Carta à Berta: A Minha Rua no Bairro de Campo de Ourique: O Meu Regresso... - Parte II
Olá Berta,
Agora, neste instante, estou um pouco mais em baixo de forma do que antes, mas queria deixar-te o restante relato deste meu regresso à minha rua, a Francisco Metrass, no meu doce Bairro de Campo de Ourique. Com efeito, num caso normal, nunca me teria sido dada alta do hospital, porém, estes são tempos Covídeanos, totalmente diferentes dos anteriores. Nem na medicina os protocolos são os que já foram. Na maioria das situações as consequências são graves e severas.
O Covid-19 impede, pelo simples facto de existir, a realização de uma série de operações não intrusivas, que utilizem aerossóis ou sistemas avançados de lazer, entre outras coisas, pelo que consegui apurar. Como não és médica posso falar assim, se fosses, se calhar era já corrigido com mil e um detalhes técnicos. Contudo, o que importa mesmo é que a cirurgia moderna está, neste momento, amputada de muitos dos seus avanços.
Ontem, ao início da manhã, o meu médico, o diretor de cirurgia geral do hospital, o Doutor José Guerreiro, mandou, tal como tinha feito no dia anterior, retirarem-me mais sangue para se poderem efetuar novas análises de forma a determinar, entre outras coisas, como estavam os níveis da Proteína C Reativa, um palavrão que descobri estar relacionado com a gravidade da minha infeção na vesícula.
Achei giro o facto do homem me fazer lembrar, desde que o conheci, o meu pai, também ele um médico cirurgião cuja vida já terminou há bem mais de 2 décadas. Não sei bem o porquê. Talvez o ar concentrado e conhecedor com que fazia a sua regular apalpação da minha pança, detetando, antes de mim, onde eu ainda deveria ter dores e a respetiva intensidade das mesmas.
Por fim, a meio da tarde, veio, pela terceira vez, examinar-me e só depois me confrontou com os factos. O cuidado com que usou as palavras para que eu entendesse o que se passava chegou a ser enternecedor. Em termos muito simples explicou-me que a infeção estava tratada a 90%. Se fossem tempos normais eu poderia ser operado pela “técnica dos furinhos” e, daí a dias, estaria de volta a casa, totalmente curado.
Contudo, a atualidade, imposta pelo Covid-19, impedia esse processo e ele teria de regredir, voltando ao método intrusivo da facada, cujo processo, embora ainda eficaz, era de mais difícil recuperação pós-operatória e estenderia a minha estadia no hospital numa altura pouco recomendável, para uma pessoa que tinha acabado de passar por 9 AVCs e que apresentava bastantes problemas respiratórios, devido aos meus mais de 50 anos de fumador inveterado. Ele recomendava, por isso, o meu regresso a casa, com dieta rigorosa e continuação de tratamento, até os novos métodos cirúrgicos poderem voltar a ser usados.
Marcou-me uma consulta para dia 8 de maio, para poder reavaliar a situação na altura. Acedi de imediato. Por isso o meu regresso ao Bairro de Campo de Ourique, passou de uma miragem a um facto de efeitos imediatos. A minha alta hospitalar foi dada pouco mais de uma hora depois.
De calças e blusa interiores pretas, revestidas por um roupão bordeaux de algodão polar, com umas sapatas de pele de andar por casa, bem serranas, calçadas, entrei no táxi já artilhado pelas novas normas covídeanas. Banco de trás, devidamente separado do condutor por um novíssimo acrílico protetor.
Por fim, cheguei ao meu bairro, à minha rua e à minha porta. Estava eu aflito, entre dores, para tirar a chave para abrir a porta da rua, vejo vir a correr, do outro lado da estrada, na minha direção, a neta da minha vizinha do rés-do-chão, de chave na mão, pronta a ajudar-me a entrar.
Não havia o que duvidar, estava em Campo de Ourique. Perguntou-me se precisava de ajuda para subir os 3 andares. Agradeci, mas disse não ser necessário e ela partiu, de novo, depois de me ver entrar no prédio. Levei 8 minutos a chegar à porta de casa. Finalmente entrei, cansadíssimo, mas feliz, pois estava de regresso ao lar. Acaba aqui, no ato de fechar a porta, o meu regresso a porto seguro. Recebe um beijo deste teu amigo de sempre,
Gil Saraiva