Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente
correto.
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Cá estou eu, minha amiga, a tentar, com algum esforço, manter-te a par da minha recuperação pós-operatória. Fui tentar investigar o significado de ter sido operado pela chamada “técnica dos furinhos”. Descobri que o nome correto para a coisa é: laparoscopia, que significa que esta é uma técnica cirúrgica mais moderna, menos invasiva, e que utiliza pequenas incisões (com cerca de 5 mm) para realizar uma grande variedade de procedimentos cirúrgicos.
O cirurgião utiliza para esse fim um laparoscópio, que é uma câmara de alta resolução ligada a um cabo de fibra ótica, que lhe permite visualizar num ecrã os diferentes órgãos, por exemplo no abdómen. É assim possível tratar a área afetada de uma forma pouco invasiva e cómoda, tanto para o cirurgião como para o paciente, sem necessidade de fazer grandes incisões, sendo usada para a remoção de órgãos doentes, como a vesícula biliar ou o apêndice.
A noção é agradável e fiquei mais tranquilo depois de me inteirar do assunto, afinal, hoje era dia de mudar, pela primeira vez, os quatro pensos que tenho na barriga. Saber que ia ver quatro pequenas incisões com cerca de 5 mm cada, deixava-me completamente sossegado. Ainda me lembrava de o médico me ter dito que a minha operação tinha sido complicada, o que o obrigara a aumentar o tempo da mesma, da meia hora prevista, para duas horas e meia.
Porquê? Porque ele não encontrava a vesícula, que estava escondida debaixo do estômago e por detrás do meu intestino. Ainda por cima a dita cuja era enorme, muito espessa e estava repleta de aderências, queira lá isto dizer seja o for (sendo que cheira a complicações).
Ao olhar para a barriga, desprovida do habitual tapete de pelos caraterístico do macho latino, achei estranho o tamanho dos pensos originais. Eram enormes, tendo cerca de 5 cm de largura por 8 cm de comprimento. Ri-me. Tanto tamanho para tapar incisões de 5 mm. Via-se logo que eu fora operado num hospital privado, onde tudo é à grande e à francesa.
Removi os pensos e ia-me dando um ataque. O furinho mais pequeno tinha 1,5 cm de diâmetro e os dois maiores 6,5 cm cada um, sendo que ainda havia um quarto de 2,5 cm, ou seja, no total a minha pança fora retalhada em 17 cm de extensão. A segurar as incisões estavam 17 agrafos metálicos arrepiantes cravados na carne.
Se aquilo era a famosa “técnica dos furinhos” eu era o Santo António a pregar aos peixes. A expressão vernácula que termina em “que o pariu” veio-me imediatamente à mona. As crateras abertas no meu bandulho insinuavam uma zona de guerra, onde não existira clemência. Os buracos situados nos extremos da pança distavam 25 cm um do outro e ainda havia outros dois de permeio, sendo que um orbitava na orla do meu umbigo com 7 agrafos a ornamentá-lo.
Ficou claro para mim que jamais poderia voltar a servir de modelo de nu para os alunos de Belas Artes. A arte do meu cirurgião, que se gabara à minha frente, já no recobro, de ter executado uma obra prima, parecia-me muito equivalente à do avô do meu primo, após acabar de retalhar o animal por altura das festas da aldeia, na matança do porco.
De um momento para o outro deixei de ser o “cara de cu” da antevéspera para passar a ser o “pança de porco”. Por isso as minhas dores eram o que eram. Qualquer movimento, tosse, espirro, repuxavam os 17 agrafos cravados na carne. Se somarmos a isso os órgãos remexidos pelo talhante, ainda à procura do seu lugar natural, não tinha porque me admirar de sentir o tipo de dores que efetivamente sentia.
Agora vivo na contagem decrescente para voltar a ver face a face o cirurgião que me operou. Faltam 9 dias. De momento parece uma eternidade, mas eu hei de olhar o homem olhos nos olhos e nessa altura discutiremos ombro a ombro o conceito de obra-prima “que o pariu”. Por hoje é tudo, Bertinha, um abraço do amigo,
A operação já passou. Segundo o médico cirurgião que me operou (e que afirmou estar farto de fazer este tipo de operações) nunca lhe tinha calhado uma vesícula enorme, bastante espessa, repleta de aderências e escondida por detrás do intestino.
Ainda hoje não sei se esta descrição me foi transmitida para justificar as duas horas e meia de operação, em vez dos 30 minutos costumeiros. O que sei é que o cirurgião pensou várias vezes em me abrir, pois teria sido mais fácil de conduzir a cirurgia.
Também me foi explicado que não podia ficar dois dias no recobro porque o meu vale, aquilo que o SNS contratou com o Hospital Trofa Saúde da Amadora, apenas requisitava serviço ambulatório, não estando previsto qualquer internamento.
Pelo que me foi dito, parte das imensas dores que sinto devem-se ao facto de o estomago e os intestinos terem sido tremendamente mexidos e remexidos para que o médico conseguisse acesso à famigerada vesícula e de forma a conseguir cortar-lhe o acesso.
O que isto quer dizer é apenas que o Serviço Nacional de Saúde não estava disposto a pagar aos privados uma operação que se podia tornar complicada, como veio a ser o caso, mas apenas uma operação de rotina, não deixando sequer uma alternativa ao Trofa Saúde para me poder internar se algo não corresse dentro do previsto, como, aliás, veio a acontecer.
As dores que sinto, para tentar explicar mais claramente, são equivalentes às que teria se um cão, estilo Dobermann, me estivesse a abocanhar seis diferentes partes internas da minha pança ou bandulho. Ainda por cima são permanentes e não passam com os dois analgésicos e o antibiótico que estou a tomar. A sensação de dor aguda constante só me lembra uma matilha de hienas a banquetear-se na minha barriga, num festim macabro a que eu sou obrigado a assistir vivinho da silva.
Segundo o médico este conjunto de dores só amanhã é que começará a abrandar. Espero, minha querida amiga, que assim seja. Caso contrário estou seriamente tentado a chamar uma ambulância e a apresentar-me nas urgências do Hospital São Francisco Xavier.
Rir, soluçar, tossir, espirrar ou soltar um traque, são atos que provocam uma dor equivalente ao arrancar de um dente do siso, a frio. E não penses que sou daqueles que se queixam por tudo e por nada. Pelo contrário, costumo aguentar sem um esgar a maioria das dores que tenho.
Quando fui operado à boca, para colocar implantes totais, em cima e em baixo, tiveram de usar uma rebarbadora, em miniatura claro, para me aplanarem as bases dos maxilares onde iam aplicar os implantes. A operação foi até ao fim sem a anestesia ter pegado e mesmo assim, não sofri metade do que sinto hoje.
Segundo o meu médico só quinta-feira é que posso comer alimentos sólidos. Lá vou eu perder mais uns quilitos até ficar bem. Porém, minha querida amiga Berta, como tu bem sabes, eu arranjo sempre um motivo ou outro para fazer sorrir os que me rodeiam. No caso desta operação existiram vários que só dá para rir. Como eu não o consigo fazer, ris tu em meu lugar, combinado?
Uma enfermeira novita (não teria mais do que 25 anos) veio-me buscar à sala de espera, para me levar para o bloco operatório. No caminho, passámos por um vestiário, onde ela me pediu que trocasse a minha roupa, pela bata, chinelos, touca e máscara que usaria no bloco. Assim fiz. Num cacifo coloquei as minhas coisas, vesti a bata branca, e meti a touca azul, na cabeça, com dois buracos para as orelhas e a máscara e os chanatos. Sobrava-me uma espécie de pulseira verde que eu não sabia para que servia.
A rapariguita bateu à porta e fez uma cara estranha de espanto quando me viu fardado. Fiquei sem saber o que pensar. Ao fim de uns segundos a miúda lá arranjou coragem para falar. “-Senhor Gil, as cuecas é para pôr em baixo e não na cabeça.” Disse ela visivelmente atrapalhada. Eu que julgava que os buracos da touca eram para as orelhas fiquei assim informado que serviam antes para pôr as pernas. A touca era a espécie de pulseira verde-alface, que se abria toda, para se conseguir enfiar depois na cabeça. Segundo a rapariga tudo aquilo era evidente e eu lá lhe expliquei ter pouca experiência daquele tipo de kits.
Afinal, os buracos da cueca pareciam mesmo feitos à medida para as orelhas, para depois se conseguir encaixar a máscara com facilidade. Só que, como tudo aquilo era elástico também neles acabaram por caber as pernas. Finalmente, a jovem abriu de novo a porta e pareceu mais tranquila quando me viu devidamente composto. No caminho para o bloco ainda disse duas vezes; “O senhor Gil desculpe, mas ainda não acredito que achou mesmo que a cueca era para pôr na cabeça…”
E com esta minha aventura termino a carta de hoje. Como vês, minha amiga, devo ter cara de cu, pois usei a cueca no sítio errado. Recebe um beijo deste teu saudoso amigo, que não te esquece,
Já ultrapassei as 500 cartas diárias para ti desde finais de outubro de 2019. Olha que é muita carta, minha querida amiga. Estávamos ambos a precisar de um intervalo. Foi este, aliás, conforme tínhamos combinado, o motivo da minha ausência nos últimos tempos.
Claro que retomarei a nossa rotina, mas agora sem a obrigação diária. Não só nem sempre se justifica, como nenhum de nós quer fazer da escrita ou da leitura, uma chata obrigação. A minha carta de hoje prende-se com um acontecimento previsto para amanhã:
Vou finalmente, depois de um ano e 5 dias em lista de espera, ser operado à vesícula, a uma hérnia e nem sei bem a que mais. A minha entrada no Hospital da Trofa Saúde, na Amadora, está prevista para as 7,30 da manhã. Ontem fiz o teste PCR à Covid-19, cujo resultado veio negativo e, portanto, estou apto para ser intervencionado.
Embora esta seja uma operação de rotina, que os cirurgiões costumam fazer com uma perna às costas, no meu caso há algum risco acrescido. Em primeiro lugar, fui obrigado a parar a medicação preventiva de AVC e a fazer um tratamento alternativo. Em segundo lugar, de acordo com o meu médico, tenho uma vesícula grande e mais espessa do que a média o que dificulta o trabalho. Em resumo, as hipóteses de não ficar internado depois da intervenção são de 50%.
Claro que eu, enquanto otimista nato, estou convencido de que regresso a casa já amanhã. Todavia, a realidade é que essa é apenas uma de duas hipóteses. Seja como for eu prefiro pensar que retornarei no próprio dia e que o resto é somente um cenário hipotético.
Fui ver as estatísticas e as operações do tipo da minha têm uma taxa de sucesso de 95% e uma probabilidade de sair no próprio dia de 80%. Assim sendo, como sempre fui um rapaz com sorte, tudo aponta para um imediato regresso a casa, sem problemas de maior.
Em síntese, minha querida amiga Berta, amanhã “desconfino” a minha vesícula e mando-a à vida, para que esta possa ter as suas próprias aventuras sem ter de me arrastar com ela nesses processos. Por hoje é tudo, aproveita bem os “dias do desconfinamento 2.0” que amanhã começam. Deixo um beijo saudoso, este que nunca te esquece,
Cá estou eu para terminar a novela da peça do chinês. Pese embora o principal já ter sido dito, falta relatar-te como tudo ficou concluído. Até porque já foi este ano de 2020, que a história finalmente chegou ao fim.
Depois da saída do hospital e apenas o ano passado, já tive outros episódios e chatices, mas que nada tiveram a ver com a narrativa da pedra na vesícula. No caso do último ano foram 9 AVC que me abalaram um pouco, mas que ficaram controlados um pouco depois do verão, sem terem causado grandes danos irreversíveis. Apenas um dedo da mão esquerda se mantém permanentemente dormente. O que é uma gota de água no vasto oceano de chatices que me podiam ter acontecido.
Só que desta vez recorri aos serviços da CUF, porque um seguro de saúde, que mantenho já há uns anos, me permitiu aceder, sem custos demasiado elevados a esse hospital. Tive sorte, não me descobriram a origem dos AVC, mas pelo menos, conseguiram controlá-los. Vistas bem as coisas já não foi nada mau.
Mas, voltando à vaca fria, é hora de escrever sobre a conclusão. Embora todo o problema tenha levado um pouco mais de 3 anos para ficar concluído, não teve o final esperado. Vamos à parte VI, da minha aventura, em torno da peça do chinês, com o epílogo a que chamei: o depois…
No meu regresso ao hospital, para ir buscar os exames e análises que não me tinham sido entregues, passados quase 4 meses, aproveitando o facto de o Bonifácio estar de regresso, devido a mais uma crise, acabei por visitar, por mera coincidência, a mesma enfermaria onde estivera internado.
Um novo paciente, que agora ocupava a cama onde eu estivera quando fora internado, acabou por se meter na conversa entre mim e o meu amigo. Parecia um sujeito um pouco amargo e de mal com a vida. Uma daquelas pessoas que, amiga Berta, nunca está satisfeita com tudo o que lhe calhou ou, pior ainda, que foi escolhendo ao longo do seu próprio percurso. O facto de estar mais falador devia-se, disso tenho absoluta certeza, à disposição alegre e contagiante do Bonifácio. O homem consegue fazer uma pedra sorrir.
Depois de um curto preâmbulo, após ter percebido que eu estivera ali, devido a um problema de pedra no canal biliar, para fazer uma CPRE, é que a sua expressão ganhou mais vida e vontade de interagir connosco. Por fim, lá me informou que o pai tinha morrido em 2005, devido a uma CPRE. Ele e a família até tinham posto o hospital em tribunal e, só não tinham ganho, porque aquela malta está toda feita uns com os outros. Era uma vergonha. Então não tinham decidido operar o pai sem consultarem a família? Tinham mesmo e trataram-no à balda, relatava revoltado.
O Bonifácio que já devia ter escutado aquela história, pelo menos umas 3 ou 4 vezes, ainda perguntou, com jeito, se o pai tinha autorizado ou não a operação. Tinha sim, respondia o outro, mas o homem estava velho demais para poder decidir, afinal estava quase nos 80 anos. Podia até estar lúcido, mas já não era admissível que tomasse uma posição daquelas sozinho.
O paciente insistia no tema. Mas não fora por causa disso que o tribunal não dera razão aos familiares? Fora, fora sim, mas o juiz estava era comprado. Pois eles tinham conseguido provar que o pai não sabia os riscos que corria e, mesmo assim, não tinha sido feita justiça. Não se podia mandar um homem daquela idade, assim sem mais nem menos, para uma intervenção delicada daquela envergadura, com anestesia geral e quase 2 horas de operação, sem lhe serem descritos os riscos inerentes a um tal procedimento, que ainda por cima era extremamente delicado.
Dizia ele que 10 por cento das intervenções com o CPRE derivavam para pancreatite aguda e em morte do paciente. Mas havia muitos mais problemas associados, como septicémias, perfurações, inflamações diversas, o homem não se calava, a coisa era grave e, segundo ele, apenas metade dos intervencionados passava pelo processo, sem riscos ou complicações de maior. A investigação do advogado concluíra que, se as consequências do pós-operatório fossem atribuídas à CPRE as mortes aumentariam mais 30 por cento.
Não acabara ele de me ouvir contar que o hospital se tinha esquecido de avaliar o meu estado, depois da CPRE, e que passara 4 meses com uma crise de fígado, provocada por falta de tratamento ao contraste, que me tinha sido administrado na operação? Confirmei, uma vez mais, que era verdade, mas acrescentei que talvez eu devesse ter ido mais cedo ao Egas Moniz, tentar descobrir o que é que se passava. A culpa do calvário de 4 meses era tanto minha como deles. Quem estava mal era eu.
Sim, sim advogava o sujeito, mas a culpa, o erro inicial, era do gastroenterologista que fora negligente. E se eu tivesse morrido? Sim, porque ele sabia de casos em que a reação ao contraste tinha provocado a morte do paciente. Eu devia era pôr o hospital em tribunal e pedir uma choruda indeminização. Isso mesmo, era o que aquela malta precisava para ver se aprendiam.
Afinal, não se brinca com a saúde das pessoas. Era verdade, confirmei eu a tentar conformar o revoltado individuo, contudo, eu nunca o faria, pelo simples facto de também eu ter sido descuidado e não ter ido saber porque é que me sentia tão mal. Mas não era alguém que se sente mal e que, ainda por cima, que está com receio de ter alguma coisa na vesícula ou no canal biliar, que tem de ser culpado por não ter agido. Eu era médico? Não era! A culpa era sempre do médico. Por causa das pessoas agirem como eu é que aquela malta ainda não tinha sido posta na ordem, afirmava.
Tendo falado isto, o homem concluiu que eu não era digno de perdão. Acabara de arranjar mais um culpado para a morte do pai, muitos anos depois do homem ter morrido. Eu! Bem, ou pessoas como eu, aquela gente que não faz queixa e não avança com as devidas ações para pôr fim às injustiças. Ainda a resmungar entre dentes, virou-se de costas e abandonou o diálogo connosco. E é assim, minha querida Berta, que uma pessoa se vê acusada de um crime que nem sabia ter existido. Está tudo na forma de raciocinar e naquilo que vai na cabeça de cada um.
Eu e o Bonifácio ainda ficámos na conversa mais uma boa meia hora e fomos juntos até ao snack-bar na saída do hospital. Nenhum de nós parecia na disposição de voltar a ouvir o revoltado paciente que à data ocupava a minha antiga cama, o que poderia muito bem voltar a acontecer se, no entretanto ele fizesse mais algum raciocínio distorcido como os anteriores. Foi engraçado rever aquele local, sem cadeira de rodas, e poder fumar um cigarro a um nível bem mais elevado do que sentado.
Para além disso, eu fiquei aliviado por me ver fora de um sítio que me fazia suar frio e que me causava náuseas e tonturas. Ele tomou um chá, feito com uma erva qualquer que forneceu à paisagem que nos atendeu ao balcão e eu bebi uma cola fresca. Estávamos ambos aliviados de nos termos livrado do queixoso paciente do terceiro piso. Finalmente despedimo-nos e eu regressei a casa.
Durante os seguintes 2 anos e oito meses e pouco, recebi mais umas 4 marcações para terminar a intervenção que ficara por concluir e também, pelo mesmo número de vezes, a mesma foi cancelada por, sem qualquer surpresa, nova avaria na peça do chinês. Só que, cada vez a avaria levava mais tempo a ser reparada, e cada vez também, a peça demorava mais a ser encomendada à China. Os cortes crescentes e bem pesados no Serviço Nacional de Saúde, asseguravam que assim tinha de ser e pouco havia a fazer em relação à situação.
Finalmente, no passado dia 3 de janeiro deste ano, 2020, recebi a tão aguardada chamada. A minha operação para remoção da vesícula e colocação do stent no canal biliar estava marcada para dali a 3 semanas. A médica que falava comigo informava-me que dificilmente se correria o risco de novo adiamento, porque o hospital optara, depois de um difícil consentimento da tutela, por mandar vir a peça, para o equipamento da CPRE, da Alemanha. A nova peça estava a funcionar em pleno, sem problemas há mais de um mês, pelo que achavam que a marcação era segura.
Já ia concordar quando algo despertou em mim um alarme. Tirar a vesícula? Mas eu não queria tirar a vesícula. Estava já há 3 anos sem problemas e, na época, nem se descobrira a origem da formação da pedra. O que eu tinha marcado era, apenas e só, a colocação do tubo, que ficara por pôr, devido à avaria do equipamento durante a minha CPRE.
Do outro lado fez-se silêncio por alguns segundos, a mim pareceram-me minutos, mas nestas situações o tempo é sempre mais psicológico do que real. Finalmente a voz da médica fez-se ouvir. Não, não, eu estava enganado. O que sempre estivera marcado fora a remoção da vesícula e a colocação do stent. Ela estava a consultar todas as marcações e respetivos adiamentos e era isso que constava na minha ficha.
Fui obrigado a contar que, após uma conversa com a cirurgiã, antes da minha intervenção, eu não tinha concordado com a remoção da mesma de forma preventiva, porque o hospital nem sequer conseguira concluir o que causara o aparecimento da pedra. Aliás, o médico concordara, embora tivesse insistido que já que iam ter de mexer podiam matar 2 coelhos numa só cajadada. Afinal, nada me garantia que não voltaria a ter outro calhau. Ao que eu rebatera que também nada me garantia que voltaria a acontecer, coisa com que ele concordara.
Portanto, concluía eu, ficou decidido, desde antes da CPRE que não haveria remoção de vesícula. Eu até podia ter toda a razão do mundo, informava-me a médica, mas não era isso que ali constava. Se eu não quisesse tirar a vesícula, 3 anos depois também já não fazia sentido colocarem o stent. Ficaria tudo anulado. Concordei e despedi-me da doutora.
Como vês minha querida amiga Berta, a peça do chinês andou comigo às voltas por 3 anos, para, quando finalmente foi trocada, me deixar de mãos a abanar sem concluir o procedimento começado. O depois, nunca é aquele que esperamos quando ainda estamos no antes. A vida é mesmo assim. Dá as voltas que entende, pelos caminhos que escolhe, e nós, apenas temos de conduzir com cuidado para evitarmos acidentes.
Despeço-me com um alegre até amanhã, acrescido de um beijo pleno de saudades, este teu amigo de sempre, que nunca te esquece,
Eis-me de volta com mais uma carta para ti. Confesso que esta nossa troca de correspondência me tem feito muito bem. Dou comigo mais alegre e mais aliviado sem saber bem porquê e, depois de pensar no assunto, acho realmente que tudo se deve a esta nossa troca de palavras. Obrigado por me escutares com tanta atenção. Eu, pelo meu lado estou sempre pronto a receber notícias tuas.
Hoje, continuando a minha aventura da peça do chinês, julgo que é chegado o momento de a peça entrar em cena. Deves estar curiosa e, embora não seja nada de surpreendente, sempre tem um ou outro aspeto cómico, por entre toda a estupefação que provoca.
Quando despertei, na quinta-feira, fiquei a saber que tinha de entrar em dieta zero. Ora, como tu sabes, minha amiga, o que eu entendo de dietas é o que escuto nas conversas que tenho contigo ou outras pessoas do sexo feminino, que, em certas alturas, falam dessa necessidade de moderar o que comem. Contudo, nunca tinha ouvido falar em dieta zero e, portanto, estava, em absoluto, na mais perfeita e maior das ignorâncias.
Ainda tentei fazer algum tipo de raciocínio. Por exemplo, no caso da Coca-Cola, quer na cola “Diet” quer na Zero, são reduzidos ou eliminados açúcares que existiam na bebida normal. Ainda pensei que ia ter que beber algo com sabor a formigas que me introduzissem numa água tipo Pedras Salgadas corando-a e cujo efeito, por entre o fervilhar das bolinhas de gás, plenamente carbonizado, teria como resultado, ao escorrer pela goela abaixo, a eliminação de qualquer tipo de açúcares que eu ingerisse com a comida. Santa ingenuidade. Nada disso.
Dieta zero, no meio hospitalar, é uma expressão amaricada para nos informarem que vamos atravessar um certo tempo de fome e sede enquanto, por cima da tua cama, estiver a placa com aquelas palavras escritas. Dito de outra maneira, o que acontece é que passamos a viver um determinado período de total abstenção de comida e bebida em que, por vezes, nos dão o direito a usufruir de um soro intravenoso, e isto se tivermos sorte, com o intuito desse soro nos suprir as carências a que ficámos sujeitos.
Tretas, comida e água que não me passe no estreito não é alimento, é sadismo. Mas afinal, porque raio é que, para além de ter de estar enfiado num hospital (mesmo padecendo de nosocomefobia ou de síndrome de “hospitalite”, ou seja, pânico de hospitais), ainda tinha que ser impedido de me alimentar?
Era tudo por causa de uma operação não intrusiva, servida de bandeja com uma anestesia geral como acompanhamento, pelas mãos de um cirurgião. A intervenção, opacamente apelidada de CPRE, tinha por objetivo partir-me o calhau.
O calhau, relembro-te, era o tal libertino fugido do estaleiro, o paquete transatlântico, que disfarçado de gôndola, se evadira de um lago chamado vesícula, e que me estava agora a obstruir o canal biliar. Assim, afundado, partido, dilacerado, desfeito ou eliminado o obstrutor, seria em seguida introduzido um tubo com vista a alargar o tal canal (o biliar, obviamente), para que esta mesma situação não se voltasse a repetir.
Era esta cirurgia, amiga Berta, eufemisticamente chamada CPRE, que significa “colangiopancreatografia retrógrada endoscópica”, e que é uma técnica que utiliza, simultaneamente, a endoscopia digestiva, procedimento que consiste na aplicação de tubos flexíveis internamente no paciente e que permitem a visualização de imagens do tubo digestivo em monitores de televisão, e o emprego da imagem fluoroscópica para diagnosticar e tratar doenças associadas ao sistema biliar e pancreático.
Ora, por outras palavras, isto não é mais do que uma interposição direta no seio do meu tronco, com uma série de tubos de plástico (que ainda hoje não sei ao certo por onde entraram), espero que pela goela abaixo, a que acresce um emissor de raios x e sei lá que mais, que não só me observam as entranhas, através de um circuito de televisão, como reparam determinados tipos de problemas do íntimo humano, neste caso, no meu. A minha intervenção recebera luz verde para avançar no dia seguinte.
Quando da minha entrada no Hospital Egas Moniz, depois de devidamente depositado na cama 316, fora de imediato informado que já existiam outros pacientes internados a aguardar o mesmo procedimento. Até se deram ao trabalho, nessa altura, de me explicarem que isso se devia ao facto de a máquina usada para a operação ter estado avariada e que, só nessa semana é que a peça chegara, vinda da China, tendo sido necessário desalfandegá-la. Tal facto significava que, só agora, tinha havido possibilidade de ser colocada no equipamento, corrigindo a deficiência.
Ora, imagina lá, minha querida Berta, como se sente um individuo que tem pânico de hospitais, a quem dizem que vai ter de sofrer uma anestesia geral, para depois lhe meterem tubos, aparelhos de raios x e sei lá que mais, pelo corpo adentro, assim que a maquineta que o cirurgião usa para a intervenção for reparada, com uma peça do chinês… consegues imaginar?
Assim sendo, como o meu caso era muito urgente e como os outros já tinham marcação, ficara decidido que eu entraria numa aberta, entre as marcações, ou no final das mesmas, isto se ainda houvesse tempo. Para me acalmar, alguém simpático ainda me referiu que estes tipos de intervenções demoravam entre uma a 2 horas e que era normal fazerem-se mais de meia dúzia por dia. Era um procedimento muito comum diziam-me e raramente apareciam complicações durante ou depois da operação.
Fiquei mais aliviado, eu não queria estar ali, até porque o meu pânico àqueles sítios aparecia e desaparecia conforme o cheiro a hospital me entrava mais ou menos pelas narinas, fazendo-me suar frio, criando-me náuseas, gerando-me cefaleias e mais uma boa dúzia de sintomas absurdos, mas, infelizmente, minha amiga, bem reais para mim. Contudo, a dada altura, lá consegui respirar fundo e ficar mais descomprimido, de tal maneira que até passei melhor aquele dia de estômago vazio.
Tinham-me acabado de dizer que, afinal, aquilo era uma operação de rotina e que a taxa de mortalidade estava reduzida a uns meros… um por cento. Pronto, respirei fundo novamente, o meu tratamento era algo de banal, rotineiro, customizado. Aquelas palavras soaram-me a baladas românticas e os meus ouvidos, magoados com os berros da minha própria voz nos dias antecedentes, pareciam agradecer e relaxar, finalmente.
A ajudar à festa, um outro paciente, alojado naquela mesma enfermaria, o Bonifácio, mantinha a “caserna” em alta, com um sentido de bom-humor malandro, alegre e superpositivo. Para ele, qualquer elemento esteticamente interessante do género feminino era, de imediato, apelidado de paisagem. A que ia juntando adjetivos e superlativos conforme a vista. Uma excelente escolha de termo uma vez que, quando falamos de paisagens, estamos a referirmo-nos a imagens que nos atraem pela sua beleza ou singularidade.
Acontece que, pelo piso 3 do Hospital Egas Moniz, nessa altura, apareciam algumas paisagens de 2 pernas que desafiavam, de pleno direito, as maravilhas naturais que vemos em canais como o “Nacional Geographic”. Depois, ouvir o Bonifácio falar da inveja, que umas cataratas quaisquer teriam, se vissem uma ou outra paisagem, entre as que passavam pelo corredor, era meia cura para os males daquela enfermaria.
Chegou, graças aos céus, a sexta-feira e, bem no final do dia, fui informado, com muito jeitinho, que a vaga não surgira e que podia parar a dieta zero. Depois veio a segunda vaga de informação com novidades ainda melhores, pois já me tinham pedido o jantar. Entretanto, enquanto retirava do topo da minha cama o letreiro da dieta zero, fui informado que a minha operação fora transferida para a segunda-feira seguinte, logo pela manhã.
A fome era tal que, depois de finalmente jantar, achei que a comida do hospital era bem superior à confecionada por um daqueles chefes de cozinha, famosos e premiados. Adormeci a soro e de barriga cheia, a sonhar com paisagens que me faziam sorrir e lembrar que era bom estar vivo.
Hoje ficamos por aqui, minha querida Berta, despeço-me com amizade, carinho e um sorriso para a paisagem que tu própria representas, este teu amigo de sempre,