Carta à Berta: O Jardim...
Olá Berta,
Estou a pensar em ti. Isto quase parece o início de uma canção conhecida. “Hye! Nána, nána.” Porém, minha querida amiga, a verdade é que penso muitas vezes em ti. Sinto saudades dos nossos lanches ao fim da tarde, n’ “O meu Café”, olhando o Jardim da Parada, sempre pulsante de atividade.
Lembro-me de comentares amiúde um grupo de jovens, reunidos no coreto, a ver passar as moças mais bonitas do bairro, comentando baixinho entre si, coisas que tu tentavas adivinhar.
Ás vezes, saíamos do café e íamos até à esplanada da hamburgueria, cheia de gente, de um dos lados do jardim, onde tu adoravas estar em alternativa ao café, ali, a ver os patos a nadar de um lado para o outro, no pequeno lago central, ou olhando para as velhotas, alimentando pombos, espalhadas pelos bancos de jardim, ou admirando o bebé, que no carrinho dormia ou sorria, enquanto a mãe se sentava um pouco, para ganhar fôlego no seu regresso apressado até casa.
Lembras-te dos reformados a jogar à sueca, nas mesas metálicas agarradas ao chão, impassíveis aos ventos ou às cartas? Claro que te lembras. Da outra ponta do jardim, vindos do pequeno parque infantil, chegavam-nos os gritos das crianças entusiasmadas nos baloiços, sob o ar vigilante dos pais ou dos avós, que graças à vedação de madeira viam a sua tarefa mais facilitada.
Ainda mais atrás, havia sempre um barbudo a escolher um livro, na cabine telefónica transformada em minibiblioteca pública, onde as pessoas escolhiam livros para ler, trocando por outros que já haviam terminado.
Às vezes, um andarilho, sempre o mesmo, sentava-se no chão, junto ao posto paralelepípedo dos correios, a precisar de uma lavagem de cara talvez superior à do homem, que a ele se encostava. Ali ficava à espera que alguém fosse buscar uma trotinete ou uma bicicleta, daquelas de moedas, estacionadas no parqueamento, ali perto, dentro do passeio do jardim, a quem ele pudesse pedir uns trocos.
Era um andarilho vivo, algo intemporal, sem idade definida (já não o vejo tem uns meses), atento a quem atravessava as passadeiras perto dele, não se importando se vinham da cinquentona livraria Ler, que parecia existir ali para dar cultura ao jardim, ou da outra, a que dava para o lar, com paisagem única para as velhas árvores centenárias e bem catalogadas do jardim.
Sabes, minha querida amiga, ainda me lembro do nosso jogo, a tentar adivinhar se seria homem ou mulher, a entrar no táxi seguinte, na paragem de táxis, junto aos pequenos sanitários públicos, aqueles que tu dizias que só existiam ali para servir os taxistas mais aflitos, porque de resto nunca lá viras entrar mais ninguém. Não sei como fazias, o certo é que acabava sempre por ser eu quem perdia o jogo. A única vez que ganhei tive que te ir pagar um café como compensação.
Quanto te fartavas de estar sentada, levantavas-te e eu já sabia que era a hora do passeio vagaroso pelas lojas em volta do jardim, espreitavas sempre as 2 lojas chinesas, a mais pequena tipo bazar e a maior de roupa de senhora. Nessa última, vias sempre algo de que gostavas, mas nunca te vi lá entrar, para comprar fosse o que fosse.
Depois paravas junto ao multibanco do Santander e levantavas 20 euros, dizias sempre que podia ser que te apetecesse qualquer coisa, afinal, ali à volta, tinhas uma geladaria, uma loja de chocolates, 2 restaurantes italianos, uma espécie de bar, um café e 3 padarias e aquela outra loja, a onde só entravas uma vez por semana, a dos doces e bolos, tudo tornando a situação bem tentadora.
A verdade é que, normalmente, a escolha recaía sempre pelo bolo de laranja ou pelo de noz da padaria-pastelaria Trigo da Aldeia e mais umas 3 bolinhas de pão, malpassadas, fora a fatia de bolo na outra loja, normalmente à quarta-feira.
Depois era o tempo das montras, com nova volta em torno do jardim, desta vez vias as 2 sapatarias, a velha loja de antiguidades cujo dono era teu amigo, passavas rápido pela casa dos aparelhos auditivos, sempre a afirmar que daquilo não precisavas, bem como pela clínica dentária ou da loja de oftalmologia.
Não tendo tu filhos ou netos sempre achei graça ao facto de parares na loja de roupa para crianças e na outra de esquina que vende uns acessórios de cores suaves e que eu nunca entendi muito bem para que servem. O teu esclarecimento era sempre o mesmo, tinhas amigas que tinham filhos ou netos, o que, às vezes, implicava teres de oferecer umas prendinhas.
Inevitavelmente, fosse na primeira ou na segunda volta, acabavas por entrar na Clarel, a loja de produtos de limpeza e higiene, do mini preço. Contudo, saías sempre sem compras e a dizer que não entendias o que aquela loja fazia ali. As outras montras vias um pouco mais a correr, como a da agência de viagens ou da imobiliária, onde o teu comentário era de não teres dinheiro para aquilo. Às vezes, ainda te aventuravas por uma ou outra das ruas que iam dar ao jardim, para espreitar uma montra para onde já não olhavas há algum tempo.
Lembro-me de uma vez, em frente ao pequeno talho, na Rua de Infantaria 16, a poucos metros do jardim, tu me perguntares se aquelas comidas à base de carne, podiam ser preparadas contigo a ver o que lá punham dentro ou se tinhas que levar uma das expostas. Ainda te disse para entrares e perguntares, mas seguiste em frente.
Pois é, minha muito querida amiga Berta, hoje sentei-me no Jardim da Parada, bem no centro do nosso Bairro de Campo de Ourique, estava igual ao jardim das nossas paragens e passeios. As mesmas lojas, os mesmos transeuntes, as mesmas árvores históricas, as mesmas esplanadas e padarias, até o homem da bicicleta que tu adoravas tanto, aquele que andava às voltas pelas ruas, com um rádio a tocar músicas bem alto, vestido de vermelho e branco e com uma bandeira do Benfica presa numa vara na traseira, junto ao selim, até ele hoje voltou a passar… mas o jardim, não sei… senti-o, como dizer? Senti-o tão vazio, quase que agreste, e não, não era do frio, pois ia muito bem agasalhado, depois compreendi, faltava-lhe a alma, faltava aquilo que o tornava acolhedor, amigo e companheiro dos anos, faltavas tu. Mais nada, apenas tu, Berta. Beijo,
Gil Saraiva