJ, Carlos Farelo, o Intendente do Comando Metropolitano de Lisboa, um tal de Vítor, e um representante do Banco de Portugal dirigiram-se à zona da exposição do ouro colonial.

Com o encerrar das visitas públicas ao museu, naquele dia, esta terminara e era preciso recolher as peças, embalá-las e levá-las de regresso às catacumbas do Banco de Portugal. Não existia grande excitação no ar. Havia, isso sim, desalento. A armadilha para caçar a Felina, falhara em toda a linha. Os quarenta elementos extras da PSP já tinham sido dispensados, a carrinha com os dois inspetores da Polícia Judiciária também regressara à Sede, sem que nunca tivesse sido necessário alguém agir.

Primeiro tinham sido desmontadas todas as vitrines e os expositores onde se encontravam os mais diversos artefactos do ouro colonial, enquanto eram recolhidos os panfletos e a publicidade sobre a exposição, espalhada pelo museu e, finalmente, chegou o momento de abrir a vitrine e retirar a barra de ouro. O alarme foi desligado na perna da mesa e no vidro, a vitrine removida e o representante do Banco de Portugal avançou com ambas as mãos para retirar a pesada barra de ouro de cima da almofada preta e a voltar a meter na sua caixa própria.

Todos apanharam um enorme susto quando a barra voou pelos ares. A força que o homem calculara para levantar algo com um peso de dois garrafões de água, em contraste com o peso pluma da falsificação oca, fez a peça voar das mãos deste, devido ao contraste entre as forças aplicadas e o real peso da peça. Foi, a quase vinte metros de distância, Dona Hermenegilda, que fora chamada para limpar a sala, quem, à entrada da mesma, a acabou por apanhar quase no colo. A mulher, com o objeto nas mãos, surpreendida, olhou para os funcionários do museu, para os seguranças presentes e para a elite pasmada e disse simplesmente:

      ― Esta merda não pesa dez quilos! Os senhores não me levem a mal… ― continuou a senhora da limpeza. ― Mas algo me diz que aqui há gata! Isto não pesa mais que um penso higiénico por usar. Pois é, não te fies em água que não corra, nem em gata que não mia…

      ― Deixe-me cá ver isso. ― disse o Intendente, que chegava vermelho de raiva, em passo de corrida, quase arrancando a falsa barra das mãos de Hermenegilda. ― Não é possível…

A quase insustentável leveza da peça pesava toneladas ao olhar de todos.

Novamente, a simpática senhora da limpeza chamou a atenção dos presentes naquela sala. Todos seguiam, mais uma vez, o seu braço esticado, de dedo em riste, apontando para a almofada de veludo negro na mesa onde estivera a barra de ouro. Reluzindo serena, suavemente poisada, descansava brilhante, por entre a negritude envolvente, a moeda de cobre da Felina. Carlos Farelo esticou a mão e com as pontas dos dedos retirou a brilhante e novíssima moeda da pantera, atirou-a ao ar em rotação, para a voltar a apanhar no voou, fechando a mão em seu torno.

Por baixo da moeda via-se agora um pequeno papel dobrado em seis. Era uma tira fina apenas com uma frase simples que rezava assim: “Quem não tem cão, nem cadela, caça com gata, pois o gato está a gabar-se na viela”, leu o Diretor Adjunto em voz alta para todos. Depois reparou que havia uma frase mais pequena, na outra face da tira, que dizia: “Uma gata é… Felina numa casa guardada pelo rato Vítor”.

Dona Hermenegilda desatou a rir, agarrou o seu carrinho de limpeza e saiu da sala à gargalhada. Ainda a conseguiam ouvir à distância a repetir, por entre gargalhas, «“o rato Vítor” essa é boa, muito boa… “o rato Vítor”» e de seguida «a Felina papou o rato Vítor, essa é boa», seguindo-se mais gargalhadas a ecoar pelo museu a fora.

O rato Vítor espumava de raiva, aproximou-se da mesa e agarrou furibundo a almofada ali poisada, por baixo mais uma mensagem em letras gordas e grandes num papel A5 dizia: “Olá Vítor, eu sabia que tinhas que ser tu a tirar a almofada, deu-te o sono? Ficas avisado que nunca deves atiçar uma pantera com vara curta. Se faz favor pede desculpa por mim ao Museu e ao Banco de Portugal, a culpa foi tua que não te lembraste que à noite todos os gatos são pardos. Sabes… os ratos julgam-se gente, já as gatas são deusas. Adeus”.

Independentemente da fúria do Intendente que continuava em crescendo, a que se juntava o facto de ter sido roubada uma barra de ouro que valia mais de cinquenta mil euros, já sem falar do valor histórico, o melhor de tudo para os presentes na sala era o gozo da Felina ao Intendente. A maioria dos presentes já se ria, fazendo comentários jocosos e piadinhas próprias. Depois havia o olhar assassino de Vítor que ainda ajudava mais à galhofa.

O representante do Banco de Portugal dizia ao Diretor do Museu que era um roubo de cinquenta mil euros, sempre era dinheiro, mas que o valor histórico era realmente diminuto ou mesmo inexistente. A barra era apenas uma de mais de quinhentas que ainda tinham guardadas do primeiro carregamento do Brasil. Não sendo ele o dono, mas o Estado, aquele roubo bem que valia o dinheiro. Na sua vida era a primeira vez que se divertia com um assalto.

Só o representante da Fidelidade, a companhia de seguros que segurara a exposição parecia chateado. Apontava para os agrafos pregados ao redor do círculo por onde saíra a barra e dizia ao Intendente que a companhia não ia achar graça nenhuma àquela gracinha. Não se tinham apercebido que estavam a segurar uma armadilha. Ia expor o problema aos seus advogados, pois o que constava na apólice era um seguro de exposição.

Enquanto muitos riam, outros faziam o relatório da ocorrência, o clima de boa disposição só era quebrado pelo homem da Fidelidade, ainda às voltas com a defesa legal da companhia e da fúria desmedida do Intendente. Depois dos relatórios feitos, das perícias e das buscas efetuadas, bem como o levantamento dos testemunhos, a exposição foi transportada em segurança para o Banco de Portugal já devidamente acomodada e aquele episódio pareceu ficar terminado.

Como nesse dia não havia espetáculo no jardim, a polícia judiciária pediu ao Diretor do museu se podia encerrá-lo, mantendo apenas os seguranças. Eles precisavam fazer uma peritagem mais profunda e era melhor se fosse feita assim, desse modo. O homem concordou e dispensou todos os funcionários que ainda se encontravam nos seus turnos, garantindo que o dia seria pago integralmente pois tratava-se de um fator externo à casa, o que conduzia ao fecho das portas.

Dona Hermenegilda adorou a novidade, ainda há pouco tempo começara o primeiro turno e ia receber pelos dois, podendo ir de imediato para casa. Era mais uma folga paga para agradecer à Felina. Foi arrumar as suas coisas e saiu do museu muito bem-disposta. Já na saída, do outro lado do passeio, na Rua das Janelas Verdes viu a sua nova amiga, de costas para si, encostada num sinal de trânsito, a falar ao telemóvel.

A mulher atravessou a rua e aproximou-se da outra que ainda não dera pela sua presença. Esperou um instante pois ouviu a amiga a despedir-se ao telefone e, assim que esta desligou, bateu-lhe no ombro. Íris deu um saltinho, como que meio assustada e depois fez-lhe um enorme sorriso. Dona Hermenegilda perguntou-lhe se tinha um tempinho para um café, tinha novidades para lhe contar. A outra concordou.

Hermenegilda, que acabara de saber por um dos seguranças a parte da história a que não assistira, precisava mesmo de expandir a sua alegria com o acontecido. A amiga vinha mesmo a calhar. Mal podia esperar por começar o seu relato de tão excitava que estava. Nem tinha o filho para tratar, que naqueles dias de turno duplo ficava cinco portas ao lado da sua casa, no apartamento da irmã mais velha, ao cuidado desta.

Finalmente, instalada numa esplanada a tirar partido da brisa fresca do fim de tarde, a Dona Hermenegilda, a acabar de beber meia mini de Superbock, pelo gargalo, enquanto Íris se agarrara ao seu copo de imperial, começou o relato do acontecido. Porém, parou de imediato. Íris, fizera-lhe sinal para esperar, assim que ela dissera qual era o assunto. De dentro da pastelaria vinham a sair duas pessoas que ela conhecia bem dos seus encontros sociais. Um, era jornalista do Expresso e a outra, era a apresentadora, pivô e jornalista da TVI, Cassandra Banheiras.

Íris, fez-lhes sinal, eles aproximaram-se e ela perguntou-lhes se não queriam um exclusivo, em primeira mão para os seus órgãos de comunicação social. Teriam de pagar, mas a sua amiga Hermenegilda dava-lhes o exclusivo a ambos do assalto da Felina, acabado de descobrir, ao Museu Nacional de Arte Antiga. Os dois tiveram de contactar os seus superiores e finalmente por cinco mil euros cada, puderam ouvir a história da Dona Hermenegilda.

Ainda por cima a senhora era uma mulher de quarenta anos de boa aparência, cara alegre e bonita. O jornalista gravou o relato e mais umas fotos que Íris lhe enviou por e-mail. Já Cassandra Barreiras, depois de ouvir toda a história, partiu com a outra para os Estúdios da TVI para gravar a entrevista. Ficou combinado o Expresso Online e a TVI lançarem a notícia no dia seguinte à noite, à hora do noticiário da TVI e da CNN Portugal.

 

(continua no próximo capítulo) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 43

A Felina - 43.jpgNa segunda-feira de manhã, quando o Diretor do Museu chegou ao seu gabinete, Íris, bem-disposta, estava à sua espera junto à porta. Este abriu a fechadura, entrou e pediu-lhe que ela entrasse também. Foi com enorme satisfação que recebeu os dois exemplares idênticos do projeto, feito a contar com o PRR, o Programa de Recuperação e Resiliência, candidato a duzentos e cinquenta milhões de euros da Comissão Europeia, conforme prometido, perfeitamente dentro do prazo.

O nome do projeto “A Memória de um Povo pela Arte” prometia um dos maiores apoios de sempre de Bruxelas ao setor da cultura caso este passasse. Tal feito nunca fora tentado, mas quando a Doutora Íris Vasconcelos o explicara pela primeira vez, no dia em que ela pedira uma entrevista no museu, convencera-o logo de início.

Aliás, José Pereira Tucano, afirmava à rapariga que nem teria sido necessária a carta e a explicação ao vivo do Diretor Nacional da PJ sobre o incidente de sexta-feira. Ele nunca acreditaria nas barbaridades que o coordenador superior da Polícia Judiciária dissera. Ela agradeceu a confiança e devolveu a chave do seu pequeno gabinete durante aquelas semanas. Estava tudo limpo e pronto a usar por um qualquer novo colaborador.

Já de saída, tendo passado pelo bar, encontrou a Dona Hermenegilda ainda ali. A mulher tinha um ar cansado. Certamente decidira tomar o pequeno-almoço antes de rumar a casa. Íris, tirou da sacola um livrinho A4 e passou-o à amiga. Continha seiscentos nomes de pessoas ajudadas pela Felina e os respetivos contactos, para ela entregar ao seu amigo livreiro. Agradeceu ainda, novamente, toda a ajuda e confirmou-lhe que conseguira entregar o projeto a tempo, unicamente graças à preciosa ajuda de Hermenegilda, a quem estava eternamente agradecida.

Ficaram as duas a falar sobre a barracada de sexta-feira dada pelo fulano da Judite, sobre a Felina e muito sobre a vida de Hermenegilda, uma mulher batalhadora, que nunca desistia de nada, nem das pessoas em quem acreditava. Nunca tivera muitas amizades, até se formar a Irmandade. Agora, ao contrário do seu passado, tinha um vasto grupo de gente em quem confiava, gente com quem sabia poder contar.

O mês de agosto arrastou até ao dia trinta e um os Ciclos da Sombra. Só a dia um de setembro é que recomeçavam, com o início do Quarto Crescente, os Ciclos da Luz. O Quarto Crescente era o Ciclo da Ascensão de Bastete, a deusa egípcia com cabeça de leoa ou de pantera, dependendo da época, também considerada a deusa dos felinos, a protetora das mulheres nascidas sob o signo astrológico ocidental de Leão.

Bastete, era a deusa da luz por ser filha do deus Sol, Rá, mas dedicada muito afincadamente a Lua, sendo conhecida na mitologia egípcia principalmente como a deusa da Lua. Bastete, era também a protetora do lar, da casa, da fertilidade, dos segredos e mistérios femininos, sendo a única entidade no Egito capaz de gerar um eclipse solar. Ela dominava o poder da vingança e da justiça pelas próprias mãos.

Existem ainda mais segredos na mitologia desta deusa. Bastete é apontada em muitos estudos mitológicos como filha secreta de Ísis com Rá, mas é de Ísis que ela herda o título de deusa da sexualidade, da fertilidade e do lar, bem como a capacidade mágica da mãe orientada para a magia e os mistérios da noite e da Lua.

É a ela que se deve a referência ao vinho tinto, como uma bebida sagrada e com poderes ocultos. Tempos houve em que a festa do vinho tinto dedicada a Bastete, em Bubastis, cidade do delta no Nilo, no lado oriental, juntava setecentas mil pessoas em celebração. É por causa destas festas que ela é igualmente conhecida como deusa da música, da dança e do vinho tinto.

Por tudo isto, o primeiro ciclo dos Ciclos da Luz era designado pelo Ciclo da Ascensão de Bastete, sendo a entrada no Ciclo da Lua Cheia o Ciclo do Poder Supremo da deusa. A Felina, como o seu fascínio pelo fantástico e pelas mitologias clássicas, gostava de se imaginar como a encarnação viva de Bastete. Daí o Sortilégio da Lua Cheia ser para ela mais um facto real de que uma simples fantasia. Nas suas aprendizagens e estudos universitários ninguém, que na discussão académica falasse de modo menos simpático de Bastete, lhe conseguia levar a melhor na argumentação. Até porque, dizia, só uma deusa muito poderosa é que podia trazer sempre com ela, enquanto sua guardiã, a cruz egípcia da vida.

Este fetiche de Íris por Bastete era o que fazia da Felina a ladra e a poderosa durante os Ciclos da Luz, no Quarto Crescente e na Lua Cheia, e, por outro lado, a justiceira e a vingadora, nos Ciclos da Sombra, enquanto ocorriam o Quarto Minguante e a Lua Nova. Os seus gadgets e as suas armas, uma vez associadas ao fato completo da pantera negra, substituíam os adornos, as pulseiras e a cruz da vida de Bastete, no seu entender, na perfeição.

O seu fascínio pela DC Comics, pela Disney e Marvel, assim como pela BD, com todos os seus heróis e vilões, associado às maravilhas da mitologia egípcia em particular e ás mitologias clássicas no geral, tinham levado, à criação da Felina, numa altura em que ela ainda apenas tinha dezassete anos. Depois disso, não havia como fugir, apenas lhe restava aperfeiçoar e melhorar a personagem à realidade e à sua vida adulta. Fora exatamente isso o que Íris fizera.

A terça, quarta e quinta-feira foram dias de rotina, basicamente passados a estudar. Íris, sabia que no ano seguinte teria o seu novo doutoramento para fazer, porém, se o seu projeto para o Museu Nacional de Arte Antiga fosse aprovado já tinha a garantia da Universidade de que o podia apresentar como tese final do doutoramento como perita em arte clássica e arte antiga em geral e esperar pelo resultado, sem perder mais um ano. Contudo, ainda falta um importante se…

Foi no início de sexta-feira que a jovem soube que o seu antigo coordenador superior da polícia judiciária entrara para o Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, como Intendente. Não havia dúvidas que o Vítor se movia bem nos meandros da autoridade. A novidade chegara-lhe pelo Subcomissário Paulinho Fonseca, quando ligara para a esquadra do Calvário, para avisar que iria trabalhar mais três noites seguidas.

O novo Intendente começara, nessa manhã, a pedir relatórios a todas as esquadras da Área Metropolitana sobre tudo o que eles tivessem à cerca da Felina. Ora, eles sabiam que ela quase só trabalhava com as esquadras localizadas nas zonas de maior criminalidade em Lisboa e, vá, uma ou outra mais em caso de maior necessidade. Ele já conseguira falar com todas essas e nenhum deles queria perder a gata por causa de um abelhudo.

Ora a única prova que eles tinham contra a gata era a moeda que ficava nos locais onde ocorriam os crimes, mas isso não era prova concreta de que ela estivesse envolvida na captura dos sujeitos. Tanto quanto sabiam, até podia ser um imitador. Toda a gente sabia da história do museu, caramba, eles tinham lá tido quarenta homens a guardar aquilo dias a fio. A história alastrara que nem fogo.

Não fora a Felina diretamente a prejudicada, mas o tipo acusara uma doutora de ser cúmplice da gata, dias depois de se ter feito passar por um homem apaixonado por ela e a ter sodomizado. Um tipo daquele nível não merecia ajuda. Ainda por cima a coitada da mulher, uma jovem, nem tinha nada a ver com a pantera negra, até ajudara a Judiciária no caso da década. Que grande paga que a Judiciária lhe dera.

Então e agora vinha o mesmo tipo, que fizera o que todos sabiam, chatear a malta da PSP e logo com galões de Intendente? Mas nem pensar, ninguém podia jurar o envolvimento da gata e enquanto assim fosse ninguém abriria o bico. Nenhum deles queria perder o apoio da Felina. Eles esperavam que ela acreditasse neles. Ninguém ia bufar fosse o que fosse. Ter um tipo daqueles no Comando Metropolitano de Lisboa era uma vergonha para a Polícia de Segurança Pública.

A gata agradeceu o apoio e pediu-lhe para avisar as outras esquadras que ia estar de serviço na sexta, sábado e domingo. Paulino, satisfeito pela resposta, garantiu que passaria a palavra. Mostrando-se curiosa, a mulher ainda perguntou o que acontecera à sujeita a quem o Intendente acusara. Não acontecera nada, nem o Diretor Nacional da PJ acreditara nele, afirmava com uma gargalhada o Subcomissário Paulinho. O tipo seguira um palpite. Pelo que sabiam a tal doutora fora a primeira pessoa a ver a Felina, no muro da quinta de Sintra, e ele achara que a doutora a ajudava a ela.

A gata ainda comentou que era estranho, ao fim de dez anos, um tipo desses não saber que ela trabalhava sempre sozinha. Senão, disse a rir, ela não passaria de uma gata escondida com o rabo de fora. Não ia pôr a sua segurança em risco com uma parceira civil. Era isso mesmo que constava nas esquadras, dizia Paulino. Era isso mesmo.

 

(continuar) Gil Saraiva

 

 

 

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