Carta à Berta nº. 190: As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz em Tempos de Covid - Parte VI / VII - Os 3 Mosqueteiros - Ainda o Libânio
Olá Berta,
Está na altura de concluir o que te estava ontem a relatar sobre o terceiro mosqueteiro. Continuemos assim As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz. Finalizando as informações sobre o meu amigo de quase 77 anos de idade, resta-me contar-te o seguinte:
E)Cheio de um otimismo contagiante, regado com uns curtos períodos de desalento, o mosqueteiro ainda tinha esperança de salvar os tarsos e os metatarsos. Não se podia era irritar ou contrariar o pessoal do hospital. Fosse a senhora da limpeza, a auxiliar de ação médica, os enfermeiros ou os médicos. Essa era a regra de ouro. Quando lhe perguntei porquê pareceu espantado e afirmou conhecedor que toda essa malta se vingava com muita facilidade tratando em seguida muito mal o paciente refilão. Deu-me logo o exemplo que insistiu 2 vezes com uma enfermeira para poder usar o seu robe pessoal e que esta, de castigo, ainda lá no Hospital São Francisco Xavier, lhe retirara o relógio, o telemóvel, os óculos e até as próteses dentárias e que tinha ido tudo para um saco, para que a sua filha o levantasse na receção.
F)Libânio já tentara recuperar as suas coisas, mas tinha sido tudo em vão. Agora, por causa disso, estava a papas, pois sem dentes, não podia comer normalmente. Pedi-lhe o número de telemóvel da filha, uma advogada de sucesso, segundo o meu amigo, e liguei-lhe a expor o problema.
G)A Susana era uma simpática dama na casa dos 40, a mais nova das 2 filhas de Libânio, que, depois de falar comigo, ficou indignada com o sucedido. Quando lhe tinham entregue os pertences do pai tinham-lhe falado em procedimentos especiais por causa do vírus e ela nem fora indagar ou averiguar se era mesmo assim. Confirmei-lhe que naquela enfermaria todos possuíamos os nossos pertences e que ninguém nos tirara nada. Tinha era tudo sido desinfetado. No dia seguinte mestre Libânio recebia, por uma auxiliar de ação médica, o saco com as suas coisas e ainda a sua máquina de barbear.
H)Foi este pequeno facto que gerou a amizade entre nós os 2. O homem passou a poder falar com a família, mudou para comida sólida, já conseguia ver televisão e ler, parecia outro. Agora, informava ele, só lhe faltava conseguirem controlar-lhe a insulina e, mesmo que os dedos se perdessem, salvarem-lhe o resto do pé. Teve muita sorte, o médico foi cortando a carne morta, instruiu os enfermeiros de como mudar o penso, e aos poucos toda a parte morta foi removida e os dedos começaram a recuperar. A insulina é que estava pior. Saltava dos 90 para os 400, em termos dos níveis de açúcar, com uma facilidade quase assustadora.
I)Depois da minha saída, continuamos a falar ao telemóvel, tínhamos uma boa empatia. Ele era divertido, simpático e durante o tempo de hospital fora quem me impedira de ser mais refilão com o pessoal.
Não me vou alongar mais, apenas resta referir que, o Libânio beneficiou de um novo programa de tratamento em casa (foi o quinto beneficiário no país) e 4 dias depois da minha saída, continuou a sua baixa médica, em casa, com um médico e um enfermeiro a irem tratá-lo diariamente, fazendo a muda do penso do pé e acabando por conseguirem estabilizarem-lhe os níveis de insulina. Fiquei ali com um bom amigo, minha querida Berta. Por hoje é tudo que já me estiquei muito, recebe um beijo de despedida do teu grande amigo de todos os dias,
Gil Saraiva