Carta à Berta: A Peça do Chinês - Parte IV - A Peça Entra em Cena...
Olá Berta,
Eis-me de volta com mais uma carta para ti. Confesso que esta nossa troca de correspondência me tem feito muito bem. Dou comigo mais alegre e mais aliviado sem saber bem porquê e, depois de pensar no assunto, acho realmente que tudo se deve a esta nossa troca de palavras. Obrigado por me escutares com tanta atenção. Eu, pelo meu lado estou sempre pronto a receber notícias tuas.
Hoje, continuando a minha aventura da peça do chinês, julgo que é chegado o momento de a peça entrar em cena. Deves estar curiosa e, embora não seja nada de surpreendente, sempre tem um ou outro aspeto cómico, por entre toda a estupefação que provoca.
Quando despertei, na quinta-feira, fiquei a saber que tinha de entrar em dieta zero. Ora, como tu sabes, minha amiga, o que eu entendo de dietas é o que escuto nas conversas que tenho contigo ou outras pessoas do sexo feminino, que, em certas alturas, falam dessa necessidade de moderar o que comem. Contudo, nunca tinha ouvido falar em dieta zero e, portanto, estava, em absoluto, na mais perfeita e maior das ignorâncias.
Ainda tentei fazer algum tipo de raciocínio. Por exemplo, no caso da Coca-Cola, quer na cola “Diet” quer na Zero, são reduzidos ou eliminados açúcares que existiam na bebida normal. Ainda pensei que ia ter que beber algo com sabor a formigas que me introduzissem numa água tipo Pedras Salgadas corando-a e cujo efeito, por entre o fervilhar das bolinhas de gás, plenamente carbonizado, teria como resultado, ao escorrer pela goela abaixo, a eliminação de qualquer tipo de açúcares que eu ingerisse com a comida. Santa ingenuidade. Nada disso.
Dieta zero, no meio hospitalar, é uma expressão amaricada para nos informarem que vamos atravessar um certo tempo de fome e sede enquanto, por cima da tua cama, estiver a placa com aquelas palavras escritas. Dito de outra maneira, o que acontece é que passamos a viver um determinado período de total abstenção de comida e bebida em que, por vezes, nos dão o direito a usufruir de um soro intravenoso, e isto se tivermos sorte, com o intuito desse soro nos suprir as carências a que ficámos sujeitos.
Tretas, comida e água que não me passe no estreito não é alimento, é sadismo. Mas afinal, porque raio é que, para além de ter de estar enfiado num hospital (mesmo padecendo de nosocomefobia ou de síndrome de “hospitalite”, ou seja, pânico de hospitais), ainda tinha que ser impedido de me alimentar?
Era tudo por causa de uma operação não intrusiva, servida de bandeja com uma anestesia geral como acompanhamento, pelas mãos de um cirurgião. A intervenção, opacamente apelidada de CPRE, tinha por objetivo partir-me o calhau.
O calhau, relembro-te, era o tal libertino fugido do estaleiro, o paquete transatlântico, que disfarçado de gôndola, se evadira de um lago chamado vesícula, e que me estava agora a obstruir o canal biliar. Assim, afundado, partido, dilacerado, desfeito ou eliminado o obstrutor, seria em seguida introduzido um tubo com vista a alargar o tal canal (o biliar, obviamente), para que esta mesma situação não se voltasse a repetir.
Era esta cirurgia, amiga Berta, eufemisticamente chamada CPRE, que significa “colangiopancreatografia retrógrada endoscópica”, e que é uma técnica que utiliza, simultaneamente, a endoscopia digestiva, procedimento que consiste na aplicação de tubos flexíveis internamente no paciente e que permitem a visualização de imagens do tubo digestivo em monitores de televisão, e o emprego da imagem fluoroscópica para diagnosticar e tratar doenças associadas ao sistema biliar e pancreático.
Ora, por outras palavras, isto não é mais do que uma interposição direta no seio do meu tronco, com uma série de tubos de plástico (que ainda hoje não sei ao certo por onde entraram), espero que pela goela abaixo, a que acresce um emissor de raios x e sei lá que mais, que não só me observam as entranhas, através de um circuito de televisão, como reparam determinados tipos de problemas do íntimo humano, neste caso, no meu. A minha intervenção recebera luz verde para avançar no dia seguinte.
Quando da minha entrada no Hospital Egas Moniz, depois de devidamente depositado na cama 316, fora de imediato informado que já existiam outros pacientes internados a aguardar o mesmo procedimento. Até se deram ao trabalho, nessa altura, de me explicarem que isso se devia ao facto de a máquina usada para a operação ter estado avariada e que, só nessa semana é que a peça chegara, vinda da China, tendo sido necessário desalfandegá-la. Tal facto significava que, só agora, tinha havido possibilidade de ser colocada no equipamento, corrigindo a deficiência.
Ora, imagina lá, minha querida Berta, como se sente um individuo que tem pânico de hospitais, a quem dizem que vai ter de sofrer uma anestesia geral, para depois lhe meterem tubos, aparelhos de raios x e sei lá que mais, pelo corpo adentro, assim que a maquineta que o cirurgião usa para a intervenção for reparada, com uma peça do chinês… consegues imaginar?
Assim sendo, como o meu caso era muito urgente e como os outros já tinham marcação, ficara decidido que eu entraria numa aberta, entre as marcações, ou no final das mesmas, isto se ainda houvesse tempo. Para me acalmar, alguém simpático ainda me referiu que estes tipos de intervenções demoravam entre uma a 2 horas e que era normal fazerem-se mais de meia dúzia por dia. Era um procedimento muito comum diziam-me e raramente apareciam complicações durante ou depois da operação.
Fiquei mais aliviado, eu não queria estar ali, até porque o meu pânico àqueles sítios aparecia e desaparecia conforme o cheiro a hospital me entrava mais ou menos pelas narinas, fazendo-me suar frio, criando-me náuseas, gerando-me cefaleias e mais uma boa dúzia de sintomas absurdos, mas, infelizmente, minha amiga, bem reais para mim. Contudo, a dada altura, lá consegui respirar fundo e ficar mais descomprimido, de tal maneira que até passei melhor aquele dia de estômago vazio.
Tinham-me acabado de dizer que, afinal, aquilo era uma operação de rotina e que a taxa de mortalidade estava reduzida a uns meros… um por cento. Pronto, respirei fundo novamente, o meu tratamento era algo de banal, rotineiro, customizado. Aquelas palavras soaram-me a baladas românticas e os meus ouvidos, magoados com os berros da minha própria voz nos dias antecedentes, pareciam agradecer e relaxar, finalmente.
A ajudar à festa, um outro paciente, alojado naquela mesma enfermaria, o Bonifácio, mantinha a “caserna” em alta, com um sentido de bom-humor malandro, alegre e superpositivo. Para ele, qualquer elemento esteticamente interessante do género feminino era, de imediato, apelidado de paisagem. A que ia juntando adjetivos e superlativos conforme a vista. Uma excelente escolha de termo uma vez que, quando falamos de paisagens, estamos a referirmo-nos a imagens que nos atraem pela sua beleza ou singularidade.
Acontece que, pelo piso 3 do Hospital Egas Moniz, nessa altura, apareciam algumas paisagens de 2 pernas que desafiavam, de pleno direito, as maravilhas naturais que vemos em canais como o “Nacional Geographic”. Depois, ouvir o Bonifácio falar da inveja, que umas cataratas quaisquer teriam, se vissem uma ou outra paisagem, entre as que passavam pelo corredor, era meia cura para os males daquela enfermaria.
Chegou, graças aos céus, a sexta-feira e, bem no final do dia, fui informado, com muito jeitinho, que a vaga não surgira e que podia parar a dieta zero. Depois veio a segunda vaga de informação com novidades ainda melhores, pois já me tinham pedido o jantar. Entretanto, enquanto retirava do topo da minha cama o letreiro da dieta zero, fui informado que a minha operação fora transferida para a segunda-feira seguinte, logo pela manhã.
A fome era tal que, depois de finalmente jantar, achei que a comida do hospital era bem superior à confecionada por um daqueles chefes de cozinha, famosos e premiados. Adormeci a soro e de barriga cheia, a sonhar com paisagens que me faziam sorrir e lembrar que era bom estar vivo.
Hoje ficamos por aqui, minha querida Berta, despeço-me com amizade, carinho e um sorriso para a paisagem que tu própria representas, este teu amigo de sempre,
Gil Saraiva