Carta à Berta nº. 685: A Competência de Carlos Moedas
Olá Berta,
Sabes, minha amiga, estou tão habituado à maneira de ser e de agir dos políticos portugueses que raramente me deixo surpreender, seja pelo que for que aconteça. Mas desta vez, até eu, que não sou de ficar de espantado pelo que acontece neste nosso mundo político, fiquei, literalmente, de boca aberta. Direi mais, fiquei abismado, incrédulo e sem argumentos.
Não sei se te lembras, cara confidente, mas a quando do desastre do Elevador da Glória, os sindicatos do setor reclamaram que a manutenção do elevador deveria ter continuado a cargos dos próprios trabalhadores dos carris, como até 2019 sempre acontecera, pois eram gente que conhecia, de olhos fechados, todos os mais íntimos detalhes técnicos, elétricos e mecânicos do elevador, tendo inclusivamente uma dedicação extrema à causa da sua manutenção.
Ainda sob o comando socialista, Bertinha, com Fernando Medina ao leme da autarquia, a Carris adjudicou, em 2019, a manutenção do Elevador da Glória à MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia, Lda. (conhecida como Main), sem exigir experiência anterior às equipas técnicas da empresa. A revelação foi feita pela revista Sábado e devidamente confirmada pela transportadora lisboeta.
No concurso público lançado em junho desse ano, minha cara, com preço-base de um milhão de euros, a Main venceu ao apresentar a proposta mais baixa, no valor de 868 mil euros. No caderno de encargos não constava qualquer exigência de experiência para os técnicos afetos ao serviço, permitindo à empresa, até então sem historial no setor, obter o contrato. Não imaginas como eu gostava de saber quem foi o responsável na Carris, pelo lançamento deste concurso inédito.
Antes disso, Berta, e bem podes ficar aparvalhada como eu fiquei, a Main dedicava-se à manutenção de piscinas e ao tratamento de ar, sobretudo durante a pandemia, e só em 2022 alterou oficialmente o seu objeto social para incluir “reparação, manutenção e instalação de máquinas e equipamentos”.
Em termos comparativos é o mesmo que entregar a manutenção dos esgotos da cidade a uma empresa de jardinagem. No meu entender de leigo e incompetente para fazer avaliações deste tipo, chega-me, contudo, minha amiga, o senso comum.
Em julho do mesmo ano, minha querida, a Carris voltou a lançar concurso, desta vez com preço-base de 1,7 milhões de euros, já exigindo experiência mínima de dois anos na manutenção de equipamentos. Foi assim, num concurso aparentemente feito à medida. que a Main voltou a vencer, apresentando a proposta mais baixa, de 851 mil euros. Com serviços adicionais de reparação devido a vandalismo e acidentes, sendo que o valor final do contrato ascendeu a cerca de 995 mil euros, o que corresponde a quase metade do limite máximo orçamentado e bastante inferior às propostas concorrentes.
Como curiosidade, cara amiga, esclareço que a Main foi criada há 15 anos pelo engenheiro Gustavo Pita Soares, que detém 75% do capital, com os restantes 25% a pertencer à namorada, Marieta Garcias. A empresa, sediada em Almada, conta com 28 funcionários e um capital social de 15 mil euros e que em 2024, registou uma faturação de 1,29 milhões de euros.
Ora, Berta, desde 2017, a Main já assinou pelo menos 33 contratos públicos, totalizando mais de quatro milhões de euros, envolvendo municípios e empresas públicas. Mais recentemente, em 2025, o concurso para manutenção do Elevador da Glória foi cancelado porque todas as propostas ficaram acima do orçamento disponível.
Porém, minha amiga, já sob o comando autárquico de Carlos Moedas, em agosto de 2022, a Main assinou com a Carris um contrato, no valor de 995,5 mil euros, que abrangia a manutenção dos ascensores da Bica, Lavra e Glória, bem como o Elevador de Santa Justa. Este contrato, com duração inicial de 12 meses e renovável até 36 meses (que venceu no final de agosto deste ano), estabelecia uma avença mensal de 5.913 euros para cada um dos elevadores.
Ora, minha cara, com o contrato vencido este ano, em agosto, e para assegurar a continuidade do serviço, a Carris recorreu a uma consulta prévia urgente, atribuindo novamente à Main a manutenção do funicular por um período de cinco meses.
Ou seja, Carlos Moedas, não só manteve a total confiança na Main, como a reforçou, em 2022, ajudando a que esta se expandisse para o Porto e ficasse responsável pela manutenção dos elétricos da Invicta. Eu não sei muito de engenharia, Berta, mas uma empresa que metia as mãos na água a mexer em sistemas mecânicos e elétricos, parece-me, no mínimo, surpreendente. Mas eu, na minha ignorância, não sou ninguém para julgar a douta experiência de quem decide estas coisas.
Posso estar errado, no entanto, acho que toda esta história não cheira lá muito bem. Pior ainda é que Carlos Moedas, responsável máximo pelo contrato com a Main desde 2022, não acha pertinente apresentar a sua demissão do cargo. Morreram 16 pessoas. O que é preciso fazer mais para ver o sujeitinho assumir responsabilidades? E assim Bertinha, comigo muito intrigado, fica-te com um beijo de despedida, deste teu amigo de sempre,
Gil Saraiva
