Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 56
― É isso mesmo! ― reforçou Íris.
― Ficaram de me dizer se conseguem fazer isso já ou só amanhã. Aparentemente precisam de um aparelho qualquer… ― adiantou, ansioso, Carlos.
― É verdade, precisam de um Espectrômetro de Massas, que é um equipamento capaz de detetar, identificar e quantificar moléculas de interesse, por meio da medição de sua massa e caracterização de sua estrutura química. Depois disso, consultando uma tabela, é fácil saber a origem e tudo o resto. ― Íris, estava contente. ― Eu sei que a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa tem, acho até que mais do que um.
― Hum… vou ver se me conseguem pôr alguém de lá a pé… vou pedir que liguem para o Governo, alguém deve conseguir colocar um especialista a fazer isso ainda hoje. ― Carlos, entusiasmado ligou para o seu Diretor Nacional, quando desligou sorria de contentamento. ― Nem é preciso o Governo, o Luís Navas, tem um amigo que trabalha lá com esses aparelhos. Se o outro o atender dentro de meia hora já la estão todos. Mas Navas ainda me deve dizer qualquer coisa.
Não tiveram de aguardar nem cinco minutos. Luís Navas, telefonou a avisar que dentro de uma hora já deviam ter os testes concluídos. Posteriormente o seu amigo, se fosse preciso, poderia fazer, pela manhã, uma investigação mais profunda, mas provavelmente, para o que ele lhe pedira nem seria preciso.
Carlos Farelo, informou ainda que Navas, satisfeitíssimo, pedira-lhe igualmente para que ele desse os parabéns a Íris. Até mandara um aviso que não a autorizava a que se despedisse novamente. Tinham passado eles o dia inteiro aos papeis, que nem baratas tontas e chegara ela e, em cinco minutos, a investigação avançava a todo o vapor.
Ele próprio dizia o homem, estava realmente contente de ela ter voltado. Só tinha pena que ela não conhecesse a Felina. Caso contrário seria ela a falar com a gata.
Íris, ria-se. Ela sabia que a tinham em boa conta, mas isso era um exagero.
Nada disso, retorquia o homem. Se houvesse uma maneira de as colocarem em contacto, dizia, ele tinha a certeza que a outra se encontraria com ela. Mas havia, respondeu-lhe Íris, era falarem com o livreiro, o líder da Irmandade da Pantera Salvadora. Como é que era o nome do sujeito? Ah, sim, O senhor Januário do Ó. Se ele avisasse a comunidade, era possível que a notícia de um pedido de encontro chegasse à Felina.
Brilhante, dizia Carlos Farelo, sempre brilhante. Mas e Íris? Ela aceitava o encontro? Claro que sim, respondera, até porque estava convencida de que a pantera negra estava inocente. Ela nem armas de fogo usava e agora era uma assassina e, ainda por cima, armada em sniper. Isso não fazia sentido. Cheirava, isso sim, a uma armadilha diabólica.
Carlos, novamente ao telemóvel, falava com agora com o seu novo assistente, um tal de Nuno Peres. Queria que ele lhe arranjasse o contacto de Januário do Ó, o tipo da Irmandade da Felina. Infelizmente dizia o sujeito não tinham o número do homem. Nunca ninguém se lembrara dele. Carlos barafustava deste lado. Não tinham? Como não tinham? Tinham que ter! Acabou por desligar a chamada a deitar fumo pelas orelhas.
Íris, agarrou o seu telemóvel e fez uma chamada. Do outro lado a Dona Hermenegilda atendeu. O Januário? Para ajudar a Felina? Ela que não se preocupasse que ele já lhe ligaria. Nem demorou dois minutos a chamada a chegar. Depois de tudo explicado e do texto ditado pela Íris ao homem, ele fez seguir a mensagem para todos os inscritos, que já passavam os três mil. O homem, enquanto a mensagem seguia, queria dizer à Doutora Íris Vasconcelos que toda a comunidade da Irmandade lhe estava eternamente agradecida, por esta também não acreditar que a pantera negra fosse uma assassina e por estar a tentar ajudar um anjo em forma de gata. Uma deusa do Egito reencarnada.
Quando a jovem desligou a mensagem já seguira para toda a gente. O seu telemóvel também acusou a receção da mesma. Íris, mostrou a confirmação a Carlos Farelo. Agora restava-lhes esperar. Pediu Licença para ir à casa de banho e saiu da sala. Quando voltou, trazia uma mensagem que ela enviara do telemóvel que usava para a Érica. Apenas dizia:
“― Encontro-me consigo amanhã. Obrigada, Felina.”
A mensagem que enviara era um resumo de situação e dizia, inclusivamente, que ela era assessora da PJ e que estava a solicitar a reunião por pedido da própria Direção da Judiciária. Carlos Farelo, pensativo, questionou se ela queria que colocassem a casa sob vigilância. Nem pensar, respondeu-lhe a rapariga, se a outra desse conta lá se perderia toda a confiança. Também não achava bem ter de estar armadilhada com dispositivos de gravação da conversa, pelo mesmo motivo. Já era muito bom ela ter aceite o encontro. Nem fazia ideia da hora, nem do local, mas isso era normal.
Ainda estavam a discutir estes detalhes quando o telefone de Carlos tocou. Do outro lado da linha, Luís Navas, com uma voz de quem acabou de festejar um aniversário, dizia que a Íris acertara no centro do alvo. Todas as moedas da Felina, que estavam guardadas na polícia, eram feitas de cobre originário do Chile, sem qualquer margem para dúvidas, já o da medalha sobre o cadáver era proveniente da Mongólia. Quanto aos vernizes também eram totalmente diferentes. As composições químicas não tinham nada umas a ver com a outra.
Luís Navas, ainda com a mesma disposição, revelava outro fator de enorme importância. Todas as medalhas da Felina tinham pelo menos uns dez anos de idade, segundo fora determinado pela patine do verniz, embora estivessem muito bem envernizadas. Já na medalha do cadáver o verniz ainda não devia ter dez dias desde que fora aplicado. O relatório da Universidade de Ciências de Lisboa, seria oficialmente entregue dia cinco, com mais uns detalhes que pareciam revelar outras coisas como, por exemplo, que a nova moeda fora moldada de uma outra qualquer com molde de gesso.
O diretor Nacional da Judiciária disse outra coisa qualquer que fez o outro rir-se. Carlos Farelo, ria em abundância. Depois ao olhar, de repente, para Íris ficou sério e muito corado. A rapariga esperou que a chamada acabasse sem dizer nada. Quando o Diretor Adjunto desligou finalmente o telemóvel, ela perguntou qual fora o motivo daquele ataque de riso. Não fora nada, apenas uma brincadeira de Navas. Nada de importante. Podia não ser importante, mas ela queria saber qual fora a brincadeirinha.
O outro não se abria. Foi preciso a jovem dizer que se estava a sentir adoentada e que talvez amanhã não se pudesse encontrar com a Felina, para este perceber que não tinha como escapar ao relato.
― Ele disse-me para a segurar na Polícia Judiciária fosse de que maneira fosse… e como a menina gostava de dar o traseiro, se fosse preciso eu teria de me sacrificar, se é que era um sacrifício para mim, e investir na sua retaguarda, se isso a ajudasse a manter na PJ. ― respondeu vermelho que nem tomate maduro, Carlos Farelo.
― Mas ó meu amigo Carlos, não faço questão de passar a vida a ter, como você disse, que levar na retaguarda, mas se isso lhe agrada tanto, podemos começar já… ― retorquiu Íris, com um ar malandro, olhando diretamente para os olhos do Diretor Adjunto.
Para que cor é que se vai quando já estamos com um tom de tomate maduro? Pensava a rapariga. Descobriu de seguida: para o roxo escuro. O homem, a quem ela acabara de oferecer um copo de água, não só chegou ao roxo como a água lhe saiu de rompante por todos os buracos possíveis.
Íris, com destreza, mudou de assunto e perguntou ao enrascado Diretor Adjunto se era a ele que deveria ligar depois de contactada pela gata. O homem pegou rapidamente na deixa e clarificou que era isso mesmo. Aliás, podia contactá-lo fosse a que horas fosse. Ele estaria sempre junto ao telemóvel. No entanto, preferia que ela aceitasse alguma vigia e segurança. Nem pensar, teimava a jovem, isso podia deitar tudo a perder. Ela sabia perfeitamente os riscos que corria, mas preferia assim.
Finalmente, o Adjunto disse que era altura de ambos irem descansar. Íris, ainda brincou e perguntou se ele queria mesmo ir embora, mas o sujeito fez-se desentendido, enquanto se dirigia para a porta. Ainda lhe agradeceu o facto de ela não se ter ofendido com a piada de Luís Navas. Esta respondeu que todos ali eram adultos. Aborrecer-se como piadas machistas nunca fora o seu feitio. Era o pão nosso de cada dia. A de Navas até tinha sido engraçada, comparada com algumas que às vezes ouvia. O mais importante era o respeito existir, para lá de uma graçola sem má intenção. Trocaram beijinhos ao pé da porta e o homem desapareceu pela porta do elevador.
No meio de toda aquela enorme armadilha do Superintendente, Íris, ainda assim, tivera sorte. A Kalinka e Vítor, tinham feito as coisas com alguma leviandade. Não era muito credível que não soubessem que cobres de regiões diferentes tivessem assinaturas químicas diferentes ou que não se lembrassem que tudo o que são vernizes têm, consoante as marcas e as origens, uma assinatura química igualmente diferente. Simplesmente acharam que ninguém se ia dar ao trabalho de usar um espectrómetro de massas ou de se lembrar de o utilizar.
Para além disso, assassinar uma Secretária de Estado que, um mês antes, dera uma conferência de imprensa a prometer um combate sem quartel a tudo o que fosse crime organizado, parecia uma decisão absurda. O SIS e as outras forças da ordem, como os próprios Ministério da Administração Interna, da Defesa e dos Negócios Estrangeiros, deviam saber da chegada e implantação da Kalinka ao Porto e do seu alargamento a Lisboa.
Tanto assim era que a PSP de Porto e Lisboa já tinham núcleos próprios para abordar o problema, numa primeira instância, mas, possivelmente, também o SIS e a PJ já deveriam ter equipas ao mais alto nível a preparar formas de atuação e atá talvez pudessem estar a organizar, com o Governo, uma maneira de agirem militarmente.
Pelo menos, achava Íris, que Vítor tinha obrigação de saber tudo isso. O Estado português, não era certamente dos mais rápidos a reagir, e a Kalinka ainda só tinha meses de introdução no país, mas não estava a dormir. Como os primeiros confrontos tinham sido no Porto e com a PSP, era bem possível que estivessem a estudar o impacto desses conflitos iniciais e a delinear estratégias de ação, mas era um erro ridículo pensar que estavam todos a dormir na forma, como se nada fosse.
A arrogância da Kalinka, ainda era possível de se aceitar, mas a atitude negligente de Vítor só provava que o ódio que desenvolvera pela Felina lhe tinha toldado o espírito. Desde o tempo da Guerra Colonial que Portugal lidava com táticas terroristas, com máfias estrangeiras e com guerrilhas armadas. Ora isso é uma experiência de anos que não desaparece por milagre. Negligenciar a ação e atenção destas forças era, no mínimo, idiota.
(continua no Capítulo XIV) Gil Saraiva