Carta à Berta n.º 585: Crises! Que Crises?
Olá Berta,
Pelo que me contas a vaga de calor também invadiu o sul do país. Porém, aí pelo Algarve, junto à praia, é um pouco mais fácil de suportar a chegada do inferno. Esta nova aberração climática já colocou três mil bombeiros a combater incêndios, um pouco por todo o país, e fez disparar os óbitos por entre as pessoas de idade mais avançada.
Faz hoje catorze anos que cheguei a Lisboa, tendo passado a residir novamente na minha terra Natal. Como sabes, minha querida amiga, eu sou um homem do campo. Farto-me de repetir isso. Afinal, nasci em Campo Grande e resido em Campo de Ourique. Pode ser que os meus sessenta anos me tenham feito esquecer outras alturas, como esta, de grande calor. Mas, sinceramente, eu não me lembro de uma vaga assim.
Há quem diga, querida Berta, que esta é apenas mais um efeito das alterações climáticas. Pode ser que assim seja, contudo, em ano em que o país já atravessa as consequências de uma seca extrema, tudo se complica. O fogo parece não dar tréguas aos bombeiros e a falta de água torna ainda tudo bem mais complicado.
As crises, essas famigeradas ameaças à estabilidade deste povo que reside num paraíso à beira-mar plantado, não se sucedem umas às outras, agora a coisa pia mais fino, pois que, em vez disso, as crises acumulam-se umas por cima das outras, fazendo aumentar a pressão sobre uma população cada vez mais fragilizada desde 2008.
Primeiro veio a crise provocada com a falência do banco Lehman Brothers que, num efeito dominó, fez colapsar a banca mundial um pouco por todo o lado, atingindo Portugal por entre as vagas da desgraça. A possibilidade da banca rota faz cair, minha amiga, o Governo liderado por Sócrates, devido à anunciada eminência de banca rota nacional, numa altura em que o Primeiro-Ministro tentava minar a liberdade de imprensa em Portugal, não só acabou com o Governo vigente, como, fruto das eleições, fez com que Passos Coelho tomasse as rédeas do país.
A estas quatro ocorrências ou crises, somámos a chegada da Troika e a ajuda económica da União Europeia, passámos, subitamente, da dificuldade para a austeridade, com Passos a esmifrar o povo até ao último cêntimo. No topo desta quinta crise, a cereja veio da forma da Lei Cristas, a nova Lei das Rendas que desalojou milhares de pessoas dos seus lares, onde viviam há anos e em muitos casos há décadas. Esta senhora nunca irá a tribunal responder pela vaga de suicídios, de gente desesperada, que causou em Portugal. É pena, devia mesmo haver uma forma de lhe imputar a responsabilidade pelo acontecido.
A geringonça de António Costa, cara Berta, deu ao país a possibilidade de não se somarem mais crises às seis, que já invadiam a maioria dos lares do país.
Durante uns anos, poucos, como te recordarás, amiga Berta, o país pareceu serenar e iniciar o caminho árduo da recuperação, embora sem terem desaparecido as crises aparentavam estar a perder força. Eis se não quanto, a chegada de 2020, se fez anunciar pela forma de um vírus, que, em dois anos, infetaria mais de 50% da população portuguesa e mataria para lá de 24.300 pessoas no país, na sua grande maioria idosos indefesos e já com outras patologias próprias da idade.
A sétima crise trouxe rapidamente ao país o agravar das outras seis que ainda não tinham sido debeladas. Pior do que isso gerou novas, fez com que o débil Serviço Nacional de Saúde português entrasse, também ele, numa crise anunciada que chegava em força, por fim. Para mal da Lusitânia, a geringonça, também ela, terminava e a queda do Governo obrigou Portugal a viver de duodécimos por mais de seis meses, esta oitava e nona crises trouxeram novos níveis de stress a Portugal.
Porém, quando a coisa parecia querer respirar um pouco, constatámos que a seca extrema invadira o território nacional e que, na pacífica Europa, uma nova guerra eclodia, provocada pela invasão da Ucrânia pela Rússia. Com onze crises agora a gerarem o caos, outras quatro vieram ajudar à festa, a subida absurda dos combustíveis, a crise alimentar provocada pela falta dos cereais vindos do celeiro da Europa, ou seja a Ucrânia, a subida súbita das taxas de juros pela banca e, Berta, a chegada em força da inflação.
Ora, esta décima quinta crise, Berta, é precisamente aquela que mais danos provoca nas classes mais desfavorecidas, ou seja, na maioria dos portugueses. A fome alastra, a capacidade de pagar as responsabilidades familiares, sociais e pessoais esgota-se e as condições para o desespero ganham proporções bíblicas.
Neste contexto, a chegada a Portugal desta desproporcional vaga de calor, fruto das alterações climáticas, começa a pintar um novo quadro de inspiração dantesca no nosso território, somando mais cinco crises às existentes. Os mais idosos e com menos condições económicas falecem, levados pelo calor, outros desfalecem, pelo efeito da inflação, as mães receiam parir em resultado do fecho das urgências da especialidade, enquanto Portugal definha, fruto da falta de natalidade que se agrava a cada ano que passa no nosso flagelado canto à beira-mar.
É neste contexto de duas dezenas de crises, muitas delas consequências de outras pré-existentes, em que o país se encontra. Se este se tornar, novamente, num ano de grandes fogos, essa vigésima primeira crise, pode ser o princípio de uma nova era porque, minha querida, o povo é sereno, de brandos costumes, aguenta quase tudo, mas ninguém aguenta tudo.
É com a corda esticada ao máximo e já em tenção absoluta que me despeço por hoje, minha doce amiga. Não sei se Costa se consegue transformar num Santo António Costa, mas estamos todos à espera de um milagre e, afinal, temos Fátima para quê?
Gil Saraiva