Carta à Berta n.º 582: A Cerveja Pode Fazer Bem à Saúde?
Olá Berta,
Nesta semana uma notícia difundida na comunicação social fez as cervejeiras esfregarem as mãos de contentamento. Na maior parte dos cabeçalhos noticiosos o cabeçalho anunciava algo do género: “Afinal, beber cerveja faz bem aos intestinos e não engorda.”
Em subtítulo, a negrito, minha querida Berta, a maravilhosa descoberta ainda anunciava: “Investigadores concluíram que «beber cerveja faz bem à microbiota intestinal», um fator associado à prevenção de doenças crónicas como a obesidade, diabetes e cardiovasculares.”
O jornal diário Público, minha amiga, foi dos poucos que teve o cuidado de mudar o título difundido pela Agência Lusa para escrever no título, em vez do sugerido: “Beber uma cerveja por dia faz bem aos intestinos e não engorda, concluem investigadores.”
Com efeito, no corpo do texto divulgado pela Lusa, pode ler-se, cara amiga, a seguinte explicação:
«“O Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS) no Porto realça que o estudo, publicado no Journal of Agricultural and Food Chemistry e que também envolveu investigadores da NOVA Medical School — Faculdade de Ciências Médicas, concluiu que “beber cerveja faz bem à microbiota intestinal”.
“O consumo de cerveja contribui para a melhoria da composição da microbiota intestinal, fator que tem sido associado à prevenção de doenças crónicas muito comuns, tais como a obesidade, a diabetes e as doenças cardiovasculares.” Sublinha a equipa de investigação.
Para realizar a investigação, a equipa recrutou homens saudáveis, entre os 23 e 58 anos, para participarem num ensaio, ao longo de quatro semanas, que consistia em beber diariamente 330 mililitros de cerveja, com ou sem álcool.
Os resultados provaram que o consumo de cerveja, uma bebida que resulta da fermentação de cereais, “aumenta a diversidade da microbiota intestinal, sem aumentar o peso e a massa gorda”. Através do estudo, os investigadores concluíram que a ingestão de cerveja “não interfere significativamente em biomarcadores cardiometabólicos”, como a glicose, colesterol e triglicéridos.
“Curiosamente, a fosfatase alcalina, um importante biomarcador de danos no fígado, rins e ossos, diminuiu no decurso do ensaio”, salienta o CINTESIS. O centro acrescenta que o benefício da cerveja na saúde intestinal “provou ser independente do teor alcoólico “, ou seja, ocorre quer a cerveja tenha álcool ou não.
Os investigadores acreditam que o efeito benéfico da cerveja pode estar ligado com os polifenóis presentes na bebida, à semelhança do que acontece com o vinho tinto. Citados no comunicado, os investigadores salientam que o estudo “vem demonstrar que este tipo de bebidas ricas em polifenóis, no caso a cerveja, é uma abordagem interessante para aumentar a diversidade da microbiota intestinal.” O estudo, que foi liderado pelas investigadoras Ana Faria e Conceição Calhau, contou ainda com a participação de outros especialistas do CINTESIS.»
Ora, não encontrei, na nossa comunicação social, falada ou escrita, nenhuma interrogação sobre o modo como o estudo foi conduzido e sobre o que realmente se pode concluir dele ou quais as questões que ficam por responder. O que, minha querida Berta, ou é uma falha dos órgãos de comunicação social ou é um encosto ao lóbi cervejeiro.
As conclusões do estudo, no meu entender, são realmente válidas para os jovens adultos saudáveis a partir dos 23 anos de idade e permanecem válidas até aos homens saudáveis de meia idade até aos 58 anos, que bebam, apenas e só, uma cerveja por dia, ou seja, 33 cl. Aquilo a que o estudo não responde por tal não foi analisado, nem sequer mesmo extrapolado, é às seguintes questões:
Qual é o efeito da cerveja nas crianças, nos adolescentes e nos jovens até aos 22 anos de idade, mesmo que apenas ingiram uma cerveja por dia?
Qual é o efeito da cerveja nos mais velhos, a partir dos 59 anos de idade, e quais os efeitos que provoca à medida que essa idade aumenta?
Que tipo doenças são incompatíveis com o consumo de cerveja?
A diferença de género gera ou não diferentes reações à cerveja, e em caso afirmativo, como se comporta a ingestão de cerveja entre homens e mulheres?
A ingestão de uma cerveja, por dia, limita ou não o consumo de outras bebidas alcoólicas, podendo ter ou não consequências negativas?
Como o estudo foi efetuado apenas com homens podem existir reações diferentes às descritas no estudo no consumo, efetuado dentro dos mesmos parâmetros, por mulheres?
Se o estudo em vez de quatro semanas se mantivesse por um ano, ou seja, por mais 48 semanas, as conclusões teriam sido as mesmas?
Se o consumo for o dobro, ou até mais, relativamente àquilo que foi estudado, as conclusões alteram-se e de que maneira é que isso acontece?
Sabendo que em Portugal, segundo o censos de 2021, existem mais meio milhão de mulheres do que homens e que entre os 23 e os 58 anos apenas existem entre 2 a 3 milhões de indivíduos, sendo que os totalmente saudáveis rondarão a casa do milhão, talvez um pouco menos, para que serve um estudo que visa apenas dez porcento da população portuguesa, limitado no período de testes, e sem aferição das consequências da continuação do consumo passadas as 4 semanas?
Ora bem, minha querida Berta, as minhas questões podiam ser muitas mais, o que me aborrece, não no estudo, que me parece um bom passo em frente, mas na forma como o mesmo foi divulgado é que o nosso jornalismo atravessa um período sombrio. Mas isto sou eu a achar, minha amiga, fica com um beijo de despedida muito saudoso, este teu amigo de sempre,
Gil Saraiva