Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente
correto.
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Uma família, como muitas outras, que têm os seus idosos nos hospitais do país, recebeu, no passado dia 10 de janeiro, a notícia que ninguém deseja, ou seja, o falecimento, vítima de Covid, do seu nonagenário familiar. A comunicação do óbito foi efetuada pelo Hospital de Oliveira de Azeméis, uma das três unidades do Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga (CHEDV), com problemas respiratórios.
O idoso estava internado no referido hospital e provinha de Milheirós de Poiares em Santa Maria da Feira. Segundo a Agência Lusa, o filho do homem, o senhor Aureliano Vieira, recebeu a triste e fatídica informação da morte do pai ao décimo dia de janeiro, por motivos associados à pandemia de Covid-19.
Deixo-te aqui, minha amiga Berta, as declarações do próprio: "Como era por causa do covid-19, não permitiram que se fizesse o reconhecimento do corpo. Limitamo-nos a fazer o funeral, já no dia 12. Mais tarde, mandamos mesmo celebrar a missa do sétimo dia. Já hoje de manhã, vieram dizer-nos do hospital que o nosso pai estava vivo e pediram desculpas pelo erro".
Seguidamente o senhor Vieira ainda acrescentou: "E, felizmente, está vivo. Já confirmei”. Contudo, diz desconhecer ainda de quem é o corpo que o hospital presumia ser do seu pai. Aliviado, o filho do nonagenário, ainda não sabe o que vai fazer relativamente ao acontecido, diz-se aliviado, mas confirma que: "Ainda estou atónito. Tenho de falar com outros familiares".
Foi através do contacto da agência Lusa que, por fonte autorizada do CHEDV, ficou confirmada a troca de identidades efetuada numa das enfermarias do hospital de Oliveira de Azeméis. A mesma unidade hospitalar lamentou "profundamente" o sucedido.
O senhor anunciado como falecido pode não ser de facto uma reencarnação, todavia, será dos poucos portugueses a ter direito a um segundo funeral, quando a vida, algures no futuro, o resolver por fim deixar descansar. Espero, minha querida Berta, que esse dia ainda demore, até porque, para quem acabou de falecer não me parece bem que morra de novo em breve. Paz, regresso a casa, em segurança e com saúde é o que eu lhe desejo.
Com mais esta pequena história, que só tem alguma graça por ter acabado em bem, embora a Lusa não refira quem foi afinal a pessoa que faleceu, me despeço, por hoje com um curto, mas sentido, beijinho saudoso. Sempre ao dispor,
Termino hoje a narrativa referente aos detalhes do absurdo que foi a minha saída da minha rua no bairro de Campo de Ourique e, seguidamente, a minha entrada nas urgências do Hospital São Francisco Xavier. Não penses, minha amiga, que ser paciente neste país é coisa simples. Há muita complexidade na situação de alguém se encontrar doente e necessitado do apoio de terceiros.
Para quem, como eu, tinha uma verdadeira fobia a hospitais, estava a ser um verdadeiro trabalho hercúleo fazer-me chegar a umas urgências. Devo ter feito umas 8 chamadas, em frente ao computador, entre dores atrozes, enquanto ia marcando os diferentes números de telefone das distintas corporações de bombeiros de Lisboa. A resposta foi sempre a mesma, estavam sem transportes. Tudo se encontrava no terreno e, infelizmente, não tinham qualquer previsão de disponibilidade.
Por fim, ao ligar para os bombeiros do Beato e Penha de França, o meu raciocínio pareceu querer funcionar. Fiz tudo diferente do que tinha feito até ali. Mal me atenderam informei que queria requisitar uma ambulância, uma vez que os bombeiros da minha zona, em Campo de Ourique, estavam com as viaturas todas no terreno e sem previsão de vagas. Quanto me custaria o serviço?
Do outro lado da linha pediram-me algumas informações sobre o meu problema e informaram-me que teriam transporte disponível dentro de uma hora a uma hora e meia. Servia para mim? Ah, como eu não era da zona deles o serviço custaria 30 euros. O que eu achava? Estava disposto a aguardar? Estava interessado? Respondi imediatamente que sim. A ambulância acabou por demorar apenas 45 minutos e 20 minutos depois os próprios bombeiros inscreviam-me nas urgências. Recebi pulseira amarela e 20 minutos depois fui admitido.
Durante a viagem, com muita paciência, os soldados da paz foram preenchendo o meu formulário, entregaram-me o recibo da minha despesa de transporte para o hospital e o troco dos 50 euros que entreguei, fizeram perguntas sobre todo o meu histórico clínico passado e presente, foram, posso afirmá-lo sem exagero, de um profissionalismo extremo, cuidado, interessado e verdadeiramente atento à minha condição de doente.
“Money talks…”, o dinheiro fala, cantavam os AC/DC ainda no século passado e com razão. Dei entrada no hospital perto da hora do jantar, mas estava, finalmente, a ser atendido. Com estes longos detalhes do absurdo me despeço, querida Berta, espero que tudo esteja bem contigo, recebe um beijo longínquo deste teu amigo,
Continuo hoje o tema de: “A Minha Rua no Bairro de Campo de Ourique”. Rua que amanhã vou ter de abandonar, embora muito contrariado. Para os que por cá continuam vai o meu conselho de que mantenham o maior confinamento que vos for possível. Arranjem maneira de sair o menos possível, coordenado a ida ao supermercado com a aquisição de pão ou a deslocação ao banco, evitando desse modo 3 ou 4 saídas por semana.
Assim sendo, hoje venho dizer-te, com grande tristeza minha, que não poderei escrever-te nos próximos dias. Quando puder tentarei compensar-te com as cartas em falta. Com efeito, estou doente, o problema dura há 3 dias e, finalmente, lá me decidi a ir ao hospital, eu que tenho um pavor genuíno a esse local e a batas brancas, o que é algo que me deixa terrivelmente afetado. Amanhã, pela manhã, darei entrada no hospital São Francisco Xavier.
O meu problema não tem relação com o Covid-19. Tem a ver com dores em barra numa zona no estomago e que pode bem vir a ser, a minha segunda crise de vesícula, ou uma outra infeção qualquer. Os últimos anos têm sido complicados. Há 3 anos uma pedra entupiu-me o canal biliar e só por insistência de um médico estagiário não bati a bota com uma septicémia. Levei 4 meses a recuperar porque o meu médico se esqueceu de me dar o devido tratamento para o fígado, que foi bastante afetado pelo contraste administrado na operação. O ano passado foi a vez do AVC, aliás, 9 no total, num espaço de 6 meses.
Anos antes, muitos até, tive 6 meses em coma, devido a um problema relacionado com a explosão de um petardo na tropa, coisa que foi muito bem abafada pelo exército na altura e que para além da baixa de serviço militar por incapacidade física me deixou um ano e pouco a lutar contra a imobilidade causada pelo acidente e um tempo idêntico a recuperar de um problema de recuperação da fala, depois disso, por 2 vezes, separados por anos, 2 cancros de pele, sendo que o primeiro foi bem mais grave que o segundo.
Em resumo, com alguns azares, e sendo eu um otimista nato, considero tive muito poucos problemas de saúde. No entanto, ir, no meio desta crise, para um hospital, onde provavelmente ficarei internado, ainda me deixa mais inquieto que o normal. Tenho consciência que o meu pavor a hospitais vem do meu internamento no anexo do hospital militar onde passei alguns, muitos, meses, no passado, foi aí que ganhei esta espécie de fobia. Porém, tempos especiais obrigam a procedimentos diferenciados. Não sei bem como, mas parece-me evidente que vou ter de arranjar uma forma de vencer o meu tolo pavor.
Enfim, amiga Berta, deseja-me sorte, vou precisar dela mais uma vez. Podes não acreditar, mas mesmo tendo saído de casa apenas por 4 vezes nos últimos 47 dias, já estou com saudades do meu bairro, da minha rua e da minha casa. Deixo-te com um beijo saudoso, deste teu amigo de sempre,
Cá estou eu para terminar a novela da peça do chinês. Pese embora o principal já ter sido dito, falta relatar-te como tudo ficou concluído. Até porque já foi este ano de 2020, que a história finalmente chegou ao fim.
Depois da saída do hospital e apenas o ano passado, já tive outros episódios e chatices, mas que nada tiveram a ver com a narrativa da pedra na vesícula. No caso do último ano foram 9 AVC que me abalaram um pouco, mas que ficaram controlados um pouco depois do verão, sem terem causado grandes danos irreversíveis. Apenas um dedo da mão esquerda se mantém permanentemente dormente. O que é uma gota de água no vasto oceano de chatices que me podiam ter acontecido.
Só que desta vez recorri aos serviços da CUF, porque um seguro de saúde, que mantenho já há uns anos, me permitiu aceder, sem custos demasiado elevados a esse hospital. Tive sorte, não me descobriram a origem dos AVC, mas pelo menos, conseguiram controlá-los. Vistas bem as coisas já não foi nada mau.
Mas, voltando à vaca fria, é hora de escrever sobre a conclusão. Embora todo o problema tenha levado um pouco mais de 3 anos para ficar concluído, não teve o final esperado. Vamos à parte VI, da minha aventura, em torno da peça do chinês, com o epílogo a que chamei: o depois…
No meu regresso ao hospital, para ir buscar os exames e análises que não me tinham sido entregues, passados quase 4 meses, aproveitando o facto de o Bonifácio estar de regresso, devido a mais uma crise, acabei por visitar, por mera coincidência, a mesma enfermaria onde estivera internado.
Um novo paciente, que agora ocupava a cama onde eu estivera quando fora internado, acabou por se meter na conversa entre mim e o meu amigo. Parecia um sujeito um pouco amargo e de mal com a vida. Uma daquelas pessoas que, amiga Berta, nunca está satisfeita com tudo o que lhe calhou ou, pior ainda, que foi escolhendo ao longo do seu próprio percurso. O facto de estar mais falador devia-se, disso tenho absoluta certeza, à disposição alegre e contagiante do Bonifácio. O homem consegue fazer uma pedra sorrir.
Depois de um curto preâmbulo, após ter percebido que eu estivera ali, devido a um problema de pedra no canal biliar, para fazer uma CPRE, é que a sua expressão ganhou mais vida e vontade de interagir connosco. Por fim, lá me informou que o pai tinha morrido em 2005, devido a uma CPRE. Ele e a família até tinham posto o hospital em tribunal e, só não tinham ganho, porque aquela malta está toda feita uns com os outros. Era uma vergonha. Então não tinham decidido operar o pai sem consultarem a família? Tinham mesmo e trataram-no à balda, relatava revoltado.
O Bonifácio que já devia ter escutado aquela história, pelo menos umas 3 ou 4 vezes, ainda perguntou, com jeito, se o pai tinha autorizado ou não a operação. Tinha sim, respondia o outro, mas o homem estava velho demais para poder decidir, afinal estava quase nos 80 anos. Podia até estar lúcido, mas já não era admissível que tomasse uma posição daquelas sozinho.
O paciente insistia no tema. Mas não fora por causa disso que o tribunal não dera razão aos familiares? Fora, fora sim, mas o juiz estava era comprado. Pois eles tinham conseguido provar que o pai não sabia os riscos que corria e, mesmo assim, não tinha sido feita justiça. Não se podia mandar um homem daquela idade, assim sem mais nem menos, para uma intervenção delicada daquela envergadura, com anestesia geral e quase 2 horas de operação, sem lhe serem descritos os riscos inerentes a um tal procedimento, que ainda por cima era extremamente delicado.
Dizia ele que 10 por cento das intervenções com o CPRE derivavam para pancreatite aguda e em morte do paciente. Mas havia muitos mais problemas associados, como septicémias, perfurações, inflamações diversas, o homem não se calava, a coisa era grave e, segundo ele, apenas metade dos intervencionados passava pelo processo, sem riscos ou complicações de maior. A investigação do advogado concluíra que, se as consequências do pós-operatório fossem atribuídas à CPRE as mortes aumentariam mais 30 por cento.
Não acabara ele de me ouvir contar que o hospital se tinha esquecido de avaliar o meu estado, depois da CPRE, e que passara 4 meses com uma crise de fígado, provocada por falta de tratamento ao contraste, que me tinha sido administrado na operação? Confirmei, uma vez mais, que era verdade, mas acrescentei que talvez eu devesse ter ido mais cedo ao Egas Moniz, tentar descobrir o que é que se passava. A culpa do calvário de 4 meses era tanto minha como deles. Quem estava mal era eu.
Sim, sim advogava o sujeito, mas a culpa, o erro inicial, era do gastroenterologista que fora negligente. E se eu tivesse morrido? Sim, porque ele sabia de casos em que a reação ao contraste tinha provocado a morte do paciente. Eu devia era pôr o hospital em tribunal e pedir uma choruda indeminização. Isso mesmo, era o que aquela malta precisava para ver se aprendiam.
Afinal, não se brinca com a saúde das pessoas. Era verdade, confirmei eu a tentar conformar o revoltado individuo, contudo, eu nunca o faria, pelo simples facto de também eu ter sido descuidado e não ter ido saber porque é que me sentia tão mal. Mas não era alguém que se sente mal e que, ainda por cima, que está com receio de ter alguma coisa na vesícula ou no canal biliar, que tem de ser culpado por não ter agido. Eu era médico? Não era! A culpa era sempre do médico. Por causa das pessoas agirem como eu é que aquela malta ainda não tinha sido posta na ordem, afirmava.
Tendo falado isto, o homem concluiu que eu não era digno de perdão. Acabara de arranjar mais um culpado para a morte do pai, muitos anos depois do homem ter morrido. Eu! Bem, ou pessoas como eu, aquela gente que não faz queixa e não avança com as devidas ações para pôr fim às injustiças. Ainda a resmungar entre dentes, virou-se de costas e abandonou o diálogo connosco. E é assim, minha querida Berta, que uma pessoa se vê acusada de um crime que nem sabia ter existido. Está tudo na forma de raciocinar e naquilo que vai na cabeça de cada um.
Eu e o Bonifácio ainda ficámos na conversa mais uma boa meia hora e fomos juntos até ao snack-bar na saída do hospital. Nenhum de nós parecia na disposição de voltar a ouvir o revoltado paciente que à data ocupava a minha antiga cama, o que poderia muito bem voltar a acontecer se, no entretanto ele fizesse mais algum raciocínio distorcido como os anteriores. Foi engraçado rever aquele local, sem cadeira de rodas, e poder fumar um cigarro a um nível bem mais elevado do que sentado.
Para além disso, eu fiquei aliviado por me ver fora de um sítio que me fazia suar frio e que me causava náuseas e tonturas. Ele tomou um chá, feito com uma erva qualquer que forneceu à paisagem que nos atendeu ao balcão e eu bebi uma cola fresca. Estávamos ambos aliviados de nos termos livrado do queixoso paciente do terceiro piso. Finalmente despedimo-nos e eu regressei a casa.
Durante os seguintes 2 anos e oito meses e pouco, recebi mais umas 4 marcações para terminar a intervenção que ficara por concluir e também, pelo mesmo número de vezes, a mesma foi cancelada por, sem qualquer surpresa, nova avaria na peça do chinês. Só que, cada vez a avaria levava mais tempo a ser reparada, e cada vez também, a peça demorava mais a ser encomendada à China. Os cortes crescentes e bem pesados no Serviço Nacional de Saúde, asseguravam que assim tinha de ser e pouco havia a fazer em relação à situação.
Finalmente, no passado dia 3 de janeiro deste ano, 2020, recebi a tão aguardada chamada. A minha operação para remoção da vesícula e colocação do stent no canal biliar estava marcada para dali a 3 semanas. A médica que falava comigo informava-me que dificilmente se correria o risco de novo adiamento, porque o hospital optara, depois de um difícil consentimento da tutela, por mandar vir a peça, para o equipamento da CPRE, da Alemanha. A nova peça estava a funcionar em pleno, sem problemas há mais de um mês, pelo que achavam que a marcação era segura.
Já ia concordar quando algo despertou em mim um alarme. Tirar a vesícula? Mas eu não queria tirar a vesícula. Estava já há 3 anos sem problemas e, na época, nem se descobrira a origem da formação da pedra. O que eu tinha marcado era, apenas e só, a colocação do tubo, que ficara por pôr, devido à avaria do equipamento durante a minha CPRE.
Do outro lado fez-se silêncio por alguns segundos, a mim pareceram-me minutos, mas nestas situações o tempo é sempre mais psicológico do que real. Finalmente a voz da médica fez-se ouvir. Não, não, eu estava enganado. O que sempre estivera marcado fora a remoção da vesícula e a colocação do stent. Ela estava a consultar todas as marcações e respetivos adiamentos e era isso que constava na minha ficha.
Fui obrigado a contar que, após uma conversa com a cirurgiã, antes da minha intervenção, eu não tinha concordado com a remoção da mesma de forma preventiva, porque o hospital nem sequer conseguira concluir o que causara o aparecimento da pedra. Aliás, o médico concordara, embora tivesse insistido que já que iam ter de mexer podiam matar 2 coelhos numa só cajadada. Afinal, nada me garantia que não voltaria a ter outro calhau. Ao que eu rebatera que também nada me garantia que voltaria a acontecer, coisa com que ele concordara.
Portanto, concluía eu, ficou decidido, desde antes da CPRE que não haveria remoção de vesícula. Eu até podia ter toda a razão do mundo, informava-me a médica, mas não era isso que ali constava. Se eu não quisesse tirar a vesícula, 3 anos depois também já não fazia sentido colocarem o stent. Ficaria tudo anulado. Concordei e despedi-me da doutora.
Como vês minha querida amiga Berta, a peça do chinês andou comigo às voltas por 3 anos, para, quando finalmente foi trocada, me deixar de mãos a abanar sem concluir o procedimento começado. O depois, nunca é aquele que esperamos quando ainda estamos no antes. A vida é mesmo assim. Dá as voltas que entende, pelos caminhos que escolhe, e nós, apenas temos de conduzir com cuidado para evitarmos acidentes.
Despeço-me com um alegre até amanhã, acrescido de um beijo pleno de saudades, este teu amigo de sempre, que nunca te esquece,
Ontem comecei a contar-te a minha saga sobre a peça do chinês. Vou continuar o relato, minha querida amiga, esperando que tenhas a paciência de leres todos os episódios, até ao fim, sem saltares nenhum. Garanto que a tua paciência será recompensada por alguns sorrisos e uma ou outra gargalhada.
Esta segunda parte da peça do chinês, relata a vinda dos anjos, contudo, não me vou adiantar demais, para já, mas lá chegaremos. Continuando onde ia, cumpre-me dizer-te, minha amiga, que, vindo do nada, qual raio fulminante, oriundo dos quintos de algum sítio que desconheço, uma dor aguda atingiu-me, numa zona que normalmente designo por pança ou bandulho, transformando-me numa espécie de boneco de trapos, daqueles que têm o mesmo ar idiota, como de um certo anúncio de amaciador de roupa, que vemos na televisão de tempos em tempos, atirando-me ao chão.
Esta dor aguda, lancinante e indescritível, apareceu em menos de centésimas de segundo, conseguindo ter a habilidade extrema de tornar o tempo imóvel. Era como se os relógios do universo tivessem todos decidido estacionar os ponteiros. Naquele momento apenas existia dor, sofrimento, agonia e nada mais. A vista deixou de ver, o palato perdeu o gosto, o nariz ficou sem cheiro, o olhar tornou-se surdo, os olhos deixaram de ouvir e os braços, cotovelos, pulsos, mãos e dedos partiram, quais migrantes ilegais, para parte incerta, abandonando o tato, o sentir e a capacidade de me ancorar.
Primeiro, fiquei de joelhos, prostrado, rendido a uma tortura pérfida que me invadia por dentro, consumindo-me o sistema nervoso, que gritava, em pânico, gritos mudos de rendição e suplicas babadas de piedade. Ainda ajoelhado, nessa posição adequada e própria para a época natalícia e festiva que se aproximava, tentei, com as escassas forças e entendimento remanescente, descobrir se existiria alguma estratégia possível de rendição, todavia, o inimigo, fosse lá ele qual fosse, apenas transmitia sofrimento e nada mais, aparentemente, nada preocupado, nem curioso, por saber por quanto tempo eu aguentaria até perder os sentidos e me render à sorte ou ao destino agora projetado.
Ainda hoje não consigo descortinar onde fui buscar recursos e reforços para logo depois, de rastos, armado em comando em prova de choque, munido de uma dificuldade que me parecia surreal, me conseguir transportar, por uns parcos 10 a 12 metros, até a um leito onde, instintivamente, adotei a posição fetal, que durante nove meses me protegera há 55 anos atrás. A situação era de tal configuração, dramática e aflitiva, que, por breves instantes, quase entendi pelo que passam as vítimas da guerra em Aleppo e outros locais semelhantes, quando surpreendidas por um ataque súbito.
O teto da casa fundiu-se com as paredes, a colcha da cama, os móveis e os bibelôs, numa massa disforme que voluteava espirais vertiginosas, compostas de escuridão e dor, algures no limite da velocidade da luz, fazendo-me partir, sem bagagem nem cintos de segurança, para o buraco negro da total inconsciência. Pelo que me foi descrito mais tarde apenas desmaiei.
Ainda ciente dessa parte do percurso desdenhei, com ganas de perplexidade, o uso da palavra apenas. Apenas o tanas, aquilo fora, certamente, a descoberta dantesca de um dos múltiplos portais do inferno, isso sim.
Porém, contou-me, dias mais tarde, a minha senhoria e querida amiga (que dividia nessa altura a casa comigo, há pouco mais de 8 anos), que eu, nesse dia, a tinha convidado para jantar comigo e que assistira a toda a cena sem muito poder fazer. Informou-me que eu nem a via, ouvia ou mesmo a sentia ali presente, qual autista perdido num mundo fora do quotidiano dos dias e das noites, gritando perdido, metaforicamente, por uma ajuda que não tinha como receber, por não poder ser escutada fora de mim, como é usual nos gritos mudos.
Precisando eu de ajuda divina, foi ela quem encontrou a alternativa mais próxima do auxílio dos céus, através de apelo telefónico desesperado, aos Anjos da Noite, uma organização empresarial que envia médicos ao domicílio, sem asas, infelizmente, e de aspeto bastante humanoide. Aliás, de Anjos, aqueles seres da noite, somente deviam ter o nome, tal como um oásis mantém o seu, mesmo depois de se ter rendido há muito ao deserto, seca que ficou a sua fonte de vida.
Todavia, a palavra noite, que lhes assentava como uma luva e que poderia muito bem significar trevas, a ter em conta os preços, verdadeiramente demoníacos, cobrados pelos serviços ficticiamente prestados. A mim calhou-me uma doutora que, a julgar pelo rosto indisposto e descomposto, pela voz de cana rachada e pela ausência de formas, pouco ou mesmo nada deveria à divina intervenção do Altíssimo.
Falhou integralmente o diagnóstico, na sua douta ignorância de quem se deve ter formado, inteligentemente, à custa das passagens administrativas dos tempos revolucionários, mas conturbados, do pós 25 de abril. Segundo a especialista, o meu problema, como me doía a pança, era certamente uma gastrite.
Tivesse eu tido, naquela altura, a mínima capacidade de reação intacta, ter-lhe-ia dito, como todas as letras, onde é que ela podia meter a gastrite, mais a estupidez do diagnóstico de trazer por casa, acrescido da ignorância escondida num diploma médico, conseguido de modo dúbio, nalguma feira da ladra, realizada pelos adros tortuosos do sistema educativo. Contudo, infelizmente, a minha nula capacidade de agir, quanto mais de reagir, permitiu que a fulana do estetoscópio escapasse impune à minha revolta.
Ora, sem qualquer surpresa, Berta, nada disso me trouxe qualquer desconto, nem o tratamento apontado me tirou as vertigens, o suor frio e as dores que, por essa altura, já me faziam imaginar uma miraculosa gravidez, bem no seu término, em momento de parto, sem dilatação e a necessitar de fórceps. Porém, a referida desasada, portadora do tal canudo (posso garantir, em boa hora, que o dito nunca me foi mostrado), num golpe de lucidez, que jamais se adivinharia vir daquele tipo de gente, lá aconselhou que era melhor chamar os bombeiros e ir para o hospital.
Nada a criticar, todos os anjos são bem-intencionados, e, mesmo sem entenderem um boi daquilo que deviam praticar e exercer, por falta de conhecimentos ou de vocação, não lhe posso negar, minha amiga, a extrema utilidade de um conselho que me custou quase cem euros, nessa noite.
Muito, mas muito mais difícil é imaginar dois bombeiros a levar o meu incapacitado metro e oitenta e dois, quase que inconsciente, escada abaixo, três pisos até à rua, num prédio sem elevador, edificado muito cedo, algures no princípio do último século do milénio passado.
Penso que foi a força da gravidade que acabou por ajudar a colocar os 85 quilogramas da massa, contorcida e em guerra consigo própria, que me representava, na maca da viatura dos soldados da paz, ainda para mais se tivermos em linha de conta que a velha escada de carvalho, era, nos 2 primeiros lances da descida, complicada de ultrapassar.
Afinal, os 18 degraus e os 2 patamares, estavam adornados com 52 vasos de plantas de interior, uma coleção de que muito me orgulho e que absorvem, para seu belo proveito, a luz, que a claraboia, a uns 5 metros de altura, convida a entrar, com a função de dar vida ao espaço, aliás, tu conheces bem, Berta, até o elogiaste muito, da primeira vez que jantaste aqui em casa.
Assim sendo, continuando a narrativa, carregar um peso morto de quase 100 quilogramas, embora vivo, por esta selva decorativa e vegetal, onde a largura deixada em cada degrau apenas permitia a presença de uma pessoa e não de 2, lado a lado, foi uma obra digna dos poemas épicos de Camões ou uma lança em África, enterrada à custa do suor e engenho de 2 ilustres e abnegados bombeiros.
Cheguei às urgências do céu algum tempo depois, a um local que dá pelo nome de Hospital São Francisco Xavier, onde fui alvo de carinho e atenção. Bem, estou a exagerar neste ponto. Deveria dizer, para ser correto no relato, que me contaram que fui bem tratado, que toda a gente se mostrou solicita e carinhosa. Contudo, eu não faço a menor ideia pois, nos momentos de consciência, muito poucos por sinal, apenas me recordo da tortura e das dores dentro de mim e mesmo nada mais.
Aliás, consegui imaginar-me um rato de laboratório, passando pelo raio x, análises sem fim, macas que chiam, chocalham e batem nas esquinas, ao serem transportadas de um lado para o outro, três ecografias, quatro médicos e um cirurgião, onze enfermeiros e seis auxiliares, soro, cateteres, medicação intravenosa e sei lá que mais…
Finalmente, no meio do martírio, acabei por concluir que, provavelmente, estava num purgatório, onde ainda teria muito para sofrer. A verdade, todavia, era outra bem diferente. Passaram 3 dias (que a mim apenas me pareceram cinco horas) e, dos quais, confesso, não tive grande consciência.
Lembro-me das dores, de vozes de fundo, de ser transportado entre espaços, e muito pouco mais, para a imagem ser mais clara, minha querida amiga, pensa como se deve sentir uma encomenda dos correios, no seu trajeto infindo entre o ponto de partida e o destino. Já imaginaste? Agora acrescenta uma boa dose de inconsciência, intercalada com dores lancinantes e agonia, e poderás ficar com uma ideia.
Graças a alguma divina intervenção, algures, no meio deste percurso, tudo acalmou e eu viajei para um adorável spa de primeiríssima classe. Descobri mais tarde que a partida para o dito spa, se traduzira, na realidade, na chegada abençoada da "Santa Morfina dos Aflitos"…
Por hoje é tudo, amanhã entraremos na terceira parte. Recebe um beijo amigo deste que nunca te esquece,