Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 59
― Não é nada disso. Eu nem ligo a essas coisas, a Íris, que é provocadora, está é a ver se me afeta a compostura. Espere lá, a menina disse o quê? A Felina já esteve consigo? Como assim? Já falou com ela? Aquela sujeita é o diabo. Levou a semana inteira a gozar connosco e aproveita o único momento em que não tínhamos reposto a vigilância para ir falar consigo. O Navas não vai gostar… ― resmungava o enervado Carlos Farelo.
― Falei sim, e muito. Depois ainda me deixou um presente para vocês. Ela gosta de vos ver bem e de saúde e, neste momento, vocês têm todos a cabeça a prémio. Lembra-se nos filmes de cowboys dos cartazes dos bandidos colados na parede do saloon a dizer “Procura-se – Vivo ou Morto” é mais ou menos isso, mas com as chefias policiais como alvo, ah! Mais o Ministro da Administração Interna. Ao que parece a Secretária de Estado foi apenas um pequeno ensaio. ― Íris, sentia um silêncio imenso do outro lado. ― Vá lá, não se assuste que a Felina gosta muito de vocês. Até deixou a maneira de todos poderem salvar o pescoço. Está-me a ouvir Carlos? Alô? Tem alguém desse lado da linha? Carlinhos… cu, cu… sou eu… fugiu?
― A Íris tem estado a brincar comigo. Isso que diz é um absurdo. Quem se atreveria a vir atrás das chefias da polícia e do ministro? Fale lá a sério. Deixemos as pantominices de lado. Já falou ou não com a Felina? ― Carlos Farelo, insistia, sem saber o que pensar. A rapariga devia estar a brincar, mas não era de bom tom aquela brincadeira. Ela devia entender isso, não?
― Primeiro insistem para que eu tente falar com a gata. Depois tentam impedi-la de vir falar comigo sem arriscar ser presa, mesmo a sim a pantera arranja uma oportunidade e cumpre o prometido, faz mais do que isso, trás provas de um autentico assalto às cabeças do poder policial, do ministro, ao SIS, passando pela PJ, GNR, SEF, SIED, até à PSP e o Carlos, um dos cinco Diretores Adjuntos da Polícia Judiciária, acha que eu acordei tolinha, talvez com uma qualquer comichão estranha que não na cabeça, e que decidi que esta era uma excelente manhã para me divertir à custa da PJ. Francamente homem, acorde que eu tenho estado a trabalhar... ― retorquiu Íris.
― Uau! Mas tu estás a falar a sério, porra! Não saias de casa, vou ligar a Navas e vamos já para aí. Mas que caralho! ― A chamada foi desligada sem que Íris pudesse sequer comentar o último linguajar do Diretor Adjunto da PJ.
Luís Navas chegou ao número quatrocentos e quarenta e quatro da Rua de São Bento. Atrás dele vinham os cinco Diretores Adjuntos da Polícia Judiciária e mais uns sete ou oito inspetores que foram arrumar os carros e que depois ficaram na rua a controlar o espaço. Íris, com um sorriso, abriu a porta do seu primeiro andar e deu bons-dias aos seus seis convidados-surpresa.
Meteu-os todos à volta da mesa da sala de jantar. Fechou as cortinas para a rua, abriu uma tela portátil de dois por três metros, ligou o seu portátil ao projetor, meteu o SD Card no seu computador e antes de pôr as gravações em funcionamento, fez um ponto de situação.
Afinal, era importante refrescar a memória de todos os presentes naquela sala sobre os mais recentes factos:
― Não quero repetir tudo o que os senhores já sabem, mas apenas realço que a presente situação se deveu ao facto da Secretária de Estado da Administração Interna e do seu motorista terem sido assassinados. Também sabem que tentaram imputar as culpas na Felina, embora não imaginem porquê. No entanto a PJ, e muito bem, já provou que a acusação era falsa e conseguiu convencer, após alguns mal-entendidos, a Felina a colaborar com a autoridade. Por ideia vossa eu servi de intermediária e ela esteve nesta sala hoje de manhã (e não, nunca tirou a máscara). Trouxe-me um SD Card com filmagens que não só provam a sua inocência em todo este caso, como denunciam os verdadeiros culpados e ainda revelam os planos futuros daqueles que levaram a cabo estes assassinatos.
A jovem parou o seu monólogo para beber um copo de água. Achou admirável ver os outros cinco homens e uma mulher a olhar atentamente para uma tela em branco como se estivessem a assistir aos “Encontros Imediatos de Terceiro Grau”. Finalmente, continuou:
― Quero realçar que depois de ter visto e revisto o que me preparo para vos mostrar, cheguei à conclusão que tudo isto só foi possível graças ao profundo ódio que o vosso ex-coordenador superior Vítor Fernandes de Melo, nutre pela Felina, pelo senhor Diretor Nacional da PJ, Luís Navas e pelo Diretor Adjunto, Carlos Farelo. Pronto. Agora, sem mais demoras passo às imagens. ― afirmou Íris.
Depois deixou todos a assistir à conversa entre os elementos da Kalinka e o Superintendente. Primeiro a admissão da realização dos assassinatos, que ilibava automaticamente a Felina, depois o comprovar absoluto do envolvimento do Superintendente e finalmente os planos da organização para se espalhar pelo país, depois de abater a sangue frio, toda a cúpula da estrutura policial do Estado português. Segundo o que constava nas imagens já com prazos e datas marcadas, para o corrente mês, naquilo que sugeria ser uma operação relâmpago.
― Eu mato aquele filho de uma grande puta do Vítor... ― gritava Carlos Farelo, já levantado da cadeira, rubro de fúria, apontando para a tela agora em branco. ― Um mal-agradecido que cospe em quem lhe deu a mão. É isso que esse cabrão é. Filho de uma grande cabra.
― Eu, peço desculpa, Senhor Diretor Adjunto… ― adiantava, Íris, com algum divertimento. ― Contudo, não me parece correto vir agora discutir para aqui, as relações zoófilas do pai de Vítor. Muito menos a sua natureza, ao que parece, mais ou menos chifruda. A situação mostra-se mais grave do que isso. Se ouviu bem eles têm uma reunião na quinta de Sintra com toda a Kalinka Isto, dias antes de partirem para um alargamento nacional por duas fases, primeiro somando as bases do Algarve e Coimbra e depois o resto do território. Para além disso faço notar que os próximos assassinatos estão igualmente agendados para depois dessa reunião magna. No meu entender o melhor a fazer seria apanhar as galinhas todas, incluindo as do Porto, dentro da mesma capoeira. Aí, uma vez resolvida esta situação penso que será possível o Senhor Diretor Adjunto, resolver a questão da maternidade caprina de Vítor. O que lhe parece? Acha viável? Quer considerar a minha proposta?
― Essa é muito boa Doutora Íris. ― Luís Navas aproveitava para intervir não fosse o seu adjunto recomeçar a disparatar. ― “Resolver a questão da maternidade caprina de Vítor”. Realmente um tema profundo e de um interesse absoluto para zoofilia, que não para a PJ.
― Sempre pronta a ajudar Senhor Diretor Nacional. ― Íris, respondia ao mesmo tempo que se levantava para indagar: ― Alguém quer um café? Fazer para um ou para sete é igual.
― Boa ideia, Doutora Íris Vasconcelos. Entretanto, eu tenho que fazer uma chamada. Aproveitamos para fazer uma pausa. ― Navas, retorquia, enquanto se afastava até perto da janela da sala.
Os cinco adjuntos da Polícia Judiciária ficaram em torno da mesa a tentar absorver toda aquela informação. Íris, por seu turno, desapareceu para a cozinha. Voltou com quatro cafés num tabuleiro, ainda a fumegarem, para quem tinha levantado o braço.
Junto trazia o seu telemóvel. Recebera uma mensagem da Felina com um plano de ataque. Nele a gata propunha a utilização do exército e do maior número de chaimites ou de pandur II possíveis, bem como dos aramites apreendidos a Muttley, se ainda não tivessem sido enviados para a Ucrânia. Afinal, aqueles aranhiços blindados à moda de chaimites eram ultraleves, rápidos e ótimos para ajudarem a cercar a quinta, ali, naquela zona de serra.
A outra ideia, uma vez que a Base Aérea de Sintra estava por perto, era terem os helicópteros prontos para dar caça aos fugitivos desde que tivessem câmaras térmicas instaladas. A PSP e a GNR podiam fazer um segundo e um terceiro cerco em volta da quinta e os militares e a PJ seriam responsáveis pelo primeiro. O plano continuava e no final vinham anexos quatro esquemas explicativos da colocação e ação de todos.
Passou o telemóvel a Luís Navas que lhe pediu para ela reenviar para ele toda a informação. Aquilo parecia-lhe muito bem. Evitariam confronto direto e mortes e uma vez cercados, e com todo o perímetro devidamente guardado iam-nos apanhando através de um simples cerco. Com alguma sorte podiam apanhar o bando sem causar baixas do lado deles. Aquela gata era realmente uma pena estar do lado errado da barricada. Era um ativo muito útil.
(continua) Gil Saraiva