Carta à Berta: Memórias de Haragano - A Revolução Começa na Cama - Parte II
Olá Berta,
A vidinha continua sorridente? Por detrás da máscara só saberá quem te conseguir ler nos olhos o sorriso da alma. Não me posso esquecer um detalhe importante relativamente às memórias que te estou a enviar, ou seja, tens de ter em atenção que nelas eu me dirijo a um leitor anónimo e não propriamente a ti.
Não leves a mal, porém, acho que não era bonito desvirtuar as referidas memórias se lhes alterasse o conteúdo. Com esta ressalva feita, já ficas a entender que estou a referir a qualquer leitor mais atento que, entretanto, me possa estar a ler ou o tenha feito na altura em que escrevi estas memórias.
Memórias de Haragano: A Revolução Começa na Cama – Parte II
“Pronto, não conseguia passar daqui. Ficava curto, talvez em demasia, a história para a revista. No entanto a hora de enviar o mail com o artigo caminhava desgovernada na minha direção. À primeira vista aquilo ia dar em acidente. A culpa era do meu irmão. O único dos 4 que se dignou a aparecer. Cada vez que tentava avançar na história só me lembrava dele a atacar avassaladoramente, com gula desmedida, as travessas de rosbife, que iam claudicando, uma após a outra, à sua voraz passagem cega.
Levantei-me da cadeira. Agora não dava para continuar. Fui ao bolso do blusão buscar um cigarro, um daqueles amaldiçoados pela minha senhoria que tentava a todo o custo proibir-me de fumar num dos seis lances das escadas do quase centenário edifício onde habito, ainda por cima, para cúmulo, um terceiro andar sem elevador (contudo, a vantagem de viver em Campo de Ourique, era sempre o meu porto de salvação). Mas, voltando ao tema… a cada dois metros a etiqueta sangrenta do proibido fumar condenava-me a calabouços bem mais tenebrosos do que aqueles pelos quais o meu tio-avô, antifascista militante, tinha passado, na companhia dos anjinhos da PIDE, no terceiro quartel do último século do milénio passado, o que, dito assim, parece mesmo uma catrefada de tempo, quando afinal, a história tem menos de cinquenta anos.
Peço desculpa, já estou a divagar novamente. Porém, vais ter de te habituar se quiseres continuar a ler-me. É o problema das mentes dos escritores e dos criativos, pensam muitas coisas, umas em cima das outras. Mas acho que rapidamente me apanhas o jeito. E, como penso que o leitor deve respeitar o escritor, eu tento responder do mesmo modo. Não te conheço e, no entanto, estou a tratar-te por tu, sem cerimónias, mas julgo ter uma razão para isso.
Ora bem, se durante algumas horas vou estar aqui a falar, sem tabus e sem receios contigo, fazendo-te confidente deste meu existir, contando quer com a devida descrição da tua parte, quer com a solidariedade própria de pessoas que se tornam intimas, não faz depois sentido a existência de <<salamalecos>> de etiqueta entre ambos. Espero que estejas de acordo.
Acendi o proscrito (cigarro), que para meu descanso e paz de espirito, mais uma vez não gritou, não pediu perdão por servir de bode expiatório dos impostos do governo, nem mesmo me ameaçou com as imagens ridículas que o Estado o obriga a usar, na frente e no verso de cada pacote de cigarros, mas isto porque eu as cubro com uns cromos da bola da Panini de um mundial que tresanda a D. Sebastião, ou com aquelas cartas infantis oferecidas nas caixas do Pingo Doce.”
Já me estou a alongar demasiadamente, minha querida amiga, despeço-me com um beijo, como sempre,
Gil Saraiva