Carta à Berta nº. 216: Memórias de Haragano - A Revolução Começa na Cama - Parte XIV
Olá Berta,
Se na última carta que te enviei terminei com os temores de um dia ser apagado, início a carta de hoje reforçando que quem escreve, seja lá quem for, tem sempre, o desejo íntimo de poder vir a ser lido. Caso contrário, não escrevia, fazia, por exemplo, crochê.
Para que possas entender ao que me refiro passo de imediato para as memórias. Assim:
Memórias de Haragano: A Revolução Começa na Cama – Parte XIV
“Por outras palavras, além de qualquer outro aspeto, motivo, bandeira, escola, anseio, crença ou método, quem escreve tem sempre como um dos seus objetivos ou desejos a possibilidade de poder vir a ser lido (sendo que o que às vezes muda é apenas o patamar de significado e prioridade que o referido objetivo ou desejo ocupa na escala daquilo a que cada um considera importante e valorativo). Faço notar que os mais fervorosos, além de lidos, anseiam também pelo sonho último de poderem ser lembrados, citados, estudados e, delícia das delícias, imortalizados. Eu já me daria por satisfeito por não ser apagado.
Poderiam dizer-me que isso de querer ser lido nem sempre acontece, que nem sempre é verdade, como já disse entendo essa linha perfeitamente, podemos ter como prioridade o nosso próprio registo memorial. Mas, e lá estou eu com os mas, quem não quer mesmo ser lido limita-se a pensar, analisar, sintetizar, deduzir e, às vezes até concluir seja que ideia ou processo imaginativo for, sem com isso sentir a necessidade de o escrever. Reafirmo que escrever é normalmente um ato privado que provavelmente vai requerer público ou a partir do momento em que possa ser lido ou a partir do instante em que possa ser esquecido.
Sobre os outros, antes de regressar a mim, resta-me falar dos que escrevem como modo de subsistência, coisa que também passou pela vida de Clarice, dos que fazem de um conhecimento, uma arte ou um dom (conforme os dotes e os casos) um modo de vida e ganha-pão. Para eles, ser lido, não chega… eles anseiam avidamente ser requisitados e muito publicados (e lá me lembrei eu de Camilo Castelo Branco que escrevia a metro brilhantemente, embora por pura necessidade).
Já lá vão três mil setecentos e muitos caracteres. Ups! Já passei a metade do estipulado e ainda tenho umas coisas a dizer.”
O facto de, muitas vezes, um jornalista estar limitado naquilo que escreve a um determinado número de carateres obriga-nos a desenvolver duas técnicas completamente distintas, a análise e até se necessário, alguma divagação ou reflexão sobre aquilo que se escreve, ou, pelo contrário, a um enorme poder de síntese, cortando tudo o que não é essencial.
Com estas observações termino a carta de hoje. Despede-se, com a amizade habitual e um cafuné, este teu costumeiro amigo diário e permanente,
Gil Saraiva