Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente
correto.
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Não sei se terás paciência para leres as aventuras de um vagabundo no Hospital Egas Moniz. É uma história que dividi em 7 cartas para não ser uma coisa chata e que conta alguns dos aspetos mais interessantes desta minha última passagem por um local que respeito bastante, embora deteste hospitais.
Quer isto dizer que se tivesse de escolher algum hospital no universo do meu conhecimento para ter de passar os 12 dias que passei internado escolheria sempre este. No geral gosto do pessoal que lá trabalha, desde os médicos até às senhoras da limpeza. Porém, antes de partir para o Egas Moniz, no dia 4 de abril, passei a minha primeira noite, numa maca, nas Urgências do Hospital São Francisco Xavier.
Para quem odeia ambientes hospitalares, como eu, não sei se desde o tempo em que, enquanto criança, o meu pai era o diretor do Hospital de Olhão, no Algarve, há muitos anos transformado em Centro de Saúde e extinto enquanto unidade hospitalar, ou se do tempo em que acordei de um coma, após a tropa, no ex-anexo militar de Campolide, que, na altura, fazia parte integrante do Hospital Militar da Estrela, onde passei mais 6 meses internado na Clínica de Neuropsiquiatria, no terceiro piso da instituição, confinado, num espaço gradeado, e sujeito à companhia dos casos mais críticos da guerra colonial… pois o tempo dilui as perceções.
Não sei, dizia eu, de qual destas situações vem o meu ódio hospitalar, mas sei, que as urgências do São Francisco Xavier são as mais aceitáveis, que conheço, até à presente data, principalmente se comparadas ao Hospital Amadora-Sintra, um local de causar arrepios e fazer crescer a barba a meninas de 7 anos.
Quis o destino que a minha maca ficasse estacionada bem perto das secretárias das enfermeiras, logo na entrada da sala das macas. A minha chegada fora registada pelos Bombeiros do Beato que, no caminho, tinham gentilmente, feito a minha ficha detalhadamente. Recebera a coleira amarela, quero dizer pulseira (a confusão prende-se com a ideia do cão que ferozmente me abocanhava a zona da barriga, onde se situa a vesícula). A localização era excelente. Do meu leito dominava toda a sala das macas, com vista privilegiada.
O espaço estava à cunha e, no entanto, ainda lá conseguiram enfiar, naquele dia, mais 3 camas móveis. Fiquei a saber que estava num Hospital, na altura considerado Covid positivo, por ter uma ala de casos confirmados com o Coronavírus. Embora cheio de dores (não entendo como é que uma vesícula pode doer tanto) constatei que foram muito eficazes comigo. Por ordem temporal: soro, médico, diagnóstico primário, análises, ecografia, diagnóstico final, teste ao Coronavírus. Dia seguinte: médico, resultado negativo de teste, ordem de transferência para o Hospital Egas Moniz, transferência atribulada (já te conto, minha amiga), entrada no segundo hospital, nova coleira, piso 5, Cirurgia Geral, cama 527, quarto de 4 pacientes, continuação de dieta zero, cama de canto.
Pelas 10 da manhã chegaram os bombeiros para me transferirem de hospital, infelizmente, acabei por não ir, depois de já estar dentro da ambulância. Perguntarás porquê, amiga Berta, bem… porque me queriam levar sentado pois tinham 4 pessoas para levar de um hospital para o outro e avaliaram, a olho, que eu aguentava a viagem. Eu, que só estabilizava a dor, na altura, em posição fetal, recusei fazer o percurso. Quando fui descoberto no corredor de saída das ambulâncias pelo meu médico, todo enrolado e cheio de dores, foram mandados embora e não voltaram mais para me vir buscar.
Às 4 da tarde o meu médico voltou-me a descobrir numa sala de espera qualquer, enrolado, mais uma vez, e cheio de dores. Fez um pé de vento. Finalmente, às 5 e meia da tarde dei entrada no Egas Moniz. Assim termino este primeiro de 7 capítulos da minha estadia hospitalar em tempo de Covid. Recebe, deste teu amigo um beijo virtual,
Não te admires sobre algumas das coisas que vais ler nestas minhas “Memórias de Haragano”. São apenas uma forma um pouco diferente de ver o quotidiano, nada mais. Já agora, contigo está tudo fino, como ontem? Espero que sim. Nunca tenho grande jeito para estes protocolos da etiqueta social, mas pronto, quando me lembro sempre pareço um pouco mais civilizado. Peço é desculpa pelas vezes, e são muitas, em que entro logo nos assuntos sem a devida delicadeza da tradicional etiqueta.
Regressamos, pois, à temática que ontem iniciei. Vou-te enviando coisinhas aos poucos para que não te fartes rapidamente. Como toda a gente, também eu reparo em detalhes que talvez nem devesse ter notado, mas a vida é mesmo assim e tudo depende das circunstâncias.
Memórias de Haragano: A Revolução Começa na Cama – Parte I
“A cama é para muitos de nós o “Domínio do Ego”. Nela somos senhores do mundo, reis do universo, da vida que imaginamos poder ter, pintores nas telas da nossa imaginação, artistas plásticos nas esculturas moldadas à nossa imagem e semelhança. Por maior disparate que elaboremos na mente, por mais bárbaro que seja o julgamento que fazemos de algo, o que importa é que aqui a razão está sempre do nosso lado. Não existem pagamento de impostos, não há dívidas no talho, nem conhecemos alguém a quem devamos um favor. Num dia bom não ganhámos apenas um euromilhões, mas pelo menos três.
Voltei a saltar da cama deixando o meu ego a descansar. Sentei-me à secretária e reli o início do artigo sobre casamentos que estava a escrever para a Bodas Magazine.
"Pedi a minha ex-esposa em casamento ao som dos Doors. Banda preferida de ambos. Imaginem uma noite de chuva e trovoada, há muitos anos atrás, dia 6 de novembro, meu aniversário. A <<pendrive>> no carro tocava Riders on the Storm.
Estávamos a passar pelo jardim da Parada, em Campo de Ourique. Pedi-lhe para parar no estacionamento, quase vazio, reservado aos táxis. Parou. Subi um pouco a música. Abri a porta do carro, dei a volta e bati no vidro dela. Abriu. Chovia copiosamente agora. Encharcado levei a mão ao bolso, abri uma caixinha com um anel de brilhantes em forma de cabeça de pantera, ajoelhei no passeio e cantei: Came on baby Light My Fire.
Relampejou duas vezes, uma lágrima sorridente rolou-lhe na face e casamos dia 27 de dezembro na Casa Fernando Pessoa que pela primeira vez autorizou um casamento."
Hoje dou início a mais uma das minhas séries de pensamentos profundos ou talvez nem tanto. Estou-me a rir do uso de profundos na frase anterior, apenas porque estou só a passar para o papel as coisas que, por vezes, me passam pela cabeça.
Resolvi chamar à temática: Memórias de Haragano, ou seja, se Haragano, que é uma palavra portuguesa de origem brasileira, se usa para significar “cavalo selvagem que dificilmente se deixa domar” e também “vagabundo errante”, “vadio perdido por limbos obscuros”, eu faço uso dela para significar e traduzir o meu lado mítico, etéreo, oculto, de peregrino que se deixa andar pelas margens da internet sem um fim à vista ou, ainda e apenas, para simbolizar o meu pensamento solitário de senhor da bruma.
Posso parecer distraído, por não ter começado esta carta, amiga Berta, por te perguntar como estás e como vão as coisas por esse Algarve. Contudo, esclareço que, como falámos esta manhã por telemóvel e me contaste as novidades todas sobre ti, achei desnecessário utilizar o costumeiro ritual do cumprimento educado.
Hoje, começo por algumas observações simples, nesta carta que se apresenta como uma introdução às Memórias de Haragano. Espero que elas venham a ser do teu agrado. Caso contrário basta que avises e eu paro.
Memórias de Haragano – Introdução
“A Propósito de…
Vivermos na Era da Imagem,
Nos Domínios do Sistema Financeiro e da Economia,
Sob a Alçada do Comportamento da Manada,
A Toque de Vara de Poderosos Interesses Opacos,
Na Estúpida Ilusão da Segurança,
Tementes da Ameaça da Pandemia Viral,
Num Mundo Globalmente Egoísta e Oportunista
E Introvertidamente Convertidos ao Culto do Umbigo,
Convém Saber a Resposta à Questão:
Existe Alternativa…?”
Como vês, minha amiga, não me alonguei demasiadamente na apresentação destas memórias. Espero que também elas te vão ajudando a passar estes, ainda longos, momentos de uma reclusão forçada.
Chegamos ao fim. Terminam hoje As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz. Já te falei em detalhe dos 3 mosqueteiros e de mim, o D’Artagnan da história. O papel de Porthos só pode pertencer ao Jacinto, não por este ser gordo, que não era, mas pela barriga dilatada pela operação que a tornou proeminente e pelo feitio complacente e bem-disposto. O dinamismo, o porte mais diminuto e a energia contagiante de Athos assentam, que nem uma luva, em Quim, sempre pronto a desenrascar o próximo. O papel de Aramis, um verdadeiro espadachim e cavalheiro, apenas tem paralelo com o elegante Libânio, um aventureiro que por muito que adore a esposa, não deixa de ter quem lhe cuide do instrumento, uma vez que a idade e algumas maleitas já lhe afastaram a companheira de certas práticas.
Libânio foi, nos seus tempos dourados, um triunfante vendedor, representante de marcas de prestígio, um caixeiro viajante, qual cavaleiro andante que sem medo, nem descanso percorreu o país do litoral à raia de Espanha, inspirando compradores, consumidores e glorificando aqueles que representou. Ganhava muito dinheiro, contou-me um dia, mas as patuscadas regulares e a sua vasta orquestra de sopro também geravam muita despesa. Não se arrependia de nada. Alcançara uma boa reforma e dera sustento e educação às 2 filhas e conforto e carinho à esposa. Sentia-se um homem realizado.
Regressando a Athos, ou melhor dizendo a Quim, há um episódio que não posso deixar de referir. Na véspera da sua já anunciada alta, o mosqueteiro, que sempre se apresentou escanhoado e com o melhor aspeto que conseguia, ensombrado pelo seu recente problema dentário, detetou que as suas lâminas de barbear tinham acabado. Não era isso que o impediria de fazer a barba e lá conseguiu rapidamente que uma das auxiliares de saúde lhe aparecesse com uma fornecida pela unidade hospitalar.
Foi fazer a barba e voltou meia hora depois, com uma toalha na cara, destinada a reter o sangue que lhe escorria dos 11 pequenos cortes que ostentava no rosto. O pacifico Porthos, Jacinto, só lhe perguntava porque raio não tinha ele parado de fazer a barba ao primeiro corte ao que o outro respondia que não ia deixar a barba meio por fazer.
Por causa dos comprimidos para liquefazer o sangue, este não parou de correr durante todo o dia e só quase à noite é que uma enfermeira o conseguiu convencer a fazer um penso enorme, branco, que lhe tapava a cara toda de uma patilha à outra, incluindo a zona do bigode. Foi para alta com ar de Pai Natal. O sangue, esse, acabou por estancar apenas ao terceiro dia, acabando com aquelas 11 chagas de Cristo.
Ao primeiro telefonema que lhe fiz depois da alta, Quim, informou-me logo que já tinha desencantado um dentista e que já reiniciara, finalmente, a arranjo dos dentes. Ele lá o convencera com o seu desenrascanço a abrir o consultório.
Nada do que, até aqui, te tenho contado conseguia abalar o espírito de boa disposição que se gerara naquela enfermaria. Porém situações houve em que nos sentimos profundamente abalados, preocupados e quase abandonados à nossa sorte ou falta dela. Um dia de manhã, em vez do pequeno almoço habitual, descobrimos que todos os médicos, enfermeiros, auxiliares e até o pessoal da limpeza tinham sumido da cirurgia geral. O quinto piso ficou vazio de funcionários.
A razão, descobriu o pacifico Jacinto, ainda hoje não sei como, tinha a ver com 4 casos positivos de Covid. Um, na enfermaria em frente à nossa, num doente que, entretanto, fora retirado, mais 2 casos no corredor e uma das enfermeiras de serviço. Para meu azar, isto calhou no dia em que tive mais dores e que cheguei a julgar que, somando as 2 coisas, não sobreviveria. Mas o pânico foi generalizado. Ficámos horas sem saber de nada. Depois, bem, depois lá apareceram umas personagens de ficção científica a desinfetar tudo, menos o nosso quarto, vestidos à astronautas pandémicos dos filmes de terror, sempre sem que ninguém nos informasse do que se estava a passar.
Finalmente, a meio da tarde começaram a chegar novos doentes para as camas vazias de alguns dos quartos e fomos visitados por todo o staff do sexto piso. Informaram-nos que o nosso pessoal normal tinha sido posto em quarentena e que eles tinham sido transferidos, com os seus doentes, para o nosso andar. Mas nem uma vez se referiram à Covid.
Achei tudo aquilo, e a forma como as coisas se tinham passado, marcadamente desrespeitoso dos 13 a 15 doentes que foram abandonados durante horas, sem uma explicação sequer. Explicação essa que nunca nos foi dada até à nossa saída do hospital. Quanto ao almoço desse dia, acabou por chegar a meio da tarde. Era mais um desenrasque que um almoço e foi-nos entregue (aos que comiam, é claro) quase como se nos tivessem a fazer um especial favor. Foi só nessa altura que descobri que tinha passado tão mal por falta de soro, antibiótico e analgésicos. Enfim, esse foi um daqueles dias para esquecer.
Houve um segundo dia que gerou algum susto. Uma manhã, ao acordarmos, descobrimos que tínhamos à porta 2 guardas. Tratavam-se de 2 cavalões, daqueles que às vezes vemos nos filmes à porta das discotecas, com cara de poucos amigos. Só mais tarde descobrimos que estavam ali porque um cidadão cabo-verdiano, tinha sido operado de urgência a uma facada no abdómen e estava agora internado no quarto em frente ao nosso. Estivemos guardados por guardas prisionais, dia e noite, por 6 dias consecutivos. Nunca nenhum pessoal do hospital nos deu qualquer explicação. Não fosse o bom do Jacinto, que sempre conseguia informação, ainda hoje estaríamos a especular sobre o que se passara. O paciente ferido, conseguimos vê-lo mais tarde, não ficava nada atrás dos monstruosos e musculados guardas do nosso serviço prisional.
Conforme podes constatar, querida Berta, os meus dias de internamento foram tão intensos e ocupados que nem consegui ler uma página que fosse, do livro policial de Rex Stout, que tinha levado comigo para o hospital. O grande mestre da literatura policial iria ter de esperar por melhores dias para ser lido com atenção.
As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz, ficam-se por aqui. Havia mais o que contar, mas seria prolongar, talvez em demasia, um assunto que, de bom, apenas me trouxe a amizade dos 3 mosqueteiros. Como despedida, recebe um beijo deste teu amigo de hoje e de toda a eternidade,
Está na altura de concluir o que te estava ontem a relatar sobre o terceiro mosqueteiro. Continuemos assim As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz. Finalizando as informações sobre o meu amigo de quase 77 anos de idade, resta-me contar-te o seguinte:
E)Cheio de um otimismo contagiante, regado com uns curtos períodos de desalento, o mosqueteiro ainda tinha esperança de salvar os tarsos e os metatarsos. Não se podia era irritar ou contrariar o pessoal do hospital. Fosse a senhora da limpeza, a auxiliar de ação médica, os enfermeiros ou os médicos. Essa era a regra de ouro. Quando lhe perguntei porquê pareceu espantado e afirmou conhecedor que toda essa malta se vingava com muita facilidade tratando em seguida muito mal o paciente refilão. Deu-me logo o exemplo que insistiu 2 vezes com uma enfermeira para poder usar o seu robe pessoal e que esta, de castigo, ainda lá no Hospital São Francisco Xavier, lhe retirara o relógio, o telemóvel, os óculos e até as próteses dentárias e que tinha ido tudo para um saco, para que a sua filha o levantasse na receção.
F)Libânio já tentara recuperar as suas coisas, mas tinha sido tudo em vão. Agora, por causa disso, estava a papas, pois sem dentes, não podia comer normalmente. Pedi-lhe o número de telemóvel da filha, uma advogada de sucesso, segundo o meu amigo, e liguei-lhe a expor o problema.
G)A Susana era uma simpática dama na casa dos 40, a mais nova das 2 filhas de Libânio, que, depois de falar comigo, ficou indignada com o sucedido. Quando lhe tinham entregue os pertences do pai tinham-lhe falado em procedimentos especiais por causa do vírus e ela nem fora indagar ou averiguar se era mesmo assim. Confirmei-lhe que naquela enfermaria todos possuíamos os nossos pertences e que ninguém nos tirara nada. Tinha era tudo sido desinfetado. No dia seguinte mestre Libânio recebia, por uma auxiliar de ação médica, o saco com as suas coisas e ainda a sua máquina de barbear.
H)Foi este pequeno facto que gerou a amizade entre nós os 2. O homem passou a poder falar com a família, mudou para comida sólida, já conseguia ver televisão e ler, parecia outro. Agora, informava ele, só lhe faltava conseguirem controlar-lhe a insulina e, mesmo que os dedos se perdessem, salvarem-lhe o resto do pé. Teve muita sorte, o médico foi cortando a carne morta, instruiu os enfermeiros de como mudar o penso, e aos poucos toda a parte morta foi removida e os dedos começaram a recuperar. A insulina é que estava pior. Saltava dos 90 para os 400, em termos dos níveis de açúcar, com uma facilidade quase assustadora.
I)Depois da minha saída, continuamos a falar ao telemóvel, tínhamos uma boa empatia. Ele era divertido, simpático e durante o tempo de hospital fora quem me impedira de ser mais refilão com o pessoal.
Não me vou alongar mais, apenas resta referir que, o Libânio beneficiou de um novo programa de tratamento em casa (foi o quinto beneficiário no país) e 4 dias depois da minha saída, continuou a sua baixa médica, em casa, com um médico e um enfermeiro a irem tratá-lo diariamente, fazendo a muda do penso do pé e acabando por conseguirem estabilizarem-lhe os níveis de insulina. Fiquei ali com um bom amigo, minha querida Berta. Por hoje é tudo que já me estiquei muito, recebe um beijo de despedida do teu grande amigo de todos os dias,
Ainda agarrado ao tema de ontem, As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz, dedico hoje esta quinta parte ao terceiro dos mosqueteiros. Também passou pelo Hospital São Francisco Xavier, também fez o teste ao coronavírus e, mais uma vez, o resultado foi igualmente negativo. As diferenças maiores é que chegou 2 dias depois de nós e foi enviado para casa cerca de 4 dias depois de eu ter saído de lá. Assim:
3) Libânio:
A) O terceiro mosqueteiro, o Libânio era um respeitável senhor de 76 anos de idade, embora nunca afirmasse que os tinha. Ele preferia dizer que estava quase a fazer 77. Por algum motivo, a diferença na forma, para se referir aos seus já respeitáveis tempos passados no planeta Terra, parecia ganhar outra relevância, com a repetição do 7 e a omissão do 6. Na minha opinião, o facto de se ler a primeira vogal aberta no 7 era para ele algo de maior prestigio no que à idade dizia respeito. Talvez algo como o título de Sir para os ingleses. Cheguei a pensar que no dia em que fizesse 78 passaria a dizer que estava perto de chegar aos 79, usando assim, uma vez mais, a vogal aberta. Aliás continuando esse raciocínio, após os 79 iria ter 4 anos para afirmar que ainda estava longe ou perto de alcançar os 84. Na verdade esta opção era tão firme que poderia jurar que seria o caso.
B) Graças à sua categoria de mosqueteiro ancião, este nosso novo amigo já revelava certos sinais de muita vivência. Entre eles, destacaria o uso de próteses dentárias e a necessidade de usar óculos quer por miopia, quer por vista cansada. Um coração que requeria alguma vigilância e medicação diária e, por um triste azar, segundo o próprio, tinham-lhe sido detetadas, como a mim, calhaus na vesícula que, por enquanto, ainda não tinham avançado para qualquer manifestação mais nefasta. Porém, aquilo que lhe abalava o ego, o verdadeiro motivo que levara ao seu internamento, era a diabetes.
C) Libânio, tratava a diabetes como uma verruga chata e incomodativa. Uma chatice que o impedia, por vezes, de dar aso à sua veia de grande caçador, às suas visitas às meninas fofinhas e muito queridas, suas amigas dedicadas, que tinham o afinado dom musical para o trombone, efetuando maravilhosas composições de perfeito deleite, usando esse instrumento que fazia as delícias acústicas e outras do grande sénior ou, com irritante frequência, de realizar as suas famosas patuscadas com os seus tradicionais amigos da caça e de outras das suas muito energéticas atividades recreativas e lúdicas.
D) Fora a diabetes que lhe causara o internamento. Segundo ele, quando estava a calçar-se, reparou que tinha os dedos do pé direito escuros, com o dedo grande particularmente negro. Pelo médico soube que tinha gangrena.
E) Aquilo acontecera uns dias antes de ser internado. Não lhe doía, mas emanava um cheiro horrível a carne morta. Segundo o cirurgião, a gangrena parecia avançada em demasia, para poder ser tratada, e ele iria possivelmente perder os dedos desse pé. Ora isso poderia causar-lhe problemas de mobilidade e condicionar toda a sua frenética atividade. Não podia ser.
Vou ter de interromper as informações sobre o mosqueteiro sénior, Não quero ser chato a escrever demasiado num só dia. Amanhã continuo. Recebe um beijo de até mais, do teu amigo e camarada de sempre,
A saga sobre As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz, continua hoje com esta quarta parte e com o segundo dos mosqueteiros. Conforme já te informei os meus dias de internamento foram passados na companhia destes 3 estranhos. Todos eles, sem exceção com experiências de vida em nada comparáveis com a minha. Graças à pandemia, e às contingências que ela gerou, quis o destino que a última enfermaria da Cirurgia Geral do Hospital Egas Moniz fosse ocupada pelos elementos que me encontro a descrever. Em circunstâncias normais, e sem Covid-19, provavelmente, nunca nos teríamos conhecido. Porém, a vida tem esta maneira engraçada de ser moldada por uma mão invisível, contra a qual nada podemos fazer. Há quem lhe chame destino, todavia, eu prefiro apelidá-la de livre arbítrio ou, simplesmente, de acaso.
Ora, quis o acaso que este segundo mosqueteiro se cruzasse comigo, algures pelo caminho, na autoestrada do livre arbítrio. Mais uma vez, o que não deixa de ser uma coincidência estranha, não no Egas Moniz onde eu o vi pela primeira vez. Na verdade, foi sentado na ambulância, ao meu lado, antes de me recusar a ser transportado, sentado e cheio de dores, entre o Hospital São Francisco Xavier e o Hospital Egas Moniz que nos encontrámos pela primeira vez, mas não a última vez. Na altura estava bem longe de adivinhar que seriamos parceiros de quarto. Assim:
2) Quim:
A) Quando o conheci, o Quim era um homem franzino, que já ultrapassara a primeira metade dos seus 40 anos, mas que, devido aos seus vários problemas, mais parecia estar por meados dos cinquenta anos, talvez 55. Aliás o número 5 tinha tudo a ver com ele. Era o paciente 525, pesava 55 quilogramas, aparentava os tais 55, mas deveria ter cerca de 45. O cabelo era curto, denso, sem cinzentos, com tons negros entre o carvão e a antracite. O rosto marcado por uma quantidade de rugas precoces tornavam-no mais sénior e um tom pálido na pele refletia os efeitos dos seus variados e muito destintos padecimentos.
B) Entre as suas maleitas estava o atual uso de um saco externo a fazer o papel dos intestinos. Nunca lhe perguntei o que lhe acontecera, não por qualquer receio de ouvir fosse que resposta fosse, mas porque ele me parecia adaptado à sua nova realidade e em paz com o assunto. Antes de ser hospitalizado o meu amigo estava a tratar dos dentes, os quais se tinham deteriorado ao ponto de começarem a partir e a apodrecer, tudo em pouco mais de um ano, principalmente os dentes da frente, no maxilar superior. Também, para além disso, este personagem único, tinha graves problemas de coração.
C) Este cavalheiro, relativamente baixo, entre um metro e 68 centímetros e um metro e 70, agora exageradamente magro, depois de ter perdido perto dos 10 quilogramas nos últimos meses, e um pouco mais nos que se antecederam a esses, era um verdadeiro homem de charme. Nem as rugas, a falta de peso, os dentes em mau estado, para além de uma certa fraqueza gerada pelo seu processo clínico, o faziam perder esse elã tão característico.
D) As encarregadas da limpeza, as auxiliares de enfermagem, as enfermeiras e até as 3 médicas estagiárias pareciam rondar-lhe o leito com uma frequência que não se via com mais nenhum paciente do quinto piso. Provavelmente mais de metade dos casos seriam felizes coincidências, mas que ele parecia atrair o sexo oposto, como o pólen faz com as abelhas, disso não havia qualquer dúvida. Em resposta às observações do facto, por nós os 3, ele limitava-se a rir para dentro, apenas sorrindo, e dizendo que era só impressão nossa.
E) O Quim tinha outra caraterística única. Se algum dia alguém, em Portugal, puder vir a ser o protótipo ou o exemplo supremo do “desenrascado” e do “biscateiro” então, este homem, é certamente o candidato luso com maiores possibilidades de ganhar ambos os títulos. Um verdadeiro “self-made man”, um artista na arte da resolução de todos e quaisquer problemas do dia-a-dia e, no que diz respeito à profissão, pintor da construção civil.
F) Ele resolve problemas de eletricidade, arranja eletrodomésticos e motores de carros, trata de canalizações, de burocracia, até de situações fiscais ou legais, enfim, seja do que for, sem problema algum. Atenção, pode não ser ele a resolvê-los todos, mas tem sempre um bom amigo, que nem é caro, que pode tratar daqueles imbróglios em que ele não se sente à vontade.
G) Este mosqueteiro foi o segundo a sair, tal como acontecera com o Jacinto, a alta era apenas hospitalar, teria de continuar os tratamentos em casa, mantendo a baixa médica com que fora hospitalizado. Quando saiu levava consigo medicamentos para mais de um mês, um pijama novinho em folha do hospital, uma considerável coleção de máscaras cirúrgicas, e mais um cem número de itens que todas as simpáticas funcionárias hospitalares lhe foram entregando ao longo da sua estadia.
H) Já assim era com a comida, para os que podiam comer, se os outros tinham um sumo, ele tinha 2, se era um pão por paciente, para o lanche ou pequeno almoço, no tabuleiro dele apareciam 2, e a lista podia continuar assim, sem fim e sem qualquer razão aparente que não fosse o seu magnetismo tão estranho quanto único. Contudo, não era egoísta e se um de nós precisava de algo ele lá o fazia aparecer, fosse o que fosse, nunca falhou com nenhum de nós.
I) Depois da sua saída, mantivemos o contacto, tinha-se gerado uma amizade, numa altura muito especial, num tempo em que estranhos nunca se deveriam ter conhecido. Foi com surpresa que soube, cerca de uma semana depois do seu regresso a casa que, com efeito, segundo as suas palavras, iria de ter de viver com o saco que lhe servia de intestinos pelo menos até final de 2020, altura em que os médicos esperavam que o seu verdadeiro intestino já conseguisse voltar a fazer o seu papel novamente. Para meu espanto a ideia não lhe tirara o bom humor, nem aquela sua maneira exclusiva de ver o mundo. Se era para aguentar, ele aguentaria. Quando desliguei, a sorrir, porque ele me informou ter de terminar a conversa, pois estava a pintar uma casa de um vizinho, um pequeno biscate que acabara de arranjar, enquanto se mantinha de baixa, tive que limpar a lágrima que se formava no canto do meu olho direito. Coitado do rapaz, mais quase 9 meses de saco ao lado da barriga. Que injustiça.
Minha querida amiga, por hoje é tudo. Amanhã falaremos do terceiro mosqueteiro, o Libânio, recebe um beijo fofo e carinhoso deste teu amigo,
Continuando a minha saga sobre As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz, fica bem, nesta terceira parte, abordar os meus colegas de infortúnio, a quem chamei carinhosamente de: os três mosqueteiros. Dois deles chegados, poucas horas, antes de mim, o Quim e o Jacinto e o último, apenas 2 dias depois, o Libânio. Foi com estas pessoas que partilhei este internamento em tempos Pandemia, a famigerada Covid-19. Como esta saga está a ser escrita, depois dos acontecimentos, embora sendo colocada nas respetivas datas do evento, no meu blog, isso permite-me fundir dias para fazer uma narrativa mais a meu gosto. Espero, minha querida amiga Berta, que não vejas nisso qualquer inconveniente.
Contudo, para descrever os pacientes 524, 525 e 526, da cirurgia geral do Hospital Egas Moniz, resolvi fazê-lo separadamente, um a um, tentando revelar o maravilhoso trio que me calhou por companhia. Assim:
1) Jacinto:
A) A rondar os fins dos 30, inícios dos 40 anos, deixava perceber que se tratava de um homem ainda jovem, ativo, esperto, desenrascado, que sabe o que quer. Cabelo muito curto, óculos a revelar alguma miopia e um ar vigilante, se bem que preocupado com a sua atual situação e atento a todos os detalhes do que se ia passando consigo.
B) Tendo sido operado aos intestinos, dos quais os médicos removeram uma parte, teve, depois de uma alta talvez precipitada pela pandemia, de regressar ao internamento, 3 dias depois, pois a comida deixara de passar do estômago para o intestino delgado. Conheci-o ainda no Hospital São Francisco Xavier, nas urgências, na zona da enfermagem. Eu estava à espera, sentado num cadeirão reclinável, que me tirassem sangue e me colocassem a soro e ele encontrava-se a ser intervencionado, deitado numa maca, para lhe colocarem aquilo que me parecia uma mangueira, que entrava pelo nariz e ia direta ao estômago. Na ponta exterior a mangueira terminava num enorme saco destinado a recolher a matéria orgânica que não conseguisse passar para o intestino.
C) Sempre bem-disposto, porém, muito atento à sua condição clínica, o Jacinto lá me foi contando o que fizera, enquanto trabalhador ativo, antes da primeira intervenção o atirar para a baixa. Fora condutor anos a fio dos camiões de resíduos urbanos de Lisboa. Quando aparecera a oportunidade de concorrer para condutor dos parques e jardins da Câmara, conseguira, com sucesso, a transferência e graças ao seu feitio cordato e sensato, estava muito bem visto pelas respetivas chefias.
D) Era um homem magro, agora portador de um bandulho acentuado, devido às intervenções, e ostentava, entre o diafragma e a zona um pouco a cima da bexiga, uma cicatriz ornamentada, de alto a baixo, por uma considerável quantidade de pontos e agrafos, em meu entender terrivelmente medonha. Contudo, para minha admiração e respeito, o homem via aquilo como uma cicatriz de guerra, na sua batalha contra a doença, pelo direito à saúde, e mostrava-a com o devido orgulho.
E) Ligado ao soro, cosido, agrafado e entubado, fora-lhe recomendado que fizesse exercício e o bom do Jacinto galgou quilómetros de corredor diariamente, como quem cumpre um treino religiosamente programado. Aos poucos passou a beber água, depois a comer umas papas, seguidamente perdeu o soro, mais tarde retiraram-lhe o tubo do nariz, seguiu a perda dos pontos e dos agrafos e, por fim, já comia de tudo. Os intestinos começaram a funcionar e, dia-a-dia, foi um prazer vê-lo renascer firme e serenamente.
F) Foi o primeiro dos 4 a ter alta. Teria de continuar com alguns tratamentos em casa e aguardar também pelos resultados das análises feitas ao pedaço do intestino removido na primeira operação. Ficámos amigos, ele tinha um humor subtil que era muito do meu agrado, foi já depois da alta dos 4 que, num dos telefonemas diários que fomos trocando, ele me informou que a análise revelara cancro nos intestinos. Dei-lhe toda a força que consegui inventar no momento, expliquei-lhe os sintomas por que poderia passar quando iniciasse a quimioterapia que lhe fora recomendada. No final ele desligou mais animado e eu, bem, eu apenas chorei. Que injustiça...
Minha querida amiga, ficamos por aqui. Amanhã será o dia para te falar do Quim, mas apenas amanhã, recebe um beijo franco deste teu amigo,
Quem tratou do meu internamento hospitalar no Egas Moniz foram os bombeiros, os mesmos que me tinham feito chegar até ali. Eu, pelo meu lado, esperei, na maca dos soldados da paz, agonizante, que toda a burocracia terminasse e, só no quinto andar, é que descobri ter sido levado para a Cirurgia Geral, onde cuidadosamente me mudaram da maca para uma cama, num quarto para 4 pacientes. O meu número de leito era o 27 e, por estar no quinto piso, passei a ser o internado 527. Um número que, vá-se lá saber porquê, muito me agradou, talvez porque a soma dos 2 primeiros resulta no terceiro, contudo, não sei porque gostei. O quarto situava-se quase no fim do corredor, do lado esquerdo de quem chega, mesmo antes da sala de topo, uma área reservada aos médicos.
Se estava, desde o Hospital São Francisco Xavier, em dieta zero, ou seja, a pão e água, porém, sem o pão e sem a água, assim continuei, ligado a soro e com doses intravenosas de antibiótico, anti-inflamatório e dois tipos de analgésicos, sendo um o Paracetamol e o outro o Nolotil. Um verdadeiro manjar dos deuses, se me é permitido dizer. O meu problema, um monte de berlindes abafadores, que, inadvertidamente, ocuparam a minha vesícula e resolveram inflamá-la e, por simpatia, infetar-me o fígado, devido a uma localização não recomendável, não podia ser operada durante a crise do Coronavírus.
Em resumo, era preciso aplacar-me as dores lancinantes, debelar a infeção e, depois destas duas fases passadas, enviar-me para casa, com uma dieta zero em álcool e gorduras, até ao dia em que a operação à vesícula seja viável. Algures perto das Calendas Gregas.
Neste meu segundo dia de internamento, se bem que já noutro hospital, fiquei a saber que, o teste de Covid-19 que me tinha sido feito na véspera se destinara a viabilizar, ou não, a minha transferência para o Egas Moniz, um hospital categorizado como Covid negativo, ou seja, destinado a pacientes sem Covid, enquanto o anterior, o São Francisco Xavier, era um centro Covid positivo, por possuir uma ala totalmente dedicada a casos de pacientes infetados com o vírus. Mais tarde, viria a descobrir, por mero acaso, que também o Egas Moniz tinha um edifício com casos Covid, mas que estavam em fase de transferência, embora sem data certa. Coisas da burocracia.
Vistas bem as coisas, a verdade é que apenas o edifício central do Hospital Egas Moniz era não Covid. Contudo, fez-me confusão constatar que, pelo menos o pessoal médico, servia os 2 hospitais e ainda o Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, por todos eles pertencerem ao mesmo Centro Hospitalar, o de Lisboa Ocidental. Sendo que Santa Cruz e São Francisco Xavier tinham ambos centros de despistagem Covid-19. Concluí que os médicos e a DGS deviam saber o mesmo que eu e que, portanto, tudo estava controlado.
Não é altura para sorrires ou rires, amiga Berta. É imperativo termos confiança em quem trata de nós. Contudo, vou-te confessar uma coisa sem importância, detesto o eufemismo “dieta zero” aplicado a quem fica privado de comer ou beber. Que raio de dieta é essa? Se é zero é porque não existe, certo? Mais valia colocarem-lhe o nome de “fome hospitalar”. Era mais justo e mais apropriado, ou “papa-cheiro”, que é principalmente marcante quando o internado, da cama da frente, abre um almoço de carne de lombo assada com puré de batata.
Por hoje, fico-me por aqui, falar em comida, não é dos melhores temas para um sujeito em dieta zero. Amanhã continuo As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz. Recebe, deste teu grande amigo, um beijo, e até amanhã,