Carta à Berta n.º 576: As Desculpas de João Ferreira
Olá Berta,
Estive a ouvir as declarações de João Ferreira à SIC Notícias, a propósito da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Sinceramente, não entendo como é que uma pessoa inteligente e evoluída, por quem eu tenho elevada consideração, consegue fazer uma análise tão absurda da guerra. Porque raio é que João Ferreira prefere usar argumentos para desculpabilizar a invasão russa?
Francamente, muito sinceramente, não consigo entender. Se João Ferreira estivesse a defender a antiga Rússia Comunista ou a antiga URSS eu até entendia. Embora sendo uma ditadura, nesses tempos, a União Soviética dizia-se comunista, estando de acordo com a génese da fundação do PCP. Todavia, atualmente a coisa não faz o menor sentido, pensemos de que forma pensarmos.
A Federação Russa de hoje, financia partidos de extrema direita em todo o mundo, da França a Portugal, passando por Espanha, Hungria e por aí em diante. Quanto à política o comunismo russo foi há muito substituído por uma ditadura czarista autocrática, de direita, focada no culto da personalidade de Putin e apoiada numa tropa fandanga de oligarcas escolhidos a dedo pelo poder, para o representarem no mundo. Nenhum destes senhores defende o proletariado ou os trabalhadores. Então porque raio defende João Ferreira a invasão da Ucrânia e quase a guerra?
Sinceramente não consigo entender. Será o hábito da ligação à antiga ex-URSS? Têm receio de, agora, se sentirem repentinamente órfãos? O Partido Comunista Português já tem 101 anos de história, o que é idade suficiente para cortar o cordão umbilical com a falecida mãe, por muito que as teorias da mesma possam ter sido inspiradoras de um novo mundo que, diga-se, nunca se concretizou.
Se observarmos em detalhe o principal da entrevista de João Ferreira, até podemos concluir que ele condena a guerra da Rússia com a Ucrânia, só que, a forma rebuscada com que tenta atenuar a culpa russa dá vontade de lhe dizer que mais lhe teria valido ter ficado calado.
Vamos aos factos:
- João Ferreira diz que a existência de forças "com cariz paramilitar assumidamente fascista e nazi" no exército ucraniano está "devidamente demonstrada".
- João Ferreira defende que a posição do PCP em relação à guerra na Ucrânia tem sofrido de uma enorme "manipulação" por parte da comunicação social.
- João Ferreira informa que o partido acredita que esta guerra que nunca devia ter acontecido e que deve acabar "o mais rápido possível".
- João Ferreira diz que para "perceber a guerra é preciso saber como cá chegámos" e afirma que a invasão: "insere-se num conjunto de outros atos representativos de uma escalada".
- João Ferreira informa que "houve um conjunto de forças: o Batalhão Azov, o Setor Direito (Pravyy sektor), o Svoboda - qualquer uma delas de cariz paramilitar, assumidamente fascista e nazi, defendendo a reabilitação de colaboracionistas nazis como Bandera”, a terem sido integrados nas tropas ucranianas.
- João Ferreira explica que: “Isto não é propaganda russa, encontram todas estas referências ao longo destes últimos anos, em órgãos de comunicação social ocidentais. Tem sido dito que os neonazis foram a eleições e que têm expressão mínima, mas a expressão e o peso que têm ao longo dos últimos anos não pode ser medido por aí”.
- João Ferreira reitera que os nazis: “Foram inseridos no exército ucraniano e estiveram ao longo destes últimos anos a bombardear as populações do Donbass. Todo um contexto que não deve ser desvalorizado. Tivemos uma situação de ilegalização de forças políticas”.
- João Ferreira refere-se ainda ao conflito no Donbass, que "acontece há 8 anos", diz que os acordos de Minsk não foram respeitados e que esta é também uma situação que ajudou à escalada.
- João Ferreira avança que para pôr fim à guerra é preciso o: "regresso aos acordos de Minsk, a desmobilização dos meios da NATO que foram colocados na fronteira da Rússia, o cessar-fogo imediato com o fim de todas as hostilidades", tendo este comportamento de levar à saída das forças russas da Ucrânia.
- João Ferreira afirma que este é o caminho concreto para quem quer a paz, porém sublinha que: "a União Europeia não parece querer nada disto", aproveitando para esclarecer o seu desacordo com o envio de armas para a Ucrânia.
- João Ferreira acredita haver margem para negociar, e não vê incompatibilidade em condenar a invasão da Ucrânia por Putin e, simultaneamente, apontar o dedo a todas as situações que descreveu.
- João Ferreira termina dizendo que: “É possível constatar isto tudo como factos demonstrados, não os apagar, inseri-los no contexto que nos ajuda a explicar esta situação e ao mesmo tempo reconhecer na ação da Rússia uma violação do direito internacional que é condenável e não devia ter acontecido, como é condenável todo o processo.“.
O que João Ferreira não diz é que, mesmo que todo o seu contexto seja absolutamente verdadeiro e real, nada disso justifica a invasão da Ucrânia por parte da Rússia. Basta pensarmos que no seio da polícia portuguesa também parece existir um movimento neonazi fortemente enraizado e isso não desculparia uma invasão espanhola de Portugal. Quanto às atitudes da NATO e da União Europeia, são atitudes externas, no momento da invasão, à própria Ucrânia. Não justificam, portanto a guerra da Rússia com o seu vizinho.
O que João Ferreira não diz é que os acordos de Minsk, nem sequer deveriam existir, bastava para isso que a Rússia não tivesse há oito anos invadido a Crimeia, território ucraniano, e criado no Donbass em Donetsk e de Lugansk o fermento necessário para a anexação de mais duas províncias ucranianas.
O que João Ferreira não diz é que se não fosse o auxílio do Ocidente em armamento à Ucrânia estaríamos agora a assistir ao genocídio do povo ucraniano. Porque a Rússia invadiu antes de qualquer auxílio ter acontecido.
O que João Ferreira não diz é que condena o que os russos têm feito nestes oito anos no Donbass apoiando os separatistas, nem sequer condena, pelo menos eu não o ouvi a falar nisso, a anexação da Crimeia por parte da Rússia. Será que João Ferreira condenaria a anexação do Algarve por parte de Espanha, nomeadamente pela Andaluzia?
O que João Ferreira devia ter dito era simples e unicamente que condenava a invasão e a guerra iniciada unilateralmente pela Rússia contra a Ucrânia. Depois podia falar de todos os erros ucranianos, desde a corrupção, às tropas com infiltrados de movimentos nazis, mas também dos erros e do narcisismo de Putin, da sua ditadura e ânsia de mais poder, esta sim, a verdadeira causa do conflito.
A Ucrânia pode ter ainda uma democracia em crescimento e ainda carregada de problemas, mas isso também teve Portugal nos primeiros anos da nossa democracia. Bem, querida Berta, fico-me por aqui, tristemente desiludido com João Ferreira por quem tinha imensa consideração. Nunca se deve tentar tapar o Sol com a peneira. Por hoje é tudo, despede-se este teu grande amigo,
Gil Saraiva