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Alegadamente

Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente correto.

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Carta à Berta. Os Filhos da Solidão...

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Olá Berta,

Folgo em saber que gostaste dos 6 episódios da história que te contei nas últimas cartas. Com que então estiveste em Faro, a passear no Jardim Manuel Bivar, junto à doca. Gosto que ele te tenha feito lembrar o Jardim da Parada, de Campo de Ourique. Eu sei que não são parecidos, apenas ambos têm um coreto, as árvores daqui dão lugar às palmeiras dai, ambos têm bancos e ambos têm pombos. Contudo, é ternurento saber que ligaste os 2 por causa dos velhotes que viste espalhados pelos bancos do jardim.

Porém, se olhares pelos jardins de todo o país, vais ver sempre essas imagens. Uns poderão não ter coreto, mas todos, sem exceção, terão velhos sentados pelos bancos, muitos deles olhando a mesma coisa, onde quer que os encontres: a solidão. Vou-te enviar um poema, à laia de balada, que fiz sobre o assunto, já tem algum tempo, pois eu, como sabes, também já vivi em Faro, foi há muitos anos, mas vivi. Espero que gostes:

OS FILHOS DA SOLIDÃO

(balada de um tempo que passa)

 

Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,

Eu desvio o olhar para não ver nada…

Em Faro nos bancos do Jardim Manuel Bivar

Eu fecho os olhos para não olhar...

 

Caras rugosas, com idade de avô,

No Jardim, sentadas, na Doca,

Ou perto do Lago,

Formas sombrias onde o tempo parou…

Bocas que apenas provam o vago,

Rostos que já ninguém foca...

Olhando o vazio...

Silêncios de arrepio...

 

Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,

Eu desvio o olhar para não ver nada…

Em Faro, nos bancos do Jardim Manuel Bivar,

Eu fecho os olhos para não olhar...

 

Caras dos filhos da Solidão,

Avôs, avós,

De tantos como nós,

Rostos reformados,

Sem compreensão...

E vozes, berros e gritos calados

Nos olhos perdidos,

Pelos filhos esquecidos...

 

Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,

Eu desvio o olhar para não ver nada…

Em Faro, nos bancos do Jardim Manuel Bivar,

Eu fecho os olhos para não olhar...

 

Na calçada eu vejo migalhas de pão

Para os pombos, por certo,

Alimentar...

Mas para os filhos da Solidão

Não vejo por perto

Uma esperança a pairar...

Filhos que agora são avôs, avós,

De gente que já os esqueceram,

Perdendo os olhares, os laços, os nós,

Daqueles para quem eles viveram…

 

Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,

Eu desvio o olhar para não ver nada…

Em Faro, nos bancos do Jardim Manuel Bivar,

Eu fecho os olhos para não olhar...

 

E passam os dias,

Os meses, os anos,

E mudam os rostos da solidão...

Novos enganos,

Outra geração,

Mas a forma de olhar não vai mudar,

Não...

As mesmas rugas parecem ficar

Em outros olhos pregados no chão...

 

Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,

Eu desvio o olhar para não ver nada…

Em Faro, nos bancos do Jardim Manuel Bivar,

Eu fecho os olhos para não olhar...

 

E ao olhar os filhos da solidão,

Escuto o cantar da brisa cansada

Cantando a balada do tempo que passa,

Escuto de inverno, primavera, verão,

Escuto o outono no Jardim da Parada,

Escuto a balada perdendo a raça,

E vejo, no Jardim Manuel Bivar,

A doca de lágrimas sempre a brilhar…

 

Em Campo de Ourique, no Jardim da Parada,

Eu desvio o olhar para não ver nada…

Em Faro, nos bancos do Jardim Manuel Bivar,

Eu fecho os olhos para não olhar...

 

Com o refrão me despeço, minha amiga Berta, obrigado por me fazeres recordar. Recebe um beijo saudoso deste teu amigo que não te esquece nunca,

Gil Saraiva

 

Carta à Berta: A Peça do Chinês - Parte II - E Vieram os Anjos...

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Olá Berta,

Ontem comecei a contar-te a minha saga sobre a peça do chinês. Vou continuar o relato, minha querida amiga, esperando que tenhas a paciência de leres todos os episódios, até ao fim, sem saltares nenhum. Garanto que a tua paciência será recompensada por alguns sorrisos e uma ou outra gargalhada.

Esta segunda parte da peça do chinês, relata a vinda dos anjos, contudo, não me vou adiantar demais, para já, mas lá chegaremos. Continuando onde ia, cumpre-me dizer-te, minha amiga, que, vindo do nada, qual raio fulminante, oriundo dos quintos de algum sítio que desconheço, uma dor aguda atingiu-me, numa zona que normalmente designo por pança ou bandulho, transformando-me numa espécie de boneco de trapos, daqueles que têm o mesmo ar idiota, como de um certo anúncio de amaciador de roupa, que vemos na televisão de tempos em tempos, atirando-me ao chão.

Esta dor aguda, lancinante e indescritível, apareceu em menos de centésimas de segundo, conseguindo ter a habilidade extrema de tornar o tempo imóvel. Era como se os relógios do universo tivessem todos decidido estacionar os ponteiros. Naquele momento apenas existia dor, sofrimento, agonia e nada mais. A vista deixou de ver, o palato perdeu o gosto, o nariz ficou sem cheiro, o olhar tornou-se surdo, os olhos deixaram de ouvir e os braços, cotovelos, pulsos, mãos e dedos partiram, quais migrantes ilegais, para parte incerta, abandonando o tato, o sentir e a capacidade de me ancorar.

Primeiro, fiquei de joelhos, prostrado, rendido a uma tortura pérfida que me invadia por dentro, consumindo-me o sistema nervoso, que gritava, em pânico, gritos mudos de rendição e suplicas babadas de piedade. Ainda ajoelhado, nessa posição adequada e própria para a época natalícia e festiva que se aproximava, tentei, com as escassas forças e entendimento remanescente, descobrir se existiria alguma estratégia possível de rendição, todavia, o inimigo, fosse lá ele qual fosse, apenas transmitia sofrimento e nada mais, aparentemente, nada preocupado, nem curioso, por saber por quanto tempo eu aguentaria até perder os sentidos e me render à sorte ou ao destino agora projetado.

Ainda hoje não consigo descortinar onde fui buscar recursos e reforços para logo depois, de rastos, armado em comando em prova de choque, munido de uma dificuldade que me parecia surreal, me conseguir transportar, por uns parcos 10 a 12 metros, até a um leito onde, instintivamente, adotei a posição fetal, que durante nove meses me protegera há 55 anos atrás. A situação era de tal configuração, dramática e aflitiva, que, por breves instantes, quase entendi pelo que passam as vítimas da guerra em Aleppo e outros locais semelhantes, quando surpreendidas por um ataque súbito.

O teto da casa fundiu-se com as paredes, a colcha da cama, os móveis e os bibelôs, numa massa disforme que voluteava espirais vertiginosas, compostas de escuridão e dor, algures no limite da velocidade da luz, fazendo-me partir, sem bagagem nem cintos de segurança, para o buraco negro da total inconsciência. Pelo que me foi descrito mais tarde apenas desmaiei.

Ainda ciente dessa parte do percurso desdenhei, com ganas de perplexidade, o uso da palavra apenas. Apenas o tanas, aquilo fora, certamente, a descoberta dantesca de um dos múltiplos portais do inferno, isso sim.

Porém, contou-me, dias mais tarde, a minha senhoria e querida amiga (que dividia nessa altura a casa comigo, há pouco mais de 8 anos), que eu, nesse dia, a tinha convidado para jantar comigo e que assistira a toda a cena sem muito poder fazer. Informou-me que eu nem a via, ouvia ou mesmo a sentia ali presente, qual autista perdido num mundo fora do quotidiano dos dias e das noites, gritando perdido, metaforicamente, por uma ajuda que não tinha como receber, por não poder ser escutada fora de mim, como é usual nos gritos mudos.

Precisando eu de ajuda divina, foi ela quem encontrou a alternativa mais próxima do auxílio dos céus, através de apelo telefónico desesperado, aos Anjos da Noite, uma organização empresarial que envia médicos ao domicílio, sem asas, infelizmente, e de aspeto bastante humanoide. Aliás, de Anjos, aqueles seres da noite, somente deviam ter o nome, tal como um oásis mantém o seu, mesmo depois de se ter rendido há muito ao deserto, seca que ficou a sua fonte de vida.

Todavia, a palavra noite, que lhes assentava como uma luva e que poderia muito bem significar trevas, a ter em conta os preços, verdadeiramente demoníacos, cobrados pelos serviços ficticiamente prestados. A mim calhou-me uma doutora que, a julgar pelo rosto indisposto e descomposto, pela voz de cana rachada e pela ausência de formas, pouco ou mesmo nada deveria à divina intervenção do Altíssimo.

Falhou integralmente o diagnóstico, na sua douta ignorância de quem se deve ter formado, inteligentemente, à custa das passagens administrativas dos tempos revolucionários, mas conturbados, do pós 25 de abril. Segundo a especialista, o meu problema, como me doía a pança, era certamente uma gastrite.

Tivesse eu tido, naquela altura, a mínima capacidade de reação intacta, ter-lhe-ia dito, como todas as letras, onde é que ela podia meter a gastrite, mais a estupidez do diagnóstico de trazer por casa, acrescido da ignorância escondida num diploma médico, conseguido de modo dúbio, nalguma feira da ladra, realizada pelos adros tortuosos do sistema educativo. Contudo, infelizmente, a minha nula capacidade de agir, quanto mais de reagir, permitiu que a fulana do estetoscópio escapasse impune à minha revolta.

Ora, sem qualquer surpresa, Berta, nada disso me trouxe qualquer desconto, nem o tratamento apontado me tirou as vertigens, o suor frio e as dores que, por essa altura, já me faziam imaginar uma miraculosa gravidez, bem no seu término, em momento de parto, sem dilatação e a necessitar de fórceps. Porém, a referida desasada, portadora do tal canudo (posso garantir, em boa hora, que o dito nunca me foi mostrado), num golpe de lucidez, que jamais se adivinharia vir daquele tipo de gente, lá aconselhou que era melhor chamar os bombeiros e ir para o hospital.

Nada a criticar, todos os anjos são bem-intencionados, e, mesmo sem entenderem um boi daquilo que deviam praticar e exercer, por falta de conhecimentos ou de vocação, não lhe posso negar, minha amiga, a extrema utilidade de um conselho que me custou quase cem euros, nessa noite.

Muito, mas muito mais difícil é imaginar dois bombeiros a levar o meu incapacitado metro e oitenta e dois, quase que inconsciente, escada abaixo, três pisos até à rua, num prédio sem elevador, edificado muito cedo, algures no princípio do último século do milénio passado.

Penso que foi a força da gravidade que acabou por ajudar a colocar os 85 quilogramas da massa, contorcida e em guerra consigo própria, que me representava, na maca da viatura dos soldados da paz, ainda para mais se tivermos em linha de conta que a velha escada de carvalho, era, nos 2 primeiros lances da descida, complicada de ultrapassar.

Afinal, os 18 degraus e os 2 patamares, estavam adornados com 52 vasos de plantas de interior, uma coleção de que muito me orgulho e que absorvem, para seu belo proveito, a luz, que a claraboia, a uns 5 metros de altura, convida a entrar, com a função de dar vida ao espaço, aliás, tu conheces bem, Berta, até o elogiaste muito, da primeira vez que jantaste aqui em casa.

Assim sendo, continuando a narrativa, carregar um peso morto de quase 100 quilogramas, embora vivo, por esta selva decorativa e vegetal, onde a largura deixada em cada degrau apenas permitia a presença de uma pessoa e não de 2, lado a lado, foi uma obra digna dos poemas épicos de Camões ou uma lança em África, enterrada à custa do suor e engenho de 2 ilustres e abnegados bombeiros.

Cheguei às urgências do céu algum tempo depois, a um local que dá pelo nome de Hospital São Francisco Xavier, onde fui alvo de carinho e atenção. Bem, estou a exagerar neste ponto. Deveria dizer, para ser correto no relato, que me contaram que fui bem tratado, que toda a gente se mostrou solicita e carinhosa. Contudo, eu não faço a menor ideia pois, nos momentos de consciência, muito poucos por sinal, apenas me recordo da tortura e das dores dentro de mim e mesmo nada mais.

Aliás, consegui imaginar-me um rato de laboratório, passando pelo raio x, análises sem fim, macas que chiam, chocalham e batem nas esquinas, ao serem transportadas de um lado para o outro, três ecografias, quatro médicos e um cirurgião, onze enfermeiros e seis auxiliares, soro, cateteres, medicação intravenosa e sei lá que mais…

Finalmente, no meio do martírio, acabei por concluir que, provavelmente, estava num purgatório, onde ainda teria muito para sofrer. A verdade, todavia, era outra bem diferente. Passaram 3 dias (que a mim apenas me pareceram cinco horas) e, dos quais, confesso, não tive grande consciência.

Lembro-me das dores, de vozes de fundo, de ser transportado entre espaços, e muito pouco mais, para a imagem ser mais clara, minha querida amiga, pensa como se deve sentir uma encomenda dos correios, no seu trajeto infindo entre o ponto de partida e o destino. Já imaginaste? Agora acrescenta uma boa dose de inconsciência, intercalada com dores lancinantes e agonia, e poderás ficar com uma ideia.

Graças a alguma divina intervenção, algures, no meio deste percurso, tudo acalmou e eu viajei para um adorável spa de primeiríssima classe. Descobri mais tarde que a partida para o dito spa, se traduzira, na realidade, na chegada abençoada da "Santa Morfina dos Aflitos"…

Por hoje é tudo, amanhã entraremos na terceira parte. Recebe um beijo amigo deste que nunca te esquece,

Gil Saraiva

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