Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 62
Também devia à mãe ter-se formado em direito, ter entrado para a Polícia Judiciária, e até ter aprendido a usar os seus conhecimentos legais para extorquir dinheiro aos agiotas e aldrabões deste mundo, sem nunca ter sido acusado uma única vez. A senhora sua mãe era uma artista perfeita sabendo sempre que papel representar para tirar vantagem de uma qualquer situação. Só a matara porque o raio da velha, a dada altura, entendeu que ele não podia ter outras mulheres e tinha que ser só dela.
Mas fora mais uma morte santa. Ele sabia que o pai, quando era vivo, tinha feito um seguro chorudo da casa deles, uma casa que já estava na família há mais de duzentos anos. Era um velho palacete da baixa de Lisboa, que ele sempre conhecera a precisar de obras. Um dia, há quinze anos atrás, a mãe acordara, fora fazer o pequeno almoço para ela e para ele (sem saber que ele já saíra de casa há mais de uma hora) e catrapus, uma fuga de gás levara-a para os anjinhos.
As verbas do seguro, somado ao dinheiro da venda do terreno do palacete destruído, para um hotel, tinham feito dele, um jovem com uma elevada conta bancária, lindo, atlético e bem de vida. Mesmo que para isso tivesse que ter chorado imensas lágrimas de crocodilo para afastar de si quaisquer suspeitas. Exatamente como fizera quando se vira livre do pai. Ele tinha um jeito tremendo para se livrar de trabalhos e a Polícia Judiciária ensinara-o a tirar partido do sistema.
Ele já possuía uma identidade falsa há mais de cinco anos, sempre pintara o cabelo de louro, desde muito novo, porque a sua mãe o achava parecido com um ator qualquer, lá do tempo dela, que também era louro. Já se lembrava, Robert Redford. Agora bastava-lhe pintar uma vez o cabelo de castanho escuro, cortá-lo muito curto, entregar a sua casa ao senhorio, e retirar o dinheiro da sua conta e colocá-lo na conta da nova identidade. Um advogado, com uma barba de três dias e ar de playboy.
Com o desastre da quinta de Sintra ele passara a ser Daniel Trindade Villa-Lobos, a nova identidade que aprendera a forjar na PJ, advogado, com ascendência espanhola, nascido em Lisboa há quarenta anos atrás. Recentemente regressado de uma estadia de seis anos no Brasil.
Mesmo tendo perdido a oportunidade de crescer na Kalinka, Vítor, achava que tivera sorte. Escondera-se durante o ataque à quinta e só saíra do seu esconderijo, com a sua farda da PSP, quando esta força policial começara a revistar o solar. Com cuidado, para evitar conhecidos, saíra pelo seu próprio pé do casarão. Ajudara a carregar a carrinha que levara o dinheiro, as joias e o ouro para Sintra e seguira com a carrinha até lá.
Uma vez em Sintra tirara a farda, deitara-a num contentor do lixo, satisfeito por já não ter que andar de chapéu e cabeça para baixa para não ser identificado em qualquer câmara, e seguira de táxi para Lisboa, à civil, como um passageiro qualquer. Fora uma fuga limpinha e sem espinhas. Agora restava-lhe passar uns meses a cultivar a sua identidade de advogado playboy, sem levantar muitas ondas, para depois reaparecer em algum lado, novamente brilhante e triunfante.
A Felina ligou para o seu mecânico de eleição, na manhã de dia doze já perto do meio-dia. Precisava de um favorzinho. Não era uma tarefa fácil, mas também não era impossível. Descreveu o que planeara com todo o detalhe e depois enviou-lhe um esquema do que queria, desenhado ao pormenor. Seria possível fazer aquilo? Ele, respondera que sim, desde que não apanhasse polícia à hora em que teria de agir. Não apanharia, isso ela podia garantir. Combinou tudo, ficou de lhe deixar um envelope com o pagamento na caixa do correio deste e despediu-se do amigo.
Na comunicação social o fim-de-semana e os três primeiros dias da semana seguinte foram dedicados a dois temas, o primeiro fora anunciado pela primeira vez na quinta-feira, dia dez, um dia antes do assalto à quinta de Sintra, que foi o segundo tema desses dias. As obras, do metro na linha vermelha e na verde, do metropolitano de Lisboa tinham encontrado algo.
Com efeito, a descoberta gerara já um pedido a Bruxelas para suspender, por uns meses, a continuação destas linhas até o achado arqueológico ser devidamente explorado. Tratava-se de uma grande extensão de ruínas romanas, que gerara um enorme alvoroço entre arqueólogos, historiadores e especialistas em antiguidade clássica. Uma das grandes descobertas era uma enorme biblioteca romana, praticamente intacta.
O achado era de tal ordem relevante que estava a ser considerado de importância histórica mundial. A biblioteca continha milhares de documentos e outras obras em perfeito estado de conservação. O Museu Nacional de Arte Antiga, conseguira-se colocar de imediato como um dos organismos principais responsáveis pelas investigações e a Doutora Íris Vasconcelos fora convidada, ainda no sábado, dia doze, a ser a investigadora-chefe nomeada pelo museu, em articulação com a Direção-Geral do Património Cultural, a entidade encarregada de gerir o projeto.
As Universidades de Lisboa, Porto, Coimbra e Algarve, através das suas Faculdades de Letras e dos Cursos de Arqueologia, em colaboração direta com o Museu Nacional de Arqueologia, atualmente encerrado para uma reconversão ao abrigo do PRR, o Plano de Recuperação e Resiliência Europeu, formavam os restantes parceiros principais.
Estes eram, assim, encarregados da investigação arqueológica, tendo sido selecionados dois arqueólogos de cada instituição para integrarem a equipa que fora constituída para liderar o projeto, sob a coordenação e gestão da Direção-Geral do Património Cultural, conforme indicação do Governo.
As excelentes relações, ultimamente reforçadas, entre o Governo e a Doutora Íris Vasconcelos valeram-lhe a escolha como a investigadora líder da equipa escolhida pela DGPC, mesmo não sendo uma arqueóloga e sim uma investigadora de literatura, história e arte antiga, principalmente a cultura greco-romana da antiguidade. A SIC conseguira um exclusivo a DGPC e com o Museu Nacional de Arte Antiga para documentar as investigações e garantira a assessoria da Doutora Íris Vasconcelos.
Paralelamente a TVI, por seu turno, prometia já uma nova série de treze episódios, sobre o assalto, com a assessoria de Íris para a nova série. Sim, porque ter o exclusivo nacional das imagens da Felina era como ter um maná caído do céu que convinha explorar. Desta vez teria alguma concorrência do canal americano de cabo, o “Crime”, mas isso não a importunava em termos de audiências nacionais. Melhor ainda, Cristiana Bandeira, conseguira do “Crime” os direitos televisivos para transmissão dos documentários destes para o canal generalista.
Por um lado, a descoberta arqueológica em Lisboa ia atrasar as linhas verde e vermelha da capital em dois anos, para descontentamento do Metropolitano que agora passava a ter tempo para fazer, por exemplo, o estudo alternativo à estação do metro no Jardim da Parada, uma vez que a falta de tempo para a sua realização já não se punha, cumprindo o determinado pela Assembleia da República, que tinha discutido a petição do movimento “Salvar o Jardim da Parada” e votado favoravelmente a um estudo de pormenor da alternativa na Rua Saraiva de Carvalho, conjuntamente com o Largo da Igreja.
Por outro lado, o Governo aprovara a criação do Museu Romano, sob a alçada do Museu Nacional de Arte Antiga de forma a expor o vasto espólio encontrado nas escavações. Mas a pérola daquele achado era, sem margem para dúvida, a Biblioteca Romana. Todos os documentos encontrados estavam a ser fotografados ou digitalizados, conforme a técnica menos corrosiva em cada caso, passando o museu depois, na secção criada para o efeito, a lançar livros na versão original e em português com uma equipa de vinte e cinco especialistas sob o comando de Íris Vasconcelos.
Diamantino Rodrigues Infante, embora sendo um dos arqueólogos mais novos do grupo selecionado para liderar as escavações, fora eleito, entre os oito especialistas, o líder desse grupo, passando a servir de interlocutor com Íris, com o Museu Nacional de Arte Antiga e com a Direção Geral do Património Cultural. O jovem, na casa dos trinta e cinco anos, viera de Coimbra para a capital com um entusiasmo incomparável. Lembrava muito um Indiana Jones à portuguesa, mas ele fazia por isso, pois era um admirador confesso do personagem de Steven Spielberg.
Na verdade, as calças de ganga gastas, a camisa preta, o colete de cabedal castanho e o chapéu à cowboy, a tapar um cabelo castanho, revolto e com raios se Sol aqui e ali, compunham na perfeição a personagem. Mas o olhar vivo, inteligente e irreverente é que tornavam todo o papel verosímil.
Foi ele que cativou e encantou a Felina e não o inverso, desde a sua chegada logo na primeira noite. Foi quase mágica a forma como ambos se envolveram, ele atraído pelo lado selvagem da gata que achava transparente, ela por adorar o puro charme daquele homem feito à medida para si.
(continua) Gil Saraiva