Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente
correto.
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Aquele pensamento de sodomizar a gata dava-lhe alguma pica. Se calhar, provavelmente, nem precisaria de a forçar a isso. Podia ser que ela, uma vez caçada por ele se decidisse a entregar nos seus braços antes de ser devidamente enjaulada, para poder pagar pelos seus crimes. Com as mulheres nunca era fácil prever a reação, contudo, a ideia não lhe parecia de todo descabida.
Independentemente da imagem que o másculo Intendente fazia de si próprio o retrato apresentado por Cassandra Banheiras do polícia era totalmente o oposto. Para a estação de televisão o sujeito não era mais do que um arrogante e pretensioso polícia, absolutamente machista, de mau caráter e com tendência para o abuso de poder. Ora, esta visão antagónica da realidade é que levava o indivíduo a pensar que ia ganhar facilmente os processos em tribunal. Iria exigir milhões de compensação.
Contudo, embora o assalto fosse o enfoque do primeiro episódio da série sobre a Felina, o que daria origem aos seguintes e à criação da própria novela, era o que aparecia numa pequena apresentação daquilo que seria a restante série, mesmo antes do primeiro episódio terminar. Com efeito, existia muito mais que o público em geral desconhecia sobre a famosa gata. Em primeiro lugar, ela não aparecera só agora no panorama criminal português.
De acordo com o testemunho de Hermenegilda Fonseca e do livreiro Januário do Ó, a Felina começara a sua atividade há dez anos. Este facto dava a entender que a mesma deveria ser uma mulher entre os trinta e os trinta e cinco anos de idade. Altura em que ambos referiam terem sido praticados os primeiros roubos conhecidos e assinados. Sim, sim, porque a gata assinava sempre os seus feitos desde a primeira hora. De acordo com o senhor Januário ela não queria ser acusada de fazer algo que efetivamente que não fizera por mais espetacular que um roubo pudesse ser.
Era assim mesmo e a PSP confirmava. Todos os crimes da bichana eram assinados por uma medalha, tipo moeda de dois euros, com uma imagem de uma cabeça de pantera de um lado e da pantera completa do outro, tendo em ambas as faces, escrita, no topo, a palavra Felina. A medalha era totalmente feita de cobre, revestida com um verniz transparente muito fino.
A polícia pensava que o revestimento a verniz, não só não permitia que o cobre oxidasse, como ajudava a peça a reluzir no escuro, nas noites em que os roubos eram praticados, de maneira a permitir que o assaltante fosse devidamente identificado. Pela busca feita pela TVI, por todo o país, principalmente na zona metropolitana de Lisboa, existiam até à presente data trezentos e sessenta e quatro medalhas ou moedas da Felina, nos registos de prova da pantera negra, nos arquivos da PSP, da GNR e da PJ.
Com efeito, chegara à redação da TVI uma carta da gata a confirmar que iniciara a sua atividade em 2012, explicando que vinha de uma família de honrados ladrões, que se perdia em muitas gerações passadas e que sempre assinava os seus trabalhos. A carta, que confirmava os testemunhos policiais, de Hermenegilda e de Januário, adiantava ainda, numa folha A4, de papel timbrado com as imagens das faces da medalha, que jamais roubava gente honesta e que só roubava o Estado ou Instituições sob a sua alçada, porque o Estado não era efetivamente uma pessoa de bem.
As surpresas da TVI, relativamente à Felina, não se tinham ficado apenas pelo número de roubos efetuados que constavam nas diferentes polícias. Uma outra, fora a descoberta de que a ajuda prestada à Polícia Judiciária em identificar e prender os cabecilhas do maior bando de criminosos alguma vez capturado em Portugal, deixando-os prontos a serem caçados pela PJ, com provas dos restantes contactos nacionais e internacionais, de toda a rede existente e das diferentes atividades e negócios que possuíam, não era a única efetuada pela pantera.
Com efeito, todos os meses, dois fins-de-semana por mês, desde há dez anos, apenas com algumas exceções, em meses em que a gata não devia estar no país, que a Felina entregava à polícia, principalmente em esquadras da área metropolitana de Lisboa, vários bandidos das mais diversas espécies, sempre com provas dos seus crimes.
Para ela era indiferente que eles fossem fabricantes, traficantes ou armazenistas de drogas, assassinos ou assaltantes violentos, chulos ou gente envolvida em tráfico humano ou de armas e até violadores, pedófilos ou simplesmente gente que prejudicasse gravemente o ambiente.
Em resumo, andavam na casa dos milhares, os marginais entregues pela gata às devidas autoridades durante todo o tempo em que atuara. No entanto, não se tratava de evitar a concorrência como seria fácil de se pensar. Todos os bandidos em causa dedicavam-se a atividades em que parecia não haver qualquer código de honra ou em que os crimes eram violentos. Situações e crimes que não constavam no modo de operar da pantera, que revelava um padrão muito restrito de código de honra.
Nas principais esquadras da noite lisboeta não parecia haver um polícia que desejasse ver a Felina ser apanhada, embora todos afirmassem que cumpririam o seu dever, se o tivessem que fazer, perante um flagrante, coisa que até aqui nunca tinha acontecido, segundo as afirmações constantes nos vários testemunhos de guardas e oficiais das esquadras da PSP envolvidas na segurança da noite na capital.
Mas, afirmava a estação de televisão nada disso era tão relevante como a última grande descoberta feita pela TVI. Com efeito, a IPS, sigla que se traduzia pela Irmandade da Pantera Salvadora, era uma espécie de confraria informal, que contava já com mais de mil elementos, era a prova de que a Felina não era uma ladra vulgar.
Assim, ao que parecia, as verbas roubadas nos trezentos e sessenta e quatro roubos efetuados eram, em grande parte, distribuídas pela larápia por pessoas com necessidades graves e que precisavam urgentemente de dinheiro para resolverem os seus problemas, fossem eles meramente financeiros, de saúde ou de sobrevivência. O importante para a gata era que, sem a sua ajuda, esta gente, muita dela pertencente às classes mais desfavorecidas da população, visse as suas situações acabarem sem solução ou, pior ainda, em tragédia.
Segundo os dados do senhor Januário, que era o líder da informal Irmandade da Pantera Salvadora, as ajudas não se limitavam à área metropolitana de Lisboa, mas espalhavam-se por todo o território português, incluindo os arquipélagos da Madeira e dos Açores. Adiantava ainda que sempre que alguém era ajudado pela pantera, a situação não era apenas uma mera contribuição, não! Ela resolvia de vez o problema da pessoa necessitada.
O relato de Dona Hermenegilda Fonseca registava os sessenta e cinco mil euros que recebera da Felina, há vários anos atrás, numa altura em que precisava da verba para que o seu filho efetuasse, em tempo útil, um transplante de medula óssea por causa de uma leucemia. A verba não lhe permitira apenas operar o filho, mas também aguentar-se enquanto tomava conta dele, durante a sua recuperação em Londres.
Porém, afirmava que depois disso já recebera outra verba, desta vez para fazer face à inflação e à subida do custo de vida. O modo como este testemunho fora relatado em primeira mão, ao vivo na televisão, por entre a emoção da mãe, colocara meio país de lágrimas nos olhos de tão vivido que o mesmo provara ser. No final do primeiro episódio, a senhora ainda fizera um apelo sentido para todos os apoiados pela Felina, se juntarem, enviando os seus dados e contactos para a Irmandade da Pantera Salvadora.
A TVI ainda entrevistou um advogado sobre a legalidade dos donativos da Felina. Estariam as pessoas a receber um donativo legitimo, válido e legal? A opinião do especialista em doações, donativos e ações de solidariedade foi positiva. A haver crime este só poderia ser imputado à pessoa que deu o dinheiro, caso este tivesse sido roubado. Já quem recebe, não tem como saber se o dinheiro pertence legitimamente à própria Felina, que pode até ter fortuna própria ou se é fruto de algum roubo.
Entretanto, a providência cautelar, interposta pelo Intendente Vítor Fernandes de Melo à TVI, como forma de impedir a repetição da transmissão deste episódio ou dos outros da mesma série, foi rejeitada pelos tribunais ao abrigo da liberdade de imprensa.
Segundo o tribunal, os fundamentos apontados não apresentavam prova suficiente no que à verdade factos diziam respeito e, portanto, a aplicação de tal providência seria um atentado ao dever de informação de uma estação de televisão e à liberdade de imprensa, pelo que jamais poderia ser aplicada face aos prossupostos então expostos como justificativos da mesma. O Intendente ainda tentara recorrer desta decisão com uma nova redação da providência, contudo, uma vez mais, acabara por ver essa segunda tentativa rejeitada com base nos mesmos motivos da primeira recusa.
A entrevista na TVI e na CNN Portugal, foi preparada com requinte. Foram entrevistados o Diretor do museu, o Diretor Adjunto da Polícia Judiciária Carlos Farelo, o representante da companhia de Seguros Fidelidade, o representante do Banco de Portugal, alguns Seguranças do Museu e até um subcomissário da polícia participara, não se sabe bem como, mais uma série de gente, sob recomendação da estrela da noite, a Encarregada da Limpeza e Higiene do Museu Nacional de Arte Antiga, a Dona Hermenegilda Fonseca, bem como o dono de uma livraria da baixa lisboeta, um tal de Januário do Ó.
Ao mesmo tempo o Expresso Online (tal como o de formato de papel do dia seguinte) apresentava a sua reportagem original e exclusiva sobre o assalto, complementada com uma série de investigações efetuadas sobre o perfil da Felina, a quem a publicação apelidava da versão portuguesa feminina do Robim dos Bosques dos tempos modernos.
O Expresso assinalava numa secção especial que a Companhia de Seguros Fidelidade, que segurara a exposição, ia mesmo para a frente com o argumento que não pagava o valor do ouro roubado, porque o objeto do seguro fora efetivamente adulterado. Eles tinham feito o seguro a uma exposição e em ponto algum da apólice constava a armadilha montada pela Polícia Judiciária.
Quer a televisão, quer o semanário apresentavam um vasto dossier sobre o que se sabia da Felina. Porém, para espanto da população em geral, vários aspetos da atividade da gata foram publicamente revelados e estes faziam toda a diferença. Em poucos dias a ladra, que tinha ajudado a Polícia Judiciária na operação do milénio contra o bando armado do brasileiro Jô Muttley, passou de um estatuto de uma ladra normal para a condição de Robim dos Bosques no feminino e de justiceira heroína da vida real, uma pantera negra como que saída das histórias da banda desenhada para o dia-a-dia dos portugueses.
Cassandra Banheiras, ao contrário do jornalista do Expresso que apenas na sexta-feira lançou um caderno dedicado à Felina, apresentou uma série de nove episódios transmitidos dia sim, dia não, imediatamente a seguir aos jornais da noite da TVI e da CNN Portugal. O impacto foi de tal forma estrondoso que a CNN Internacional adaptou a série para a língua inglesa e a divulgou internacionalmente nos seus canais.
Ambos os jornalistas iniciaram as histórias do mesmo modo. O roubo, por parte da Felina, da exposição estival dedicada ao primeiro ouro vindo do Brasil, durante o período colonial, no Museu Nacional de Arte Antiga. Detalhadamente, e com testemunhos, explicavam que a exposição fora uma ideia criativa de um ex-elemento da Polícia Judiciária, para desenvolver uma armadilha eficaz com o fito de capturar a pantera negra.
Apresentavam o perfil do autor do plano, à data um coordenador principal da PJ, especialista em crime e com provas dadas na instituição, mas que atualmente se encontrava ao serviço do Comando Metropolitano de Lisboa, com a patente de Intendente de seu nome Vítor Fernandes de Melo. O conceito da armadilha era simples: atrair a gata ao museu e não a deixar sair.
O sujeito, tinha intempestivamente, acusado a mais recente Assessora da Polícia Judiciária, a Doutora Íris Lobato de Lemos Pessanha Vasconcelos, de cúmplice da pantera negra, por esta ter sido a primeira pessoa a ver e a descrever fisicamente a Felina, isso na noite em que graças ao alarme dado pela assessora, tinha sido desmantelado o pior bando de criminosos em Portugal, liderado pelo famigerado Jô Muttley, que previamente, nessa mesma noite, a Felina manietara deixando provas e pistas para que a PJ conseguisse desmantelar o bando em Portugal e no estrangeiro.
Ora, o simples facto de a assessora e a gata terem estado ambas na quinta de Sintra, onde o bando fora encontrado, e ainda o de a doutora ser igualmente assessora no Museu Nacional de Arte Antiga, levara o indivíduo a avançar com a acusação sem sequer ter prova alguma, nem mesmo circunstancial. Fora, aliás, essa mesma acusação, feita em público e no museu, que acabaria por ditar o abandono do coordenador principal da PJ e a sua passagem como Intendente para a PSP.
Quisera ainda o destino que, no roubo da barra de ouro de dez quilogramas do museu, a Felina, deixasse várias mensagens dirigidas especificamente a Vítor Melo explicando-lhe que não se atiça uma pantera com vara curta e agradecendo a barra de ouro. Toda a descrição da descoberta do roubo da barra pela boca da testemunha Hermenegilda Fonseca fora absolutamente hilariante e levara a estação de televisão a contratá-la para ser o fio condutor dos nove episódios da série.
A estação informava ainda que o Intendente do Comando Metropolitano de Lisboa da Polícia de Segurança Pública se recusara a prestar qualquer declaração em sua defesa e que, ainda por cima, apresentara queixa em tribunal da TVI, da CNN e do Expresso, por difamação da sua imagem e da sua elevada reputação policial e de investigação criminal.
Logo no primeiro episódio da série de Cassandra Banheiras, com a colaboração de Hermenegilda Fonseca, fora efetuada, com utilização de diversos atores famosos da estação, uma recriação da cena da descoberta do roubo do ouro que fizera as delícias do público. A cena fora recriada em português e depois em inglês para a transmissão internacional.
O primeiro episódio de “A Felina” denominado “O Museu Pariu um Rato” teve tal sucesso, pulverizando todos os recordes de audiência, alguma vez registados em Portugal em todos os tipos de programas, que a estação de televisão criou a dita série.
Sabia-se igualmente que estava em preparação uma novela com o mesmo nome a estrear brevemente no horário nobre da TVI, porque, revelava Cassandra Banheiras, a própria Felina, acordara ceder todos e quaisquer direitos do uso da sua imagem, se os mesmos fossem distribuídos por uma lista de gente carenciada, que ela enviara conjuntamente com a carta de cedência dos direitos de imagem e televisivos.
Afirmava ainda que se dispunha a ajudar a produção a produzir uma imagem realista de si mesma, se esses pagamentos de direitos continuassem a ser entregues aos carenciados indicados ou a indicar em futuras listas. A TVI comprometia-se assim publicamente a atribuir um montante por episódio da série e posteriormente da novela como cachê da Felina a ser entregue aos signatários listados pela pantera negra, mas utilizando a norma da estação de prestação de um serviço de solidariedade social, de maneira a poder declarar legalmente a distribuição dos rendimentos atribuídos.
Vítor Fernandes de Melo assistira revoltado ao sarcasmo com que a sua pessoa fora tratada pelo canal de televisão. Ele recusara liminarmente ser entrevistado pelo canal e avançara judicialmente sobre a estação e sobre o semanário. Aquilo era inadmissível. Iam todos pagar pelo desaforo. Bem, quase todos, afinal fora ele que não agira do melhor modo com Íris.
Porém, na altura, estava tão convicto da sua descoberta que não raciocinara convenientemente. Mesmo podendo suspeitar da fulana, devia ter investigado mais cuidadosamente. Essa fora, todavia, a sua única falha em todo o processo e não admitia qualquer outra culpa, fosse ela qual fosse. Mas iam todos pagar por isso. Ele jurava que iam ou ele não se chamasse Vítor Fernandes de Melo. Enquanto o tribunal tratava dos casos com a TVI, a CNN e o Expresso ele iria ajustar contas com a Felina. Quem é que aquela rafeira pensava que era? Ele jamais admitiria ser humilhado por uma mulher, quanto mais uma imbecil qualquer mascarada de gata.
O mais enervante de tudo para o Intendente era o facto de o estarem a fazer passar por oportunista, chico esperto, desprovido de inteligência e ainda por cima por o compararem publicamente a um rato. Um idiota de um rato apanhado na sua própria armadilha, como um mentecapto qualquer. A Felina fizera dele um palhaço, mas não seria a última a rir. Ela não percebia, mas não se tratava de saber se ele a ia apanhar, nada disso. A questão que se punha era apenas quando é que ele a ia apanhar? Nem mais, nem menos. Aí, nesse dia, a vingança seria consumada.
Já a coitada da Íris ele entendia. Fizera o que quisera dela, lambuzara-se à vontade e à vontadinha, deixando-a pensar que podia namorar com um indivíduo do seu nível e depois quisera prendê-la. Era normal que sendo apenas uma mulher, pois já tinha mais de dezoito anos, se pudesse sentir ofendida. O sexo feminino tinha muito aquela mania estupida de se vitimizar em vez de agradecer a atenção de um verdadeiro macho. Sim, a tipa não voltaria tão cedo a estar com alguém do seu gabarito.
Contudo, teria sido mais honesto da parte dela, reconhecer o privilégio de ter tido sexo com ele e desfrutado da sua companhia e conforto. Seria igualmente coerente desculpar-lhe a acusação lógica de que ela era cúmplice da Felina, até porque, se ele não tivesse visto com os seus próprios olhos a gata, Vítor preparava-se era para a acusar de ser ela própria a pantera negra. Até tivera muita sorte.
Realmente a grande diferença de altura e de linhas entre as duas fizera-o compreender que não havia como uma ser a outra disfarçada. Ninguém disfarça volume e tamanho apenas pondo um fato colado ao corpo. Fora isso que o levara a concluir que se elas eram pessoas diferentes e, então, só podiam ser cúmplices uma da outra.
Uma vitória insignificante numa batalha, só lhe iria dar mais mérito quando a guerra estivesse acabada. Aí o mundo veria quem era, afinal, o verdadeiro guerreiro. Teria sido giro se ele se pudesse gabar de ter ido ao cu à Felina, mas isso ainda não estava de todo afastado. Tudo dependeria do modo como a conseguisse agarrar. Ele estava convicto de que não falharia. Aliás, como nunca falhara até ali. Por vezes, apenas perdia umas batalhas, nada mais.
Íris, estava pasmada. Vítor, tinha uma fixação. Mas também tinha azar, escolhera-a a ela. Não sabia há quanto tempo ele tinha o seu ficheiro na pasta de prioridades, todavia, ela levava-lhe vários anos de vantagem. Vantagem a ajudar a polícia, vantagem a conquistar o carinho da população e a vantagem, fundamental, de ser mais inteligente do que ele, embora ele se achasse o suprassumo da barbatana.
A repetição, aos fins-de-semana, da limpeza de Lisboa, por parte da Felina, durante os Ciclos da Sombra, mantinha a alta consideração por parte dos polícias das esquadras, se bem que, nos centros de comando a coisa não fosse equivalente. Durante os três dias que se seguiram os resultados das ações noturnas da gata tinham ultrapassado o fim-de-semana anterior. O único senão, era não ter conseguido caçar pedófilo algum, nem sequer qualquer rede mafiosa ligada a essa praga. Porém, os flagrantes de práticas que envolvessem pedofilia implicavam que ela tinha que estar na altura certa, no local exato.
Na segunda-feira, dia vinte e nove, bem como na terça, dia trinta, o estudo ocupara-lhe integralmente o tempo. Mais do que um passatempo, aprender novas coisas da sua área deixava-a feliz. Ela gostava daquilo como quem gosta de bife em sangue com batatas fritas. Não conseguia explicar, mas que lhe dava um prazer enorme, lá isso dava.
Se uma gata não come o bife, ou a gata não é gata, ou o bife não é bife, pensava Íris, recordando a sabedoria popular. Com ela era mesmo assim, se havia algo de que ela gostasse, como dedicar-se às suas áreas de estudo, não havia exceções e era sempre com deleite que se entregava aos seus estudos. O mesmo acontecia com o desporto e as rotinas físicas para se manter em perfeita forma.
Quando, por fim, chegou a quarta-feira, dia trinta e um, a jovem contava os minutos para a chegada das seis horas da tarde. Finalmente, depois de horas de frenesim o momento acabou por acontecer. O Diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, o Diretor Adjunto da PJ, Carlos Farelo, o Intendente do Comando Metropolitano de Lisboa, um tal de Vítor, e um representante do Banco de Portugal dirigiram-se à zona da exposição do ouro colonial.
Com o encerrar das visitas públicas ao museu, naquele dia, esta terminara e era preciso recolher as peças, embalá-las e levá-las de regresso às catacumbas do Banco de Portugal. Não existia grande excitação no ar. Havia, isso sim, desalento. A armadilha para caçar a Felina, falhara em toda a linha. Os quarenta elementos extras da PSP já tinham sido dispensados, a carrinha com os dois inspetores da Polícia Judiciária também regressara à Sede, sem que nunca tivesse sido necessário alguém agir.
Primeiro tinham sido desmontadas todas as vitrines e os expositores onde se encontravam os mais diversos artefactos do ouro colonial, enquanto eram recolhidos os panfletos e a publicidade sobre a exposição, espalhada pelo museu e, finalmente, chegou o momento de abrir a vitrine e retirar a barra de ouro. O alarme foi desligado na perna da mesa e no vidro, a vitrine removida e o representante do Banco de Portugal avançou com ambas as mãos para retirar a pesada barra de ouro de cima da almofada preta e a voltar a meter na sua caixa própria.
Todos apanharam um enorme susto quando a barra voou pelos ares. A força que o homem calculara para levantar algo com um peso de dois garrafões de água, em contraste com o peso pluma da falsificação oca, fez a peça voar das mãos deste, devido ao contraste entre as forças aplicadas e o real peso da peça. Foi, a quase vinte metros de distância, Dona Hermenegilda, que fora chamada para limpar a sala, quem, à entrada da mesma, a acabou por apanhar quase no colo. A mulher, com o objeto nas mãos, surpreendida, olhou para os funcionários do museu, para os seguranças presentes e para a elite pasmada e disse simplesmente:
― Esta merda não pesa dez quilos! Os senhores não me levem a mal… ― continuou a senhora da limpeza. ― Mas algo me diz que aqui há gata! Isto não pesa mais que um penso higiénico por usar. Pois é, não te fies em água que não corra, nem em gata que não mia…
― Deixe-me cá ver isso. ― disse o Intendente, que chegava vermelho de raiva, em passo de corrida, quase arrancando a falsa barra das mãos de Hermenegilda. ― Não é possível…
A quase insustentável leveza da peça pesava toneladas ao olhar de todos.
Novamente, a simpática senhora da limpeza chamou a atenção dos presentes naquela sala. Todos seguiam, mais uma vez, o seu braço esticado, de dedo em riste, apontando para a almofada de veludo negro na mesa onde estivera a barra de ouro. Reluzindo serena, suavemente poisada, descansava brilhante, por entre a negritude envolvente, a moeda de cobre da Felina. Carlos Farelo esticou a mão e com as pontas dos dedos retirou a brilhante e novíssima moeda da pantera, atirou-a ao ar em rotação, para a voltar a apanhar no voou, fechando a mão em seu torno.
Por baixo da moeda via-se agora um pequeno papel dobrado em seis. Era uma tira fina apenas com uma frase simples que rezava assim: “Quem não tem cão, nem cadela, caça com gata, pois o gato está a gabar-se na viela”, leu o Diretor Adjunto em voz alta para todos. Depois reparou que havia uma frase mais pequena, na outra face da tira, que dizia: “Uma gata é… Felina numa casa guardada pelo rato Vítor”.
Dona Hermenegilda desatou a rir, agarrou o seu carrinho de limpeza e saiu da sala à gargalhada. Ainda a conseguiam ouvir à distância a repetir, por entre gargalhas, «“o rato Vítor” essa é boa, muito boa… “o rato Vítor”» e de seguida «a Felina papou o rato Vítor, essa é boa», seguindo-se mais gargalhadas a ecoar pelo museu a fora.
O rato Vítor espumava de raiva, aproximou-se da mesa e agarrou furibundo a almofada ali poisada, por baixo mais uma mensagem em letras gordas e grandes num papel A5 dizia: “Olá Vítor, eu sabia que tinhas que ser tu a tirar a almofada, deu-te o sono? Ficas avisado que nunca deves atiçar uma pantera com vara curta. Se faz favor pede desculpa por mim ao Museu e ao Banco de Portugal, a culpa foi tua que não te lembraste que à noite todos os gatos são pardos. Sabes… os ratos julgam-se gente, já as gatas são deusas. Adeus”.
Independentemente da fúria do Intendente que continuava em crescendo, a que se juntava o facto de ter sido roubada uma barra de ouro que valia mais de cinquenta mil euros, já sem falar do valor histórico, o melhor de tudo para os presentes na sala era o gozo da Felina ao Intendente. A maioria dos presentes já se ria, fazendo comentários jocosos e piadinhas próprias. Depois havia o olhar assassino de Vítor que ainda ajudava mais à galhofa.
O representante do Banco de Portugal dizia ao Diretor do Museu que era um roubo de cinquenta mil euros, sempre era dinheiro, mas que o valor histórico era realmente diminuto ou mesmo inexistente. A barra era apenas uma de mais de quinhentas que ainda tinham guardadas do primeiro carregamento do Brasil. Não sendo ele o dono, mas o Estado, aquele roubo bem que valia o dinheiro. Na sua vida era a primeira vez que se divertia com um assalto.
Só o representante da Fidelidade, a companhia de seguros que segurara a exposição parecia chateado. Apontava para os agrafos pregados ao redor do círculo por onde saíra a barra e dizia ao Intendente que a companhia não ia achar graça nenhuma àquela gracinha. Não se tinham apercebido que estavam a segurar uma armadilha. Ia expor o problema aos seus advogados, pois o que constava na apólice era um seguro de exposição.
Enquanto muitos riam, outros faziam o relatório da ocorrência, o clima de boa disposição só era quebrado pelo homem da Fidelidade, ainda às voltas com a defesa legal da companhia e da fúria desmedida do Intendente. Depois dos relatórios feitos, das perícias e das buscas efetuadas, bem como o levantamento dos testemunhos, a exposição foi transportada em segurança para o Banco de Portugal já devidamente acomodada e aquele episódio pareceu ficar terminado.
Como nesse dia não havia espetáculo no jardim, a polícia judiciária pediu ao Diretor do museu se podia encerrá-lo, mantendo apenas os seguranças. Eles precisavam fazer uma peritagem mais profunda e era melhor se fosse feita assim, desse modo. O homem concordou e dispensou todos os funcionários que ainda se encontravam nos seus turnos, garantindo que o dia seria pago integralmente pois tratava-se de um fator externo à casa, o que conduzia ao fecho das portas.
Dona Hermenegilda adorou a novidade, ainda há pouco tempo começara o primeiro turno e ia receber pelos dois, podendo ir de imediato para casa. Era mais uma folga paga para agradecer à Felina. Foi arrumar as suas coisas e saiu do museu muito bem-disposta. Já na saída, do outro lado do passeio, na Rua das Janelas Verdes viu a sua nova amiga, de costas para si, encostada num sinal de trânsito, a falar ao telemóvel.
A mulher atravessou a rua e aproximou-se da outra que ainda não dera pela sua presença. Esperou um instante pois ouviu a amiga a despedir-se ao telefone e, assim que esta desligou, bateu-lhe no ombro. Íris deu um saltinho, como que meio assustada e depois fez-lhe um enorme sorriso. Dona Hermenegilda perguntou-lhe se tinha um tempinho para um café, tinha novidades para lhe contar. A outra concordou.
Hermenegilda, que acabara de saber por um dos seguranças a parte da história a que não assistira, precisava mesmo de expandir a sua alegria com o acontecido. A amiga vinha mesmo a calhar. Mal podia esperar por começar o seu relato de tão excitava que estava. Nem tinha o filho para tratar, que naqueles dias de turno duplo ficava cinco portas ao lado da sua casa, no apartamento da irmã mais velha, ao cuidado desta.
Finalmente, instalada numa esplanada a tirar partido da brisa fresca do fim de tarde, a Dona Hermenegilda, a acabar de beber meia mini de Superbock, pelo gargalo, enquanto Íris se agarrara ao seu copo de imperial, começou o relato do acontecido. Porém, parou de imediato. Íris, fizera-lhe sinal para esperar, assim que ela dissera qual era o assunto. De dentro da pastelaria vinham a sair duas pessoas que ela conhecia bem dos seus encontros sociais. Um, era jornalista do Expresso e a outra, era a apresentadora, pivô e jornalista da TVI, Cassandra Banheiras.
Íris, fez-lhes sinal, eles aproximaram-se e ela perguntou-lhes se não queriam um exclusivo, em primeira mão para os seus órgãos de comunicação social. Teriam de pagar, mas a sua amiga Hermenegilda dava-lhes o exclusivo a ambos do assalto da Felina, acabado de descobrir, ao Museu Nacional de Arte Antiga. Os dois tiveram de contactar os seus superiores e finalmente por cinco mil euros cada, puderam ouvir a história da Dona Hermenegilda.
Ainda por cima a senhora era uma mulher de quarenta anos de boa aparência, cara alegre e bonita. O jornalista gravou o relato e mais umas fotos que Íris lhe enviou por e-mail. Já Cassandra Barreiras, depois de ouvir toda a história, partiu com a outra para os Estúdios da TVI para gravar a entrevista. Ficou combinado o Expresso Online e a TVI lançarem a notícia no dia seguinte à noite, à hora do noticiário da TVI e da CNN Portugal.
Na segunda-feira de manhã, quando o Diretor do Museu chegou ao seu gabinete, Íris, bem-disposta, estava à sua espera junto à porta. Este abriu a fechadura, entrou e pediu-lhe que ela entrasse também. Foi com enorme satisfação que recebeu os dois exemplares idênticos do projeto, feito a contar com o PRR, o Programa de Recuperação e Resiliência, candidato a duzentos e cinquenta milhões de euros da Comissão Europeia, conforme prometido, perfeitamente dentro do prazo.
O nome do projeto “A Memória de um Povo pela Arte” prometia um dos maiores apoios de sempre de Bruxelas ao setor da cultura caso este passasse. Tal feito nunca fora tentado, mas quando a Doutora Íris Vasconcelos o explicara pela primeira vez, no dia em que ela pedira uma entrevista no museu, convencera-o logo de início.
Aliás, José Pereira Tucano, afirmava à rapariga que nem teria sido necessária a carta e a explicação ao vivo do Diretor Nacional da PJ sobre o incidente de sexta-feira. Ele nunca acreditaria nas barbaridades que o coordenador superior da Polícia Judiciária dissera. Ela agradeceu a confiança e devolveu a chave do seu pequeno gabinete durante aquelas semanas. Estava tudo limpo e pronto a usar por um qualquer novo colaborador.
Já de saída, tendo passado pelo bar, encontrou a Dona Hermenegilda ainda ali. A mulher tinha um ar cansado. Certamente decidira tomar o pequeno-almoço antes de rumar a casa. Íris, tirou da sacola um livrinho A4 e passou-o à amiga. Continha seiscentos nomes de pessoas ajudadas pela Felina e os respetivos contactos, para ela entregar ao seu amigo livreiro. Agradeceu ainda, novamente, toda a ajuda e confirmou-lhe que conseguira entregar o projeto a tempo, unicamente graças à preciosa ajuda de Hermenegilda, a quem estava eternamente agradecida.
Ficaram as duas a falar sobre a barracada de sexta-feira dada pelo fulano da Judite, sobre a Felina e muito sobre a vida de Hermenegilda, uma mulher batalhadora, que nunca desistia de nada, nem das pessoas em quem acreditava. Nunca tivera muitas amizades, até se formar a Irmandade. Agora, ao contrário do seu passado, tinha um vasto grupo de gente em quem confiava, gente com quem sabia poder contar.
O mês de agosto arrastou até ao dia trinta e um os Ciclos da Sombra. Só a dia um de setembro é que recomeçavam, com o início do Quarto Crescente, os Ciclos da Luz. O Quarto Crescente era o Ciclo da Ascensão de Bastete, a deusa egípcia com cabeça de leoa ou de pantera, dependendo da época, também considerada a deusa dos felinos, a protetora das mulheres nascidas sob o signo astrológico ocidental de Leão.
Bastete, era a deusa da luz por ser filha do deus Sol, Rá, mas dedicada muito afincadamente a Lua, sendo conhecida na mitologia egípcia principalmente como a deusa da Lua. Bastete, era também a protetora do lar, da casa, da fertilidade, dos segredos e mistérios femininos, sendo a única entidade no Egito capaz de gerar um eclipse solar. Ela dominava o poder da vingança e da justiça pelas próprias mãos.
Existem ainda mais segredos na mitologia desta deusa. Bastete é apontada em muitos estudos mitológicos como filha secreta de Ísis com Rá, mas é de Ísis que ela herda o título de deusa da sexualidade, da fertilidade e do lar, bem como a capacidade mágica da mãe orientada para a magia e os mistérios da noite e da Lua.
É a ela que se deve a referência ao vinho tinto, como uma bebida sagrada e com poderes ocultos. Tempos houve em que a festa do vinho tinto dedicada a Bastete, em Bubastis, cidade do delta no Nilo, no lado oriental, juntava setecentas mil pessoas em celebração. É por causa destas festas que ela é igualmente conhecida como deusa da música, da dança e do vinho tinto.
Por tudo isto, o primeiro ciclo dos Ciclos da Luz era designado pelo Ciclo da Ascensão de Bastete, sendo a entrada no Ciclo da Lua Cheia o Ciclo do Poder Supremo da deusa. A Felina, como o seu fascínio pelo fantástico e pelas mitologias clássicas, gostava de se imaginar como a encarnação viva de Bastete. Daí o Sortilégio da Lua Cheia ser para ela mais um facto real de que uma simples fantasia. Nas suas aprendizagens e estudos universitários ninguém, que na discussão académica falasse de modo menos simpático de Bastete, lhe conseguia levar a melhor na argumentação. Até porque, dizia, só uma deusa muito poderosa é que podia trazer sempre com ela, enquanto sua guardiã, a cruz egípcia da vida.
Este fetiche de Íris por Bastete era o que fazia da Felina a ladra e a poderosa durante os Ciclos da Luz, no Quarto Crescente e na Lua Cheia, e, por outro lado, a justiceira e a vingadora, nos Ciclos da Sombra, enquanto ocorriam o Quarto Minguante e a Lua Nova. Os seus gadgets e as suas armas, uma vez associadas ao fato completo da pantera negra, substituíam os adornos, as pulseiras e a cruz da vida de Bastete, no seu entender, na perfeição.
O seu fascínio pela DC Comics, pela Disney e Marvel, assim como pela BD, com todos os seus heróis e vilões, associado às maravilhas da mitologia egípcia em particular e ás mitologias clássicas no geral, tinham levado, à criação da Felina, numa altura em que ela ainda apenas tinha dezassete anos. Depois disso, não havia como fugir, apenas lhe restava aperfeiçoar e melhorar a personagem à realidade e à sua vida adulta. Fora exatamente isso o que Íris fizera.
A terça, quarta e quinta-feira foram dias de rotina, basicamente passados a estudar. Íris, sabia que no ano seguinte teria o seu novo doutoramento para fazer, porém, se o seu projeto para o Museu Nacional de Arte Antiga fosse aprovado já tinha a garantia da Universidade de que o podia apresentar como tese final do doutoramento como perita em arte clássica e arte antiga em geral e esperar pelo resultado, sem perder mais um ano. Contudo, ainda falta um importante se…
Foi no início de sexta-feira que a jovem soube que o seu antigo coordenador superior da polícia judiciária entrara para o Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, como Intendente. Não havia dúvidas que o Vítor se movia bem nos meandros da autoridade. A novidade chegara-lhe pelo Subcomissário Paulinho Fonseca, quando ligara para a esquadra do Calvário, para avisar que iria trabalhar mais três noites seguidas.
O novo Intendente começara, nessa manhã, a pedir relatórios a todas as esquadras da Área Metropolitana sobre tudo o que eles tivessem à cerca da Felina. Ora, eles sabiam que ela quase só trabalhava com as esquadras localizadas nas zonas de maior criminalidade em Lisboa e, vá, uma ou outra mais em caso de maior necessidade. Ele já conseguira falar com todas essas e nenhum deles queria perder a gata por causa de um abelhudo.
Ora a única prova que eles tinham contra a gata era a moeda que ficava nos locais onde ocorriam os crimes, mas isso não era prova concreta de que ela estivesse envolvida na captura dos sujeitos. Tanto quanto sabiam, até podia ser um imitador. Toda a gente sabia da história do museu, caramba, eles tinham lá tido quarenta homens a guardar aquilo dias a fio. A história alastrara que nem fogo.
Não fora a Felina diretamente a prejudicada, mas o tipo acusara uma doutora de ser cúmplice da gata, dias depois de se ter feito passar por um homem apaixonado por ela e a ter sodomizado. Um tipo daquele nível não merecia ajuda. Ainda por cima a coitada da mulher, uma jovem, nem tinha nada a ver com a pantera negra, até ajudara a Judiciária no caso da década. Que grande paga que a Judiciária lhe dera.
Então e agora vinha o mesmo tipo, que fizera o que todos sabiam, chatear a malta da PSP e logo com galões de Intendente? Mas nem pensar, ninguém podia jurar o envolvimento da gata e enquanto assim fosse ninguém abriria o bico. Nenhum deles queria perder o apoio da Felina. Eles esperavam que ela acreditasse neles. Ninguém ia bufar fosse o que fosse. Ter um tipo daqueles no Comando Metropolitano de Lisboa era uma vergonha para a Polícia de Segurança Pública.
A gata agradeceu o apoio e pediu-lhe para avisar as outras esquadras que ia estar de serviço na sexta, sábado e domingo. Paulino, satisfeito pela resposta, garantiu que passaria a palavra. Mostrando-se curiosa, a mulher ainda perguntou o que acontecera à sujeita a quem o Intendente acusara. Não acontecera nada, nem o Diretor Nacional da PJ acreditara nele, afirmava com uma gargalhada o Subcomissário Paulinho. O tipo seguira um palpite. Pelo que sabiam a tal doutora fora a primeira pessoa a ver a Felina, no muro da quinta de Sintra, e ele achara que a doutora a ajudava a ela.
A gata ainda comentou que era estranho, ao fim de dez anos, um tipo desses não saber que ela trabalhava sempre sozinha. Senão, disse a rir, ela não passaria de uma gata escondida com o rabo de fora. Não ia pôr a sua segurança em risco com uma parceira civil. Era isso mesmo que constava nas esquadras, dizia Paulino. Era isso mesmo.
Agora ia ter de dar corda aos sapatos e recuperar o tempo perdido. Chegada a casa equipou-se a rigor. Minutos depois, algures pelas escadarias da Assembleia da República, aqui e ali, ficava-se com a sensação de que as sombras tinham vida. Algo se movia furtivamente em direção a Alcântara, ao Cais do Sodré e aos outros bairros famosos da noite lisboeta. Não demorou muito à sombra viva a chegar ao seu destino.
A Felina não procurava os vendedores de rua que traficavam, muitos deles, para manterem o seu próprio vício. Nada disso. Ela queria os outros, os que ficavam com o dinheiro dos pequeninos e dos que tentavam sobreviver. Era esses que ela mandava para o castigo, conforme podia, principalmente durante os Ciclos da Sombra.
Na Travessa da Água, no Bairro Alto, o chefe principal, Inácio Fontainhas olhava para o seu calendário poisado na secretária. Ia começar um Quarto Minguante, seria possível que desta vez a Felina voltasse à caça? Ela faltara os dois últimos, teria desistido? Pegou no telefone, do outro lado uma voz grave atendeu a chamada logo ao primeiro toque:
― Subcomissário Paulinho Fonseca, esquadra do Calvário, sim?
― Fonseca boa-noite, então, tudo bem? Aqui é o Inácio, da Travessa da Água, no Bairro Alto, hoje é o primeiro dia de Quarto Minguante, achas que ela volta? ― indagava o homem. ― Dava-me um jeitão engavetar alguns daqueles gajos, os pintas, esta noite. Andamos abaixo da média sem a ajuda dela, por aqui, e com vocês?
― É verdade, pá. Nós também. Habituámo-nos à mama e agora custamos a fazer pela vida. Já pensei nisso um monte de vezes hoje. O problema é que ela agora é a estrela da PJ e do Governo, provavelmente deixou de ajudar os pequeninos. É uma chatice… ― concordava Paulino Fonseca aborrecido.
― Nem me digas nada, ainda agora falei com a malta de Santos e Mouraria, na Rua da Palma, com o pessoal da Rua da Boavista no Cais do Sodré, e está tudo em défice. Espero que a gata regresse esta noite. Ela poupa-nos muito trabalho. Deixa sempre tudo prontinho.
Ficaram um pouco à conversa até desligarem. Todos queriam a Felina.
Em Alcântara, perto do Estádio da Tapadinha, um Mercedes MGM estacionado, com alguém a fumar no seu interior, despertou a atenção da pantera, primeiro dera conta, pelo cheiro, da presenta das cigarrilhas Café Creme nas redondezas. O odor levou-a até à vista da viatura. Ela já vira aquele carro no Cais do Sodré, várias vezes este ano, mas sempre sem o seu ocupante no interior.
A jovem tirou da mochila a GoCam Action Pro Sport 4k Full Hd Wifi com Micro incorporado e o seu Drone DJI Matrice 300 RTK + Zenmuse H20N, e preparou ambos para a filmagem que pretendia fazer. A prática a usar os aparelhos permitia-lhe ter tudo pronto em dois minutos. Tinha escolhido um cartão de memória micro-SD de 64 GB e preparado o Wifi para poder retransmitir o que filmasse através do seu telemóvel e enviar para a esquadra de polícia mais próxima. Acionara igualmente o microfone para poder gravar qualquer conversa que viesse a acontecer.
As janelas do Mercedes continuavam fechadas. Como conseguia o homem fumar com tudo fechado? A gata não entendia aquilo. Por fim, conseguiu fazer o drone poisar numa árvore a cerca de três metros da viatura. O modo furtivo do drone evitava que este fizesse demasiado barulho e o sujeito, dentro do carro não dera pela sua chegada.
A Felina quase que jurava que o Café Creme, alcunha que ela colocara ao homem, estava a expandir território, agora que o Pintas se encontrava preso. Mas qual seria o seu negócio? Durante duas horas filmou sempre que havia ação. No final, tinha provas de que o individuo era não apenas chulo, como também traficante de armas e de droga. Captou a matrícula de dezassete viaturas e ocupantes que vieram ter com ele. Registou o arsenal de armas e droga que filmou no porta bagagens do carro e ainda gravou as duas carrinhas de meninas que chegaram para receber ordens do sujeito.
Finalmente, à primeira oportunidade recolheu o drone, editou o filme no seu telemóvel e guardou a câmara e o drone na mochila. Depois, com as abraçadeiras pretas prontas no seu cinto, esperou pelo melhor momento para agir. A situação deu-se momentos depois. Um sujeito queria comprar uma metralhadora semiautomática, mas regateava o preço.
Tudo se passou muito depressa. A Felina aproximou-se do local e de zarabatana na boca levou quatro segundos a disparar dois dardos que deixaram ambos os homens a dormir. Aproximou-se calmamente, prendeu os braços dos homens atrás das costas com as suas abraçadeiras pretas, guardou os dardos para os reciclar e colocou uma moeda no banco da frente do MGM. Agora já podia fazer a chamada. Marcou um número com o seu telemóvel encriptado e com a aplicação que lhe dava aquela voz suave e doce. Este tocou duas vezes e alguém atendeu:
― Subcomissário Paulinho Fonseca, esquadra do Calvário, sim?
― Boa-noite, meu amigo, já tinha saudades suas, como vai a sua noite? ― indagou a gata.
― Olá Felina, julguei que nos tinha abandonado. Agora que é estrela de televisão e a queridinha da PJ e do Antonino Mosca… ― retorquiu o subcomissário.
― Nada disso, realmente nos dois últimos meses tive que fazer uma paragem, devido a uns afazeres pessoais. Mas já estou de volta. Olhe acabei de lhe enviar uma gravação para o vosso e-mail. Tem provas suficientes para prender, pelo menos dezoito pessoas, mandei igualmente a localização da viatura a partir da qual os crimes foram praticados. Este é peixe mais graúdo. Costumava andar pelo Cais do Sodré, mas sempre me tem escapado. Não demorem que eu fico a guardar o lugar... ― relatou a jovem.
― Dezoito? Isso é que é voltar em forma. Dê-me só um instante vou dar as ordens ao piquete. Falamos de quê? Droga? ― quis saber o polícia com uma voz que emanava alegria.
― Droga, armas e prostituição. Hoje, deixo o dinheiro todo. Apenas levo quatro barras de ouro de 200 gramas que estavam nos bolsos do Café Creme. Alguém deve ter pago em ouro. ― respondeu a gata. ― Vá, não se demorem.
― Já devem estar quase a chegar. Acha que vale a pena ficar alguém no Mercedes a ver se aparecem mais bandidos? Claro que teríamos de cercar o local, mas valerá a pena?
A Felina ripostou que sim. Apanhariam as carrinhas das meninas, no mínimo.
― Ótimo, ótimo! Assim faremos. É muito bom voltar a falar consigo minha amiga. Vou avisar os outros que está de volta. Beijinhos… ― retorquiu o polícia quase festivamente.
― Beijinhos, Subcomissário. Sempre um cavalheiro. Gosto disso. Adeus, meu caro amigo... ― disse a gata desligando a chamada.
Até às cinco da manhã dessa noite a Felina ainda contactou mais duas esquadras, mais outras duas no sábado e quatro domingo. O processo era sempre parecido. Porém, e porque tinha de provar os crimes, e a prova tinha que poder ser aceite pelos tribunais, por vezes, as atuações eram mais demoradas do que ela gostaria. O fim-de-semana rendera cinquenta e sete detenções para as esquadras envolvidas, milhares de euros apreendidos, bem como muita droga e armamento diversificado.
Nestas detenções nunca eram contabilizadas as prostitutas, muitas vezes elas igualmente vítimas dos próprios bandidos. Todavia, alguma lentidão e procura de prova mais não eram que os ossos do ofício. Por tudo isto, nas esquadras contactadas, desde as Avenidas Novas a Belém ou ao Parque das Nações ninguém falava da pantera negra à comunicação social.
O pacto de silêncio nunca fora pedido pela gata, contudo, os polícias mantinham um sigilo apenas quebrado entre eles. De vez em quando, um ou outro jornalista lá ia apanhado algo avulso, principalmente os do Correio da Manhã, que pareciam cães em volta de um osso. Estas esquadras tinham-se tornado de tal maneira fiéis à Felina que nem à Polícia Judiciária revelavam quem os ajudava na sombra. Para eles, o ditado de que à noite todos os gatos são pardos, tornara-se uma premissa. Parecia que a ajuda vinha da Felina, mas podia ser de outra bichana qualquer, eles não tinham como provar que fora ela. A moeda de cobre, por si só, não provava nada, diziam.
O único caso dessas três noites em que a gata agira corpo a corpo, fora quando, no domingo, nas Avenidas Novas, apanhara um chulo a querer prostituir duas crianças de doze anos. O chulo e o cliente, um gordo balofo instalado ao volante de um BMW topo de gama, iriam, provavelmente, nos próximos meses, de ter de fazer várias cirurgias faciais. Mas a fatia mais dolorosa da despesa seria numa total reconstrução das dentaduras de ambos.
Luís Navas chegou junto à zona VIP onde se encontravam algumas das caras mais conhecidas de Lisboa. Aproximou-se do Diretor do Museu e puxou-o à parte. Ao todo a conversa nem demorou cinco minutos, mas notava-se que o homem respirava de alívio. A PJ revistar assim, daquele modo, em alta voz e no meio da zona VIP do bar do jardim do museu, a sua melhor consultora fora deveras confrangedor.
O espanto ainda foi mais acentuado quando Navas lhe garantiu que desta, ainda por cima, também tinha que dizer o mesmo. Desde que ela aceitara ser consultora da PJ, tinha dias, que chegara imediatamente aos lugares cimeiros. O pior é que o folego ansioso do seu inspetor encarregue pela pasta da Felina, que, aliás, José Pereira Tucano, conhecia bem, pois era ele quem dirigia as operações ligadas à armadilha do ouro, ali, no museu, tinha feito asneira e da grossa. A rapariga sentira-se ofendida e já se despedira.
O Diretor Nacional da PJ pedia ao amigo que da parte dele abafasse a história. Toda a situação envergonhava seriamente a Polícia Judiciária. Ninguém pode tirar assim um tapete, sem motivo, a quem acabou de lhe dar a mão e o coração. Ao que parecia o seu coordenador superior tinha cedido ao stress e à responsabilidade de liderar a pasta da Felina e deixara de pensar coerentemente. Sanada a situação e tendo Navas garantido que enviaria desculpas escritas, os homens separaram-se.
O responsável pelas verbas da tesouraria e fundo de maneio da PJ, entrara na Sede mais rabugento que um certo anão na história da Branca de Neve. Fazerem-no ir à sede a um sábado, ao início da noite, era a primeira vez em trinta e cinco anos de Judiciária. Todavia, assim que soube do que se tratava mudou de opinião. Ainda bem que ali fora. Aquela história era das melhores que escutara nos últimos anos. Aquilo ia dar pano para mangas nos corredores da Polícia Judiciária e ele sabia todos os detalhes.
Quando Carlos Farelo abandonou a Sede já tudo tinha sido tratado. Levava consigo inclusivamente, em duplicado, a ordem de suspensão imediata do coordenador superior para Luís Navas assinar, bem como tudo o que fora exigido pela Doutora Íris Vasconcelos. Entrou no carro e rumou em direção ao Museu Nacional de Arte Antiga, eram oito e pouco da noite. Foi rápido a chegar ao museu e a dar ao seu chefe os papeis. Este assinou tudo, guardou no bolso as cópias assinadas, enquanto o Diretor Adjunto ia à procura da ex-consultora, a Doutora Íris Vasconcelos.
A conversa entre Íris e Vítor estava quente. Saber que o convite de consultoria tinha três anos e que Íris apenas ligara a participar ao seu chefe a existência de bandidos perto da sua casa de família, realmente desfazia uma boa parte das coincidências que ele imaginara existirem. A Felina já incomodava a Polícia Judiciária há dez anos. Se a doutora fosse mesmo cúmplice teria aceitado, na hora, o primeiro convite. Mas que chatice.
O seu instinto nunca o enganara e ele fiara-se nele, mas não se informara devidamente e partira de premissas erradas para avançar, sem medos, para a acusação de suspeitas graves. O homem começou a perceber que se podia ter metido em trabalhos. Aquela última noite de Lua Cheia ia ser longa.
― Reconheço que me faltavam alguns detalhes para formar uma opinião balizada. Mas a menina tem de reconhecer que, seguindo o meu pensamento era bem provável que a razão me assistisse… ― insistia o coordenador superior. A resposta de Íris fez-se ouvir bem alto:
― Doutora Íris Lobato de Lemos Pessanha Vasconcelos, se faz favor. O senhor coordenador superior da Polícia Judiciária, já perdeu o direito de me tratar por menina, por você, por tu ou por algo que não seja o meu nome e grau profissional quando se dirige a mim. Eu não tenho culpa de o senhor coordenador criar fantasias na sua cabeça. Eu já o tinha informado inclusivamente que a sua sensibilidade histórica era, no meu entender, muito equiparada à de um salmonete ou de um nabo e também o tinha advertido que o seu método de alface roxa, montado do seu burro de Miranda, era anacrónico e disparatado. Igualmente o avisei que o burro da Raça Asinina de Miranda não me parecia provido da melhor visão do mundo, talvez por estar em vias de extinção, ou simplesmente por ser lento e cabeçudo e ainda afirmei que não achava bem que, quando se está a investigar um caso, não estude os antecedentes que levam a ele, bem como que achava errado que se consultasse um Oráculo para desvendar uma trama, nem mesmo se as galinhas, de que também já falámos, começassem a precisar de irem ao dentista. Contudo, para já, apenas acho que usou o membro do mirandês para me sodomizar e tirar partido de uma colega fragilizada. Mas não se preocupe que eu tenho o nosso filme caseiro de baixa produção lá em casa. O senhor coordenador foi superior a tirar partido de uma mulher descompensada e eu não descansarei enquanto não o vir afastado da Polícia Judiciária. Xi! Já me alonguei bastante. Agora, vou comer, que este Martini branco secou-me a garganta. Vem ali o seu chefe, tenha uma boa conversa com ele. Passar bem, senhor coordenador superior não sei em quê.
A velocidade com que Íris se mexera, sem sair de onde estava, desde que ele lhe revistara a carteira, tinha sido deveras alucinante. Vítor, acabara de receber de um magoado Carlos Farelo, uma carta de suspensão de funções.
Depois da argumentação que ouvira de Íris sabia que não tinha escapatória.
A sua pressa em ir com sede ao pote deitara tudo a perder. Ele achara que já tinha todo o conhecimento necessário sobre aquelas duas mulheres e, afinal, não sabia coisa alguma. Aceitou a carta de suspensão e a de recomendação para a PSP que o Diretor Adjunto lhe entregara. Ainda podia chegar longe na polícia se não levantasse ondas. Vistas bem as coisas era a sua melhor opção. Íris fora implacável, mas quer ela quisesse quer não tinha sido papada e bem papada por ele.
Íris de Vasconcelos jantou meio à pressa. Às nove da noite queria estar no seu lugar. Ainda recebeu o envergonhado Diretor Adjunto que lhe deixou a porta aberta se ela quisesse voltar para a PJ. O homem entregou tudo exatamente como ela solicitara, mais a verba em dinheiro e esta garantiu-lhe que o assunto morria mesmo ali. Foi o momento de alívio de Carlos Farelo. Quanto a voltar seria difícil, acrescentara, mas o futuro ainda estava por acontecer e ela não entendia nada de adivinhação.
Carlos saíra dali aliviado. Passara pelo lugar de Luís Navas para lhe segredar que a situação fora controlada. Perto da porta de acesso ao jardim, Dona Hermenegilda, estava contente com a sua nova amiga. Ela seguira o outro quando este decidira ir vasculhar o gabinete de Íris, estava a menos de dois metros deles quando ele esvaziara a carteira da rapariga, ouvira as acusações feitas por ele para toda a gente ouvir. No final, quando ela dissera aquelas coisas todas, também em voz alta, ninguém ali ficara a pensar mal da sua menina, pelo contrário. Hermenegilda só estivera à espera que desatassem todos a bater palmas. Não acontecera, mas fora por pouco, muito pouco mesmo.
Quando acabou a Ópera, o Diretor do Museu passou por Íris para lhe dizer que entendera bem do que ela fora vítima. Podia sempre contar com ele e com o museu fosse para o que fosse preciso. A jovem agradeceu e despediu-se dele até segunda-feira.
Também Luís Navas e Carlos Farelo tinham aproveitado a saída para se despedirem mais uma vez e reiterar que a porta estava sempre aberta, bastava ela o querer. Vários colegas do museu tinham feito o mesmo. A última fora a Dona Hermenegilda com um grande abraço e um beijo na face.
Ao chegar a casa, Íris, pensou na sorte que tivera. No dia anterior o coordenador tinha-a apanhado com a barra de ouro embrulhada num cascol no seu gabinete. Por sorte, o homem calculara mal. Só lhe passara pela cabeça que ela iria agir no dia do início do festival. Não devia ter tido consciência de que antes havia um grande ensaio. Caso isso tivesse acontecido ela estaria àquela hora atrás das grades.
Ainda se riu a pensar que o coordenador tinha a ideia de que a tinha comido. O pobre nem dera conta que fora convencido a agir por vontade da gata. A haver alguém a papar alguém fora ele o papado. Sim, porque tudo o que ela fizera fora porque lhe apetecera fazer. Um burro de Miranda, daria mais facilmente conta de que tinha sido usado. Agradeceu aos céus pela sociedade machista em que vivia. Tinha saciado as suas fomes de Lua Cheia, posto a libido em ordem e o instrumento do seu prazer era agora o malandro que a sodomizara e ela transformara-se na coitadinha da vítima.
A noite de sexta-feira já era de Quarto Minguante, a Felina estava livre do sortilégio da Lua Cheia. Iniciavam-se os Ciclos da Sombra, primeiro, gradualmente, o Quarto Minguante e depois a chegada da Lua Nova, trazendo as sombras de volta à cidade, criando a penumbra suspeita, que amedrontava humanos e trazia de volta a bruma e a névoa aos picos e às serras. Agora era o tempo em que à noite todos os gatos são pardos.
Um tempo maravilhoso para a caça furtiva, de predadores escondidos nas sombras, buscando avidamente por presas incautas e imaturas que nada sabiam dos segredos e mistérios da noite e da Lua. Os Ciclos da Sombra alimentavam-se de truques e armadilhas, protegidas pela névoa, pela neblina, pelo medo. Íris adorava estes ciclos para caçar. Há dois anos que, nos meses do verão, iniciara uma nova tradição. Tudo tivera início no seu vigésimo quinto aniversário. Este já era o terceiro ano de tradição.
A sua demanda no verão era simples. Tirar traficantes de droga e vendedores de armas de circulação, mas também chulos. Tantos quantos os anos que celebrava em cada ano. Começara com vinte e cinco e este ano seriam vinte e sete, todavia, estava atrasada, nos dois anteriores Ciclos da Sombra, em 2022, não saíra para caçar. Andara demasiado ocupada com a sua vida.
Enquanto bebia um Martini branco seco, a fazer horas encomendar o jantar e depois ir assistir ao início da Operafest. com o “Baile de Máscaras” de Verdi, sentada na zona VIP do bar, ela revia as suas tarefas. Já tinha tudo em ordem no seu gabinete e depois de entregar o projeto e a cópia ao Diretor o seu trabalho acabava, por enquanto, naquele local.
Também já entregara a barra de ouro ao contacto do seu pai para ser transformada em barrinhas de cem gramas. Se ela não estava em erro e, se a senhora da limpeza tivesse deitado fora a caixa forrada de preto, já nada lhe faltava fazer, relativamente àquele roubo que não fosse esperar pela surpresa da Judite.
Quando descobrissem a moeda de cobre da Felina a brilhar por debaixo da falsa barra de ouro iriam por certo entender que “nem tudo o que luz é ouro”. Disso ela tinha a certeza absoluta. A parte cómica da história é que a descoberta só seria feita algures a vinte e três de setembro pelas seis da tarde. Dali a mais de um mês. Iriam eles passar pela vergonha do roubo para que o Banco de Portugal pudesse reclamar o seguro do assalto ou, para não envergonhar o Banco e a Polícia Judiciária, iriam manter tudo no segredo dos deuses? Era uma boa questão.
― A menina importa-se de me mostrar a sua carteira e de me levar ao seu gabinete para uma pequena vistoria, antes de começar a jantar? ― quem fazia o pedido era o seu conhecido coordenador superior da PJ… ― essa agora, pensou ela, o tipo ia revistar uma consultora que ainda, à dias, a Judite acabara de contratar? Aquilo não ficava assim.
Com um sorriso, passou-lhe a carteira para a mão. A enorme sacola apenas tinha um maço de micas vazias, ainda com o celofane da Staples, a envolver o conjunto, uma resma de papel A4 fechada que este abriu para conferir se era mesmo papel em branco, um porta moedas de senhora e uma pequena carteira de cartões como o cartão de cidadão e os cartões de crédito e débito e ainda o seu cartão de apresentação. Porém, em vez de o levar ao seu gabinete, como este pedira, ela atirou-lhe as chaves saídas do bolso e disse:
― Quanto ao meu gabinete, sabe o caminho. Não pretendo segui-lo.
Enquanto o homem, sem mostrar reação, agarrara nas chaves e seguira para o gabinete dela, Íris, pegara no telemóvel e ligara para o Diretor Adjunto. Carlos Farelo, desfazia-se em desculpas do outro lado da linha. Ir a outro local onde a jovem tinha uma consultoria de projeto e inda por cima revistá-la a ela e ao seu gabinete? Mas que grande disparate, aquilo não fazia o menor sentido. Ainda por cima no bar do Museu Nacional de Arte Antiga e à vista de toda a gente, na zona VIP… o homem desfazia-se em perdões.
Íris, apenas respondeu que como ele já tinha o contrato assinado entre ela e a PJ, por força da sétima cláusula, que referia a quebra de confiança, considerava o contrato automaticamente revogado, bastando para o mesmo encaminhar esta explicação por e-mail, o que faria em seguida, e que exigia, igualmente de acordo com o contrato, que todo o mês de agosto lhe fosse pago na integra no dia seguinte, após o que passaria a vencer juros por cada dia de atraso.
Avisava ainda que não toleraria voltar a ser incomodada pela Polícia Judiciária, a não ser por uma razão óbvia e devidamente validada por um juiz. De qualquer modo, na segunda-feira, depois de reunir com o seu advogado, se esse achasse, como ela achara, existirem sérios e suficientes motivos para avançar com uma ação contra a PJ, por terem causado graves danos à sua reputação, avançaria com uma queixa formal para tribunal. Para além disso exigia que fosse entregue ao Diretor do Museu uma explicação a ilibá-la de qualquer suspeita fosse do que fosse e sobre o que fosse, ainda este sábado próximo, sem falta.
Prevenia também que, se tudo não ficasse resolvido, já no dia seguinte, entregaria ao seu advogado as imagens do seu apartamento onde se via o coordenador superior a aproveitar-se do facto de ela estar muito fragilizada pelos factos passados, na noite em que o Diretor Adjunto o enviara a sua casa.
O homem tinha-a embebedado, feito amor com ela, sodomizando-a inclusivamente e ainda mais o que todo o filme mostraria. Jamais poderia aceitar que alguém com um cargo de responsabilidade da Polícia Judiciária se tivesse aproveitado dela daquela forma, que era o que a recente atitude do coordenador superior da PJ demonstrava claramente ter acontecido.
Do outro lado da linha Carlos Farelo, que começara a receber a chamada de pé, acabara de se sentar absolutamente abalado. O Vítor fora ao cu à nova colaboradora da PJ e ainda por cima deixara-se filmar a fazê-lo quando desconfiava dela fosse lá pelo que fosse? Tinha um louco como braço direito, só podia… ouviu o telefone a desligar-se. Nem ia ligar de volta. Tinha que falar com o Diretor Nacional. O seu superior e amigo só atendeu à segunda tentativa. Ia a caminho do Museu Nacional de Arte Antiga, com a família, para assistirem ao “Baile de Máscaras” de Verdi.
Luís Navas ouviu em silêncio o seu Adjunto. Quando este terminou o relato indagou se o coordenador superior o tinha avisado de ter alguma desconfiança relativamente à Doutora Íris Vasconcelos. O outro disse que não, fora completamente apanhado de surpresa. Quis ainda saber se o Adjunto soubera que naquela noite o homem se tinha envolvido com a consultora. Não, não! Respondera ele novamente.
Mais uma vez reafirmava que Vítor nada lhe tinha dito. A Doutora Íris, ele vira-a bem, estava arrasada física e psicologicamente, com a sua aventura. Notava-se perfeitamente, mas nunca pensara que aquele ar arrasado também era devido ao aproveitamento de um colega de trabalho, que para todos os efeitos era o que Vítor já era quando fizera o que fizera. O que teria passado pela cabeça do tipo.
Pelo que conseguira entender a consultora pensara tratar-se de uma paixão genuína de Vítor e nada dissera sobre o assunto. Todavia, depois da atitude do sujeito esta noite para com ela, nem a mais cândida mulher do mundo acreditaria que tudo o que se passara não fora apenas um logro e um aproveitamento do seu estado de imensa fragilidade.
Navas, achava que tinham que estancar o escândalo antes de este poder rebentar. Ele mesmo ia dar ordens para que pagassem à jovem e enviaria por escrito um esclarecimento ao Diretor do Museu, ilibando totalmente a consultora de qualquer dúvida ou suspeita. De igual modo o descansaria relativamente ao assunto já nessa noite pois ia estar com ele pessoalmente nos lugares VIP do espetáculo. Agora o coordenador superior teria de ser dispensado ou convidado a pedir transferência para outra polícia.
Era uma pena, dizia o Adjunto, repetido que sempre o achara muito promissor. Navas, ainda não tinha terminado, pedia ao Adjunto que enviasse uma mensagem à moça a saber relativamente ao abuso físico, psíquico e sexual quanto é que esta pretendia receber pelos danos. Era preciso avisar, sublinhava, que dentro de uma verba razoável, eles aceitavam pagar e até retirar o coordenador para uma carreira exterior à PJ. Também convinha que na mensagem ficasse explicito que achavam justas e adequadas todas as solicitações enviadas e que iram ser atendidas conforme o que fora solicitado por ela. Tudo isso tinha que ficar já claro.
Mais uma vez, Carlos Farelo, garantiu ir imediatamente tratar do assunto. Nem cinco minutos depois, Íris, lia o texto e sorria. Respondeu apenas: dez mil euros. Nada mais. Segunda-feira verificaria se tudo fora cumprido. Agira no momento exato. Atuar posteriormente podia-os levar a pensar outras coisas e a desconfiar dela. Aliás, qualquer atitude que tivesse sem ser a que tivera, só a prejudicaria, fizesse ela o que fizesse depois.
Assim, desta forma, ela evitava demasiada proximidade da PJ, continuaria o seu contrato de consultora com o museu e, melhor do que outra coisa qualquer, afastaria de si qualquer suspeita relativamente a poder ser, mesmo que hipoteticamente, a Felina. Vítor era bom, muito bom, mas ela era mais precavida do que ele. Ele até atacara uma colega de trabalho numa altura em que esta não estava em condições de contra-atacar.
Agora só lhe faltava descobrir qual tinha sido a suspeita dele. Onde é que ela tinha errado para quase, quase, ter sido apanhada em flagrante. Ia esperar que o homem regressasse do seu gabinete.
― O seu espaço está limpo. Demasiado limpo até. A menina pode-me explicar porquê? Hum… ― indagou Vítor, voltando a sentar-se a seu lado. ― Tem de haver uma razão muito evidente para, logo hoje, no início do festival ter tudo limpo. Nem um papel de rascunho do balde do lixo.
― Claro que há. Todavia, não sei mesmo se me apetece responder-lhe. Ainda nem imagino de que sou suspeita. Contudo, se me disser eu dou-lhe todos os porquês… ― retorquiu a jovem.
― A menina é suspeita de ser cúmplice da Felina. Primeiro ainda pensei que fosse a gata. Anda perto da Polícia Judiciária, mexe-se em todos os meios sociais. Pode prevenir a gata de algumas ações. Eu fui mandando umas achas a ver se a apanhava, porém, a menina escapou-se bem. Apesar de eu achar que é cúmplice, também já sei que não é a pantera. Eu já vi o bicho e as duas têm corpos diferentes. O seu, conforme sabe, conheço bem e o da sua amiga é visivelmente mais esguio e bem mais alto. Eu vi até que as sapatilhas dela eram de sola fina e a menina tem quase menos uma mão travessa de altura do que ela. Por isso conclui, e não diga que me engano, que só pode ser cúmplice… ― respondeu Vítor, mostrando-se muito confiante.
― Todavia, não me apontou uma prova da cumplicidade… ― avançou Íris, mantendo o desafio.
― Verdade, ou aliás, corrigindo, ainda não apontei, mas vou apontar. É apenas uma questão de tempo. ― Vítor, estava muito confiante nas suas conclusões. ― A menina trabalha inserida no meio onde a Felina atua, tem informação privilegiada do interior da PJ, foi a primeira pessoa a ver a pantera, forneceu a base para que a Polícia Judiciária a pudesse apanhar, embora apenas lhe interessasse que a PJ descobrisse os outros ladrões. Posso ainda não ter provas, mas isto que acabei de dizer são coincidências, aliás, melhor dizendo, são demasiadas coincidências e eu não acredito em coincidências. Por isso a menina está pior que gato escondido com rabo de fora.
― Tanta conversa só para dizer que me acha cúmplice porque não acredita em coincidências? O Vítor deixa-me triste. O meu gabinete está limpo e vazio porque eu terminei o meu trabalho aqui. Segunda-feira entrego o projeto que viu nas duas gavetas e deixo de ter gabinete no museu, até que uma próxima consultoria o exija. Quanto às outras coincidências está enganado, elas não existem. Eu apenas avisei a PJ de que existia um bando junto à antiga casa do meu pai, que agora é minha. Entendeu? ― Íris, viu nos olhos do homem que ele não sabia disso. ― A partir desse momento tudo o que fiz foi para ajudar o Diretor Adjunto. Devia ter-se informado. Agora irá sofrer as consequências.
Ora, Íris, tinha muito respeito pelas diferentes polícias do seu país. A ser apanhada, algum dia, teria de ser em Portugal. Isso era ponto assente. Riu-se de si mesma. Ela não ia ser presa por ninguém. Estava com pensamentos tolos. Essa agora. Tinha era que terminar aquele golpe. Olhou para as horas e achou que já era tempo de voltar ao trabalho.
Precisava de ir espreitar como é que estavam as coisas para os lados da Polícia Judiciária. Sentada ao computador voltou a entrar na base de dados dos seus perseguidores. No que dizia respeito a ela estava tudo na mesma. Todavia, notava-se um elevado aumento de crimes ligados às dificuldades económicas de muita gente. Os setores mais atingidos eram a classe baixa e uma boa franja das classes médias. Achou que havia gente demais com dificuldades no dia-a-dia, ia ter que tentar dar uma ajuda, fazer algo mais relevante. Nos próximos dias veria como poderia agir.
Íris, acordou com o Sol a entrar-lhe pela janela. Na noite anterior não baixara as persianas como habitualmente. Porém, fora propositado. Acabara por, graças ao vinho tinto, deitar-se mais cedo e com isso ao fim de oito horas estava mais do que desperta. Tão acordada estava que se pôs a pé quase dez minutos antes do despertador tocar.
Eram sete e meia da manhã já ela se encontrava à porta de casa da Dona Hermenegilda, à espera que esta regressasse do museu. Quando a viu chegar achou-a cansada. A mulher, se tinha quarenta anos era muito, mas hoje parecia ter perto de cinquenta. Vinha extremamente cansada. Contudo, acumular dois turnos tinham esse tipo de consequências. Tirou a sua sacola grande, ainda sem os dois livros do museu no interior, e juntou-se à outra à porta do prédio. Entraram ambas, com a outra na dianteira. Já na salinha de visitas a cansada senhora afirmava que o conhecimento era pesado. Dez quilogramas garantia-lhe a doutora, talvez um pouco mais, com o peso do próprio carrinho de compras.
Enquanto a dona da casa foi fazer um café para ambas, Íris, abriu os fechos laterais do carrinho, retirou a barra embrulhada no cascol, passou-a para a sua sacola e tirou a caixa preta do carrinho. Antes do jantar, garantiu que voltaria ali com os livros, depois de fotocopiar o que precisava.
A simpática empregada de limpeza, que não assistira à retirada da barra de ouro e do cascol do carrinho, dizia-lhe que não custara nada. O segurança nem se lembrara de espreitar para o carrinho. Muito menos o da noite se lembraria disso, quando ela voltasse para o primeiro de dois turnos, entre as cinco da tarde e o segundo até às sete da manhã, quando terminaria. Com o festival a decorrer as preocupações deles eram outras. O que a incomodara, na noite passada, fora, isso sim, a quantidade de polícias e inspetores da Judite que tinham andado a vasculhar o museu e o jardim. Por sorte, a ela, ninguém incomodara.
A jovem fez cara de quem estranhava a segurança extra. Indagou até se a outra soubera o porquê. A senhora da limpeza disse logo que tinha questionado um dos seus amigos da segurança. O homem dissera-lhe que a Judite estava desconfiada que a Felina pudesse aparecer. Um verdadeiro disparate defendia ela, toda a gente sabia que a sua gata só roubava ouro e dinheiro roubado.
― Sua gata, Dona Hermenegilda? Não estou a entender… porquê sua? Hum…― a mulher corou, depois com um encolher de ombros lá explicou.
― É que a Felina já me ajudou duas vezes, a última no dia ontem. Deixou-me mais uns milhares de euros na caixa do correio. Não entendo como é que ela sabe sempre que eu me sinto aflita… ― vendo um certo ar de dúvida no rosto da doutora, a outra levantou-se e voltou com a mão fechada e um sorriso que a fazia quinze anos mais nova.
― O que tem nessa mão, minha amiga? Pelo sorriso do seu rosto parece que trás o Sol guardado nesse punho cerrado, mostre lá, é para eu ver, não é? Hum... ― interrogou, com ar de intrigada, Íris.
― É, sim! É… ― começou a dizer a simpática mulher orgulhosamente, abrindo a mão e mostrando a moeda da Felina. ― É a prova de que, quando digo minha gata, eu estou a falar da minha amiga Felina. Ela olha por mim e muito atentamente. A polícia pode virar a minha casa do avesso, que nunca descobrirá onde a tenho guardada.
― Uau! Nunca pensei que isso fosse verdade. Achava que isso de a Felina ajudar por aí era um mito urbano… ― retorquiu, divertida, Íris.
― Nada disso. É a mais pura das verdades. Olhe, só eu, que não passo de uma pobre de uma mulher a dias, já conheço mais sete pessoas que foram ajudadas por ela. Todos casos sem solução e a todos eles ela deu a mão. Estamos a criar uma rede daqueles que foram bafejados pela Pantera Negra. O senhor Januário, que é o dono da livraria aqui da zona, diz que já contactou com mais de quinhentas pessoas. Todas elas ajudadas pela gata mais linda do mundo… ― a mulher não se calava, de tanto entusiasmo. ― Ele estava a criar a Irmandade da Pantera Salvadora. Um dia, quando ela precisar de nós, estaremos prontos para a ajudar. Pode escrever o que eu lhe digo.
Uma lágrima de agradecimento e ternura correu pela face da jovem. As palavras da outra tinham-na emocionado. Levou a mão ao bolso da camisa, retirou-a fechada do tecido e estendeu-a, enquanto a abria, em direção à outra. Na sua palma estava uma das moedas de cobre da pantera. Apenas teve tempo de dizer:
― Até eu, Hermenegilda, nem sempre fui doutora. Aos dezassete anos fiquei só e sem família. Sem a Felina, não era ninguém.
Ainda nem acabara de falar já a amiga se lançara sobre ela, num pranto estranho de dor e alegria. A Doutora também? A mulher soluçava enquanto lhe contava que sem a gata seria uma mãe sem filho. Mais uns soluços e a mulher indagava se podia dar o nome e a morada dela para a I.P.S.. Claro que podia respondia a gata.
― Eu bem que tinha um instinto de que a devia ajudar. Não me enganei nem um pouquinho. Ó meu Deus! Estou tão feliz, mas tão feliz. A menina nem imagina… ― repetia a senhora da limpeza com um brilho intenso no olhar.
― Tem aqui o meu cartão. Também conheço muita gente que já foi ajudada pela pantera. Diga ao senhor Januário que eu depois lhe entregarei, através de si, uma lista com o tamanho da dele. Pode é já haver gente repetida. Acho boa ideia essa Irmandade. Mas ele terá de pedir autorização a todos antes de os incluir na lista. Não sei, mas pode haver quem não queira aderir… ― explicava, ainda emocionada, Íris.
― Claro, claro, menina Íris. Eu explicarei tudo direitinho. Ó meu Deus! Estou tão contente… ― subitamente parou de falar, um pouco constrangida. ― Desculpe, Doutora Íris, tê-la chamado por menina, não foi por mal.
― Pode tratar-me sempre por menina que eu gosto. Esqueça lá o Doutora. Menina, faz-me esquecer que estou a três anos de fazer trinta, Ah e peço-lhe desculpa por ter chamado à Felina de mito urbano, tenho sempre receio de falar demais… ― disse, sorrindo, Íris.
A jovem deixou-se ficar ali na conversa mais um pouco. A outra dizia-lhe que ela fizera bem em disfarçar, nem sempre sabemos se podemos confiar em quem anda por aí. Por fim, a rapariga, saiu dizendo que ia tratar dos livros, o mais depressa possível, para ela os colocar na sua secretária, para que não dessem pela falta deles. Com os dois turnos de Hermenegilda era arriscado deixá-los na rua até sábado à tarde. Com as cópias Íris já conseguia trabalhar. Esta concordou, realmente com os turnos assim, era melhor se a amiga trabalhasse a partir das cópias e ela pusesse os livros no sítio.
Eram quatro e meia quando Íris tocou novamente à campainha de Hermenegilda. Entrou com os livros assim que esta abriu. Meteu-os na caixa e pediu à outra para quando tirasse os livros da mesma e os colocasse na sua secretária, desfizesse a embalagem e a deitasse fora, mas misturada com o resto do lixo dos outros escritórios e gabinetes. Esta disse-lhe que ficasse descansada.
Quando Íris entrou no seu gabinete às sete da tarde, viu, onde esperava ver, os livros. Tirou-lhes as chapas de aço que serviam de pesados marcadores e colocou nas gavetas da sua secretária os dois volumes do projeto já copiado na papelaria “Entre As” em Campo de Ourique. Ainda deixara uma terceira cópia do relatório em sua casa, pois também queria guardar o trabalho, de que fora autora, consigo. Quanto aos livros, já sem os pesados marcadores, foi entregá-los na biblioteca. Acabou oferecendo os marcadores especiais à bibliotecária do museu que lhe gabou imenso aquela sua invenção para evitar dobras nos livros em consulta, que exigissem mais cuidado.
Como tinha marcado mesa no restaurante do museu, decidiu ir jantar.
Felizmente, o dedo indicador desligara o laser, ainda a tempo e o facto de ser ambidestra mesmo, ajudara-a a segurar todo aquele equilíbrio instável. Esperou, quase em pânico, a passagem do minuto, com os braços esticados ao longo do corpo. Ainda lhe deu mais uns segundos até se sentir a respirar mais normalmente.
Recomeçou a tarefa. Colocou do lado direito da sua anca a máquina de agrafos. Depois esticou o veludo castanho sobre a barriga e meteu-lhe a tábua da mesma cor por cima, depois foi a vez da almofada preta, da moeda da Felina, bem no centro da mesma e terminou com a barra falsa. Com ambas as mãos e toda a paciência do universo, conseguiu que a almofada voltasse a ocupar o seu lugar na vitrine.
Com meio quilograma de peso, espalhado pela almofada, ainda antes de por a tábua e os agrafos, reparou que esta já não caia pelo buraco efetuado antes. Aproveitou para sair, novamente de lado, debaixo da vitrine e verificar se a almofada e a falsa barra estavam bem colocadas. Pode constatar que a barra estava exatamente no sítio, porém, a almofada preta estava mais encostada ao lado esquerdo do que ao direito. Deu graças ao facto de ter conseguido detetar aquilo atempadamente.
Com muita cautela acertou a almofada preta no lugar certo. Incrivelmente, a cova na almofada, feita por dias e dias do peso de vinte quilogramas em cima, mantinha-se como se a nova barra de peso pluma tivesse a mesma pressão. Quando ficou totalmente certa de que tudo estava bem, regressou, mais uma vez entrando de lado, para debaixo da mesa com o pano de veludo castanho, por baixo do círculo de madeira, sobrando quase um centímetro de veludo a toda a volta da madeira.
Colocou o primeiro agrafo a apanhar a madeira da mesa com um dos lados do agrafo e o círculo cortado do outro. Ambos os pernes do agrafo agarravam o tecido de veludo castanho da cor da faia. Mesmo assim, o barulho que o agrafo fizera a sair da pistola e a cravar-se na madeira iam-na fazendo ter um verdadeiro ataque cardíaco. Onze agrafos depois do primeiro e onze acrescidos sustos depois, o círculo estava perfeitamente preso na mesa como se nunca dali tivesse saído.
Voltou a sair de lado debaixo da mesa. Embrulhou a barra de ouro de dez quilogramas no cascol preto e meteu-a no fundo da sacola, depois o laser e a bateria, o agrafador e o saquinho com o prego e a guita. Já sem necessidade de estar de joelhos levantou-se, colocou a sacola ao ombro e preparou-se para sair da sala.
Devia ter demorado mais de uma hora. Para seu espanto o cronógrafo marcava apenas treze minutos. Respirou de alívio. Estava muito adiantada face ao previsto. Antes de abandonar o espaço verificou a vitrine. A imagem era exatamente igual à que vira quando entrara. Até a cova da almofada, incrivelmente, se mantinha como antes. Um pouco mais relaxada fez o caminho de volta.
Assim que entrou no seu minúsculo gabinete vestiu a camisa branca e colocou o cinto. Depois mudou a barra de ouro, forrada com o cascol preto, para dentro da caixa preta, que já se encontrava no fundo do carrinho de duas rodas, da Dona Hermenegilda. Voltou a correr os fechos laterais do carrinho para cima e colocou-o no local onde esta o tinha colocado de manhã. Desligou as câmaras precisamente às sete da tarde.
Entretanto, retirara a caixa plástica de arrumos e voltara a meter lá dentro o saquinho com a guita e o prego, o laser e a bateria do pai e a pistola de agrafos. As luvas e a máscara, guardara-as nos compartimentos habituais, do fato da gata, onde sempre estavam quando não eram precisas. Meteu as capas, com os estudos prévios do projeto, os apontamentos, os livros e as fotografias e os mapas que usara para fazer o trabalho, a cobrir a parte de cima da caixa. Na gaveta onde tinha tido a barra de ouro falsa, guardou o rascunho impresso da obra final. O cartão SD com que iria mandar imprimir, encapar e encadernar o projeto foi para o bolso da camisa.
Foi a vez de juntar na caixa um cartão SD com todos os seus trabalhos que constavam no computador do museu e de deixar o disco do computador limpo do programa de gravação que substituíra as câmaras e de todos os seus escritos e imagens, deixando-o pronto para um próximo utilizador. Ia, toda lampeira apagar os programas que instalara quando se lembrou que ainda lhe faltava algo muito importante.
Tirou o seu telemóvel do bolso da camisa e ligou-o pela última vez ao computador do museu. Fez correr o programa de limpeza dos ficheiros apagados de forma a que estes desaparecessem de vez da máquina. Depois, mais satisfeita desinstalou todos os programas que ali instalara. Voltou a limpar o disco e todas as ligações ou registos de acesso ao seu telemóvel. Finalmente deu-se por satisfeita. Saiu do gabinete e foi até à saída do Museu pela Rua das Janelas Verdes.
Ficou contente por aí encontrar o mesmo segurança que lhe carregara a caixa plástica de arrumos. Pediu-lhe ajuda para voltar a colocar a caixa no carro. O homem disse que teria de enviar um colega, pois ele, embora já não houvesse público, não podia sair dali. Chamou um colega e foi este que a acompanhou até ao gabinete. A caixa estava em cima da secretária com a tampa aberta. O homem ia para fechar a tampa e ela disse que não o fizesse, o colega da porta ainda podia querer revistar a caixa.
Chegados à saída, Íris passou a tampa da caixa que levara na mão para o segurança. Ele podia fechá-la depois de revistar a caixa,. O homem exclamara apenas um francamente doutora, alegando que já a transportara, e fechando a tampa pediu ao colega que a levasse até ao carro da mesma. Assim que o outro fechou a bagageira do carro, Íris, sentiu um peso a sair-lhe de cima. Voltou ao seu gabinete, depois de agradecer a ajuda aos dois homens, e agarrou na cópia rascunho do dossier do projeto e com ele debaixo do braço dirigiu-se ao jardim.
Rapidamente descobriu o Diretor do Museu. Entregou-lhe o dossier, explicou-lhe que só faltava imprimir o livro original e que segunda-feira ele já poderia, se assim o entendesse, enviar o projeto para Bruxelas. Estava tudo pronto, uma semana antes do prazo que lhe tinha sido proposto. O homem desfolhou algumas partes da obra, muito satisfeito e agradeceu imenso. Se o projeto fosse aprovado eles ainda teriam muitas futuras colaborações. Aquilo era muito importante para o Museu Nacional de Arte Antiga.
Depois de passar a pasta a alguém que a foi colocar no seu gabinete, combinou encontrar-se com ela na segunda-feira pelas dez da manhã para receber dois originais. Um para o museu e outro para Bruxelas.
A rapariga preparava-se para se ir embora e José Pereira Tucano, perguntou se ela não queria ouvir um pouco dos ensaios da Ópera do dia seguinte. A jovem declinou a oferta. Ela comprara bilhete para assistir ao espetáculo, não queria estragar a surpresa que iria ter. Despediu-se do diretor, saiu do museu, entrou no carro e pouco depois estava em casa, sentada no sofá a beber um bom vinho tinto.
Íris, ligou a televisão, adorava estar a ouvir notícias sem realmente as escutar, enquanto fazia os seus planos de cabeça e beberricava um vinho tinto de qualidade. De repente uma notícia fê-la sair daquele limbo. Voltou com esta ao princípio. O Banco de Portugal anunciava que ia trocar notas de cinquenta, cem e duzentos euros da primeira série, datadas de 2002 pelas da série Europa, que foram entrando em vigor a partir de quatro de abril de 2017 até vinte e oito de maio de 2019.
As notas serão entregues ao BCE, ou seja, ao Banco Central Europeu, que procederá à substituição e reenvio de outras de igual valor da série Europa. Quando a previsões sobre estas substituições o que o Banco de Portugal podia garantir é que tudo estaria transferido e substituído em janeiro de 2023. O banco ainda esclarecia que as pessoas não tinham que se preocupar com nada, uma vez que a primeira série de euros continuaria válida.
A jovem sorriu. Acabara de arranjar um novo passatempo. Teria de deitar as mãos ao papel depois deste passar para a responsabilidade da Alemanha. Segundo a restante notícia o BCE recolheria igualmente em Espanha euros nas mesmas condições. A partir da entrega em Madrid, quer o dinheiro espanhol ou o português ficariam sob a alçada do BCE que, seguidamente, o faria chegar a Frankfurt.
Não! Aquilo não era uma boa ideia. Iria ter de agir fora de Portugal. Ela não tinha problema com isso se não fosse um pequeno senão, achava horrível poder ser presa fora do seu país. Já tinha dado golpes no Brasil, em Itália, Malta, Marrocos, França e Espanha. Não tinham sido muitos, isso era certo, todavia, sentira sempre o mesmo desconforto. Se num desses países, alguém a conseguisse engaiolar seria mau para a polícia em Portugal. Era como se as nossas forças da ordem não estivessem à altura da tarefa.
Íris, com muita paciência, explicava, na esplanada do jardim, a Vítor, a razão do projeto comunitário que estava a construir e a que se ia candidatar.
― ECRAA, Estudo, Conservação e Restauro de Arte Antiga. É, meu amigo, embora pareça algo genérico e sem muito sumo, o maior projeto em que já me envolvi. A minha ideia, ao contrário de projetos e planos anteriores do género, não se esgota na arte relativa à pintura e escultura, principalmente a religiosa, de séculos passados e a sua preservação, compreensão e reabilitação, mas abrange muito mais áreas, como da arquitetura, ao teatro, à escrita e à recuperação de alguns habitats vividos numa certa altura, em certos locais relevantes, de forma a podermos ter uma ideia da sua importância à época.
― E não te aborrece… ― indagava Vítor. ― Estares a revolver um passado que por definição é bafiento e ultrapassado? Sinceramente… não vejo nem o interesse, nem a emoção.
― Estás enganado, com a junção da arqueologia e da recuperação cabal de habitats específicos à arte antiga, a visão geral e o entendimento de uma época ganha um completo e renovado fôlego. Faz renascer o entendimento da arte vista da perspetiva da sua própria época, como igualmente a enquadra de forma a melhor ser analisada e compreendida aos nossos olhos... ― expunha, já um pouco irritada, Íris. ― No caso concreto, trata-se de um projeto de duzentos e cinquenta milhões de euros, para a cultura nacional. Se for aceite é o maior e mais valioso projeto nacional alguma vez apresentado em Bruxelas, na área da cultura.
― Repito, e desculpa lá se isso te irrita… ― dizia, Vítor, notando o crescente nervoso miudinho na jovem. ― Mas, por mais que te expliques, eu acho que um valor desses era melhor aplicado em habitação social.
― Pelo contrário, meu caro coordenador superior. Eu apenas fico constrangida… ― retorquia, séria, Íris. ― Ao fim e ao cabo, nunca é bonito descobrir, assim, de repente, que existe gente, supostamente culta e com educação superior, com a sensibilidade histórica de um salmonete ou de um nabo. Quando eu tenho consideração por alguém, fico quase em choque se descubro que essa pessoa, aparentemente, tem a mesma visão do mundo que uma alface roxa ou de um burro da Raça Asinina de Miranda.
― A menina está a tentar insultar-me, talvez por eu ter uma opinião prática da realidade e do mundo… ― declarava o coordenador. ― Mas, independentemente do seu raciocínio, até a Íris reconhecerá, que o passado já passou, é história, boa ou má, pouco importa… e que o presente tem, na sociedade, uma relevância e prioridade absolutas.
― Isso evidentemente. Eu sei que o burro de Miranda está em extinção, que é lento, dócil, cabeçudo e trabalhador, e, ao contrário do que o Vítor possa pensar, eu sou a favor da sua preservação... ― informava a jovem. ― Mas que ele não fica mais inteligente por isso, não fica.
― Até essa forma de me atacar, Íris, é a prova de que no fundo me dá razão. Pode, talvez por ser a sua área de estudo e trabalho, não me querer dá-la... ― reforçou, divertido, Vítor. ― Todavia, é notório que entende que o mundo era bem melhor se se preocupasse mais com o presente do que com o passado.
― O que me espanta é que um quadro superior da Polícia Judiciária possa achar que o mundo e a humanidade podem evoluir sem o estudo profundo da sua história, dos seus progressos e até dos seus erros... ― avançava a rapariga. ― Diga-me, Vítor, quando está a investigar um caso não estuda os antecedentes que levaram a ele? Como se prepara para o resolver? Vai a um Oráculo? Bem, se assim for, a sua fascinante Felina pode estar descansada na sua atividade de larápia. O meu amigo irá, por certo, apanhá-la, no dia em que as galinhas começarem a precisar de irem ao dentista.
― A Íris está enganada. Eu monto-lhe uma armadilha, ponho quarenta e dois homens à espera que ela caia na ratoeira… ― explicava o homem da Judite. ― Depois prendo-a. Deito fora a chave e esqueço-me que ela sequer existiu. Ou acha que uma fulana que vive de roubar, vai bater quarenta polícias da PSP e mais dois vigias da Judite, todos à paisana, que não fazem mais nada para além de esperar que ela vá com a sede ao pote, não vão conseguir deitar a mão a uma mera ladra que imita personagens de ficção das histórias aos quadradinhos? Impossível minha cara amiga. Completa e absolutamente impossível. Como vê, o passado dela não é necessário. Apenas importa a sua ganância e nada mais.
― Certo, certo. Admito que quarenta e dois para uma é um número desproporcional. Se fosse eu acho que nem dois aguentava. Mas montar armadilhas sem ter a personalidade da pessoa em causa estudada, parece-me um grande desperdício de recursos. Nem me vou adiantar mais da defesa da minha dama… ― explicava Íris. ― Se o meu salmonete, com o seu método de alface roxa, montado do seu burro de Miranda, apanhar a meliante, eu garanto que dar-lhe-ei toda a razão e não voltarei a compará-lo ao tubérculo denominado nabo.
― Então vamos esperar... ― dizia sorridente a alface roxa.
Íris, pediu desculpa, mas tinha que voltar ao trabalho. Na segunda-feira iria ter que entregar o seu projeto. No entanto, garantia ao seu mirandês, que se ia tornar uma atenta observadora do caso da armadilha diabólica de um tubérculo e mais quarenta e dois rabanetes, contra uma pantera negra. O seu amigo riu-se da gracinha sem se mostrar zangado. Por fim, despediram-se, levando o homem um certo ar de triunfo com ele.
Ate quase às seis da tarde a jovem dedicou-se a fundo a completar o dossier de candidatura. O trabalho ajudava-a a estar distraída e a não ansiar pelo que iria fazer depois das seis e meia da tarde. Terminou o projeto eram cinco e vinte. Ficou espantada ao verificar que conseguira encher mais de quinhentas páginas de argumentos e explicações. No geral, o trabalho parecia-lhe coerente. No sábado iria ao seu amigo Adriano, dono da papelaria “Entre As”, em Campo de Ourique, mandar imprimir e encadernar aquela apresentação, onde incluíra, numa bolsa, de plástico um cardão SD com um pequeno filme esclarecedor e diversos PowerPoint ilustrativos da importância da concretização de um projeto daquela dimensão.
Eram precisamente dezoito e trinta quando colocou a passagem da gravação das imagens da quinta-feira anterior, em vez das correntes. Fora tão certinha na mudança que nem se dava por qualquer salto na gravação. Chegara, finalmente, o momento da ação. Depois de colocar a falsa barra na sacola e voltar a fechar a gaveta de onde a tirara, levantou-se e saiu, de sacola ao ombro e sem a camisa branca e o cinto, com a máscara e as luvas da gata já colocadas, do seu pequeno gabinete.
O cronógrafo do seu Rolex Daytona Zénite de 1995, herdado de seu pai, marcaria o tempo na próxima hora e meia. Ela ouvira instantes antes, o Diretor do Museu Nacional, fechar a porta da sua sala. O que indicava que, José Pereira Tucano, já se encontrava no jardim. Se o homem tivesse abandonado o seu espaço dois minutos mais tarde a gravação das câmaras já não teria apanhado a sua saída o que seria um desastre.
Conforme calculara até os seguranças das salas, uma vez que o museu em si, fechara ao público às dezoito horas, tinham ido dar uma espreitadela ao início dos ensaios da Ópera do dia seguinte.
A Felina não se podia enganar no caminho. Só um trajeto estava ocultou das câmaras, pelo seu filme. Um passo fora disso e ela seria automaticamente detetada. Levou poucos minutos até chegar à sala onde estava a barra de ouro, todavia, talvez pela adrenalina, parecera-lhe que demorara, no mínimo, quatro vezes mais.
Por fim colocou tudo no chão da sala, ordenado pela ordem de utilização. Ficara para último a sacola agora vazia. Ligou a bateria à pistola de laser. Seguidamente do saquinho retirou o prego, tipo pionés, e a guita. Com o clipe que preparara para ligar a guita à pistola ligou as duas coisas. Meteu-se, primeiro de lado, para conseguir entrar, sem tocar nas pernas da mesa, e depois de barriga para cima por baixo do tampo onde estava a vitrine da barra de ouro e, finalmente, respirou fundo.
Se alguém, por mero acaso que fosse, passasse por ali, tudo estaria perdido. O seu coração parecia marcar mais aceleradamente o ritmo do tempo e do silêncio. Prendeu o prego ao centro da mesa sem muita dificuldade. A mesa antiga, parecia-lhe menos resistente do que a tábua de faia em que fizera o teste. Com a pistola a funcionar fez o corte, em círculo na madeira. Quase que deitou tudo a perder. A redondela de faia, a almofada preta e a barra de ouro quase que tombaram, ao mesmo tempo, em cima do seu pescoço. Conseguira aparar a queda num último instante.
De um lado segurara a madeira com dois dedos e o laser já desligado, do outro, a mão livre mantinha o equilíbrio e suportava a maior parte do peso. A Felina suava por debaixo da máscara e das luvas. Com um cuidado extremo e muito lentamente, conseguiu finalmente retirar e poisar a barra de ouro, por cima do cascol preto, já fora da área da mesinha. Baixou os braços, arrancou o prego enquanto fazia o movimento e poisava a pistola, o prego e a guita ao lado da barra de ouro.
Enganara-se no procedimento, precisava de um minuto para se acalmar. Tantas vezes se fazia passar por canhota, sendo ambidestra, que deixara quase toda a força, para segurar a barra de ouro no ar, no seu braço esquerdo e na respetiva mão e isso ia-lhe sendo fatal. Faltou muito pouco para tudo lhe cair, com estrondo, no chão, ainda com o laser ligado, podendo ter-se ferido.