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Alegadamente

Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente correto.

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Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 64

A Felina - 64.jpgA última noite de Lua Cheia de novembro foi inesquecível. Íris, achou surreal dar consigo, meio sem saber como, depois do jantar na Portugália, a fazer amor dentro de uma 4L, estacionada no passeio, mesmo em cima e em frente à porta da Casa-Museu Amália Rodrigues. A festa foi interrompida, felizmente, entre quecas, por dois polícias de giro, que não acharam nada giro presenciar o balançar da viatura, qual traineira fadada a outros fados, em frente da casa da lenda do fado.

A multa escapou apenas porque um dos polícias reconheceu Íris. Mas ela não deixou de ter de ouvir o velho polícia a recomendar mais decoro a uma doutora tão conhecida em Lisboa. Com um pedido de desculpas e depois de inverterem a marcha e voltarem ao parque de estacionamento, ela foi tomada novamente pelos braços de Dia e colhida com as costas apoiadas na 4L. Ora, quem conhece a viatura sabe perfeitamente quão desconfortável é a frente de uma 4L, todavia, o frenesim era tal que Íris nem deu pelo incómodo.

A jovem acordou em cima da mesa da sala de jantar, seminua, com o cheiro de ovos mexidos, bacon, sumo de laranja natural e torradas. Dia estava a terminar de preparar o pequeno-almoço e de o colocar na mesa na parte que ela não ocupava. Poisou as torradas, contornou-a, deu-lhe uma lambidela entre pernas e perante o ar admirado dela indagou:

     ― O que foi? Não posso lamber? É só para me abrir o apetite para o pequeno-almoço.

     ― Nesse caso também quero experimentar. Anda cá, vá… passa-me aí o salame… ― ordenou a jovem esticando e encolhendo o dedo indicador da mão esquerda. ― Hum… tens razão, abre o apetite.

     ― Sim, sim. É uma invenção muito antiga, já os romanos falavam do uso comum do pau multiusos. A menina deve saber disso nos seus estudos da arte e literatura romana, não? ― indagou Diamantino.

     ― Não me recordo de alguma vez ter lido a coisa descrita dessa forma “pau multiusos”, mas quem sou eu para duvidar de um brilhante arqueólogo na plenitude do seu conhecimento do terreno. ― Íris ironizava agora. ― Todavia, as práticas romanas são inspiradoras.

     ― Verdade! Com os romanos era pau para toda a obra. ― Dia, ria.

Depois de Diamantino ter saído para as escavações, já com um revigorante banho tomado e pronto para o regresso ao trabalho, Íris, ficou a imaginar que desta vez, a entrada nos Ciclos da Sombra, não iam impedir que a sua líbido continuasse a funcionar. Ela adorava aquele sujeito. Estaria a apaixonar-se? Pensou um pouco no assunto. Por fim, sem chegar bem a uma conclusão, achou que logo se veria. De momento estava feliz, consolada e desejosa que ele voltasse no fim da tarde.

Foi ver o correio. Tinha uma carta da CUF com o relatório escrito que tinha solicitado relativo a uma bateria de exames e análises que fizera no final da semana anterior. Achara estranho, talvez pela primeira vez, o facto de não ter tido medo algum, quando soubera que Vítor, o seu ex-Superintendente, escapara às malhas da justiça.

Precisava de saber se ela, tal como Vítor sofria da doença de “Urbach-Wieth”. Era uma doença raríssima, apenas eram conhecidos umas centenas de pacientes no mundo com essa maleita. Seria estranho que ela sofresse do mesmo mal que o seu, agora, arqui-inimigo. Aliás, ela só ouvira falar nisso, precisamente na noite em que ambos se tinham envolvido um com o outro.

Na altura julgara que o homem estava a inventar para parecer um individuo raro e diferente. Porém, descobrira que a doença existia mesmo e comprovara que ele a tinha registada no seu ficheiro pessoal, que ela invadira na base de dados da PJ. Ora, a doença afetava a estrutura do cérebro e, mais concretamente atacava a amígdala, destruindo-a. Com a ruína desta zona do cérebro responsável pela sensação de medo, a pessoa não tem medo de coisa nenhuma. Tem, logicamente, conhecimento do conceito de medo, sabe, porque aprendeu o que é o medo e quais os sintomas, mas, efetivamente, nunca o sentiu.

“Era um pouco como se alguém fosse a esta nossa região do cérebro e literalmente a escavasse”, explicava o Professor Doutor António Damásio, num artigo já com algum tempo, que ela entretanto descobrira. Ora, António Damásio era um famoso médico neurologista, um neurocientista português, que trabalhava no estudo do cérebro e das emoções humanas, sendo também Professor de neurociência na Universidade do Sul da Califórnia.

O cientista, com mais de uma dúzia de prémios e honrarias atribuídas pelo mundo fora, era também autor de vários livros sobre o cérebro, que, porém, tinham o condão de cativar o mais profundo leigo na matéria. Fora precisamente por ter descoberto que parte do estudo sobre a doença de “Urbach-Wieth”, lhe era devida, que ela se interessara mais ainda sobre o assunto, sobre o qual, efetivamente, desconhecia quase tudo.

A jovem abriu o envelope A5. Era algo volumoso. Dentro vinham os resultados dos exames e das análises. Ela nem lhes ligou. Foi direita ao relatório e procurou pelo resultado. Perto do fim ali estava, preto no branco, o resultado final. Tinha-lhe sido diagnosticada a doença de “Urbach-Wieth”. Por isso ela nunca temia fosse que situação fosse. O seu problema não era de feitio, era físico.

Aquilo era algo preocupante e muito perigoso. Ia ter que ter muito mais atenção à sua vida do que lhe dispensara até ali. Uma pessoa que, por exemplo, não tem medo do fogo, pode mais facilmente deixar-se queimar inadvertidamente. Mas quem diz fogo, diz alturas, venenos, cobras, aranhas, desafios arriscados e por aí em diante, até aos confins das infinitas situações em que se possa colocar com perigo. Íris, iria ter de tomar muita atenção, cem vezes mais do que tivera até ali, sempre que estivesse numa situação de risco. Até agora tivera sorte, muita sorte. Porém, sendo aquela a sua realidade, não iria poder apenas contar com isso. Tinha que estar alerta, sempre alerta e agir com consciência e não precipitadamente.

Fora isso que ela sentira no Vítor. De alguma maneira o seu olfato apurado descobrira, sem no entanto a conseguir identificar, a falta de medo do Vítor e identificara-a consigo própria. Ela sabia que a maioria das reações humanas produziam odores diferentes. Fossem elas medo, ansiedade, volúpia, prazer, depressão, paixão e por aí fora. No entanto, o seu desconhecimento da doença não lhe permitira detetar o que ao certo a atraíra no Vítor. Era isso mesmo, a ausência de medo, emitia um odor diferente nele que ela identificara consigo mesma. Fora isso que a atraíra.

Satisfeita com a descoberta, a jovem guardou a carta nos seus documentos na sala secreta. Já sabia o que a atraíra em Vítor, já o podia combater.

Outro mal seu era a hipertimesia associada à sua imensa memória. Durante o resto do mês de novembro e até ao fim do ano, a rapariga terminou os seus estudos universitários. Antes das férias escolares de Natal apresentara para o seu novo doutoramento o projeto que criara para o Museu Nacional de Arte Antiga e que acabara, uns dias antes de vir aprovado de Bruxelas. Graças a isso poupara um ano de trabalho. Podia iniciar em janeiro de 2023 os seus ansiados doutoramentos em arqueologia e arte. Iria frequentar o PhD da Universidade de Edinburgh em Arqueologia e o Doutoramento em História da Arte, com especializações em História da Arte da Antiguidade e Museologia e Património Artístico da Universidade Nova de Lisboa.

Íris, como sempre, queria encurtar o tempo de estudo necessário, isso de passar quatro anos a preparar uma tese não era para ela. Por isso mesmo, pagou previamente todas as propinas inerentes à frequência de ambos os doutoramentos e depois conjuntamente com o seu currículo enviou uma proposta de apresentação das teses para o final de 2023. A base de trabalho estava relacionada com as escavações de Lisboa e devido ao interesse nacional e internacional da descoberta, bem como graças ao seu vasto portefólio, a sua proposta fora aceite em ambas as universidades.

Agora restava-lhe juntar os manuais e os livros, falar com os orientadores, arranjar uma estratégia de trabalhar as teses em campo e, na posse de tudo isso, preparar a apresentação das duas teses para o princípio de dezembro de 2023. Já sabia, de antemão, que teria de ir algumas vezes a Edinburgh, mas isso não tinha qualquer importância.

Na noite da passagem de ano, estando Íris e Dia ou Diamantino ainda juntos e a celebrar a entrada em 2023 com o grupo que liderava as escavações, o telemóvel da jovem tocou. O número era anónimo e ela esteve para nem sequer o atender, contudo, fruto de um pressentimento, resolveu permitir a ligação da chamada. Do outro lado alguém dizia:

      ― Feliz Ano Novo minha querida Íris. Sinceramente e do coração. Faço votos para que tenhas um ano muito feliz. Ainda sinto que fui incorreto no modo como te tratei. Sabes quem fala?

      ― Claro que sei, Vítor. Um bom ano para ti também. ― respondeu ela.

      ― Olha, não sei se tens visto a Felina, devido à tua atividade com a Polícia Judiciária, contudo, se estiveres em contacto com a gata gostaria que lhe desses um recado da minha parte, pode ser? ― indagava o homem com alguma sobranceria.

      ― Pode sim, Vítor. Todavia, se for para falares de vingança ou algo do género, não achas melhor ires tentando sobreviver longe da cadeia. A vida na penitenciária não me parece adequada ao teu estilo. Devias tentar esquecê-la. Afinal, se vires bem as coisas, ela deixou-te fugir. Não foi atrás de ti e podia ter ido… ― contrapôs Íris, tentando aplacar a raiva que sentia existir do outro lado.

      ― Ela não me deixou fugir, eu fugi sem que ninguém desse conta disso. Quanto a não vir atrás de mim… ― referiu, Vítor. ― Não veio porque sabia que jamais me conseguiria encontrar. Eu sou bem melhor que essa gata vadia. Mas isso agora nem interessa. O recado que eu te agradeço que lhe dês, se alguma vez entrares em contacto com ela é para que ela aproveite bem todos os dias de 2023 que conseguir, porque a Felina jamais verá o fim do ano. Vai ser este ano que ela morre sob o meu jugo.

      ― E tu queres que eu a previna de que a vens matar? Não achas melhor eu ficar calada e tu apareceres de surpresa? Parece-me mais inteligente… ― questionou Íris.

     ― És mesmo uma querida. Preocupada comigo. Logo tu que representas a única pessoa com quem não fui correto… ―avançava Vítor, aparentando algum remorso. ― Porém, não te preocupes eu quero mesmo que ela não durma descansada. Vai tremer todos os dias a olhar para todo o lado a pensar quando e de onde eu posso aparecer para o seu julgamento final.

     ― Fica tranquilo que se eu tiver oportunidade passarei a mensagem. Não concordo, mas respeito a tua vontade. Ao fim ao cabo, tu é que sabes de ti… ― como que advertiu a rapariga, preocupada com a sede de vingança de Vítor. ― Preferia que fosses fazendo a tua vida ou, melhor dizendo, refazendo a tua vida em paz.

      ― Eu terei paz com a morte dela, minha querida. Adeus! ― Vítor desligou a chamada.

 

FIM

 

Final do romance policial "A Felina - Noites de Lua Cheia" de Gil Saraiva

 

 

 

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