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Alegadamente

Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente correto.

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Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 63

A Felina - 63.jpgAs restantes Noites de Lua Cheia daquele mês de novembro tornaram-se por isso mesmo eternas, sensuais, carnais, viciantes e viciadas, quase como se não houvesse amanhã. Se Diamantino tivesse uns bigodes retorcidos nas pontas e virados para cima, que efetivamente não tinha, estaria encontrado o domador de leões, tigres e panteras típico de um circo máximo.

Com efeito, não lhe faltava o chicote enrolado à cintura, nem o sorriso esmaltado a branco no rosto moreno. Era ele quem passara a dar a cara nas entrevistas com a comunicação social. As câmaras adoravam-no chegando a fazer inveja à Felina que, embora confiante, parecia não estar nada interessada em repartir o jovem com ninguém.

Os Ciclos da Luz, nomeadamente a Lua Cheia, só terminaram a quinze de novembro e aquelas noites e dias foram praticamente uma Lua de Mel entre aquele incansável casal. Num final de tarde, chegaram inclusivamente a fazerem amor sobre uma velha mesa de madeira empoeirada, algures nas instalações da biblioteca romana, perante a assistência incrédula de livros, papiros e estátuas estupefactas com quase dezoito séculos de história. Um busto sereno de Júlio César, parecia até concordar com aquela efervescência amorosa através de um sorriso esculpido delicadamente no mármore alvo e imaculado, quem sabe se de Carrara.

 O número de Alfredo Neto, o dono da oficina onde a Felina confiava as suas viaturas, piscava no telemóvel de Íris. Ao atender a jovem ficou a saber que aquilo que pedira ao seu mecânico chefe estava pronto. Íris, relatou, detalhadamente onde queria a encomenda, não apenas o dia e a hora, mas também local e a ordenação em que a mesma deveria estar disposta. Até lhe enviou um esboço para não haver enganos.

No início da noite de terça-feira, dia quinze de novembro, a carrinha da polícia saiu da esquadra de Sintra. No seu interior iam quarenta milhões de euros aprendidos à Kalinka, mais uns bons milhões em ouro e joias. Uma outra carrinha levaria no dia seguinte, à mesma hora, a droga apreendida para os cofres da Polícia Judiciária. A carrinha escolhida para os valores era uma das viaturas blindadas do corpo de intervenção e levava três homens bem armados no seu interior. O condutor, um comissário e um chefe principal.

Íris, não tivera dificuldade em descobrir qual o itinerário da carrinha da polícia. Para evitarem o tráfego da IC19 eles vinham para Lisboa pela A16 e depois entravam na capital pelo IC37. Eram mais nove quilómetros, mas, àquela hora, vinham sempre a andar. Foi perto do nó de Agualva que tudo aconteceu. Na beira da estrada uma 4L estava deitada de lado, com fumo a sair da zona do motor.

A noite caíra já há um bom bocado e não era fácil entender o que acontecera, via-se o chão molhado em volta da viatura, o que levava a pensar que o depósito estava a verter gasolina para o pavimento. O banco do condutor parecia vazio, porém, um braço aparecia e desaparecia, a espaços, visível pelo vidro frontal. Alguém parecia estar muito mal dentro da 4L. O tempo para agir parecia escasso.

A carrinha da polícia parou. Rapidamente, os polícias correram para o acidente tentando chegar à 4L antes que o fumo do motor se transformasse em fogo, engolindo para sempre aquele braço que parecia perder força. A viatura aparentava ter sofrido um acidente aparatoso pois não havia chapa que não estivesse amolgada ou arrancada e perdida por ali, pelo asfalto. Não parecia haver um vidro intacto.

Subitamente os três polícias ouviram o som da sua carrinha a arrancar, deixaram de estar iluminados pela luz que dela vinha e que permitia ver o acidente. A viatura do corpo de intervenção desaparecia a toda a velocidade em direção a Agualva. A chave ficara na ignição e as portas tinham ficado abertas. Um erro tremendo. O agente que tinha vindo a conduzir deitava as mãos aos bolsos e confirmava que não guardara a chave.

O comissário resolvera tratar primeiro do ferido da 4L, mas foi surpreendido pelos acontecimentos. Dentro da viatura um braço de um manequim, preso a uma engenhoca, subia e descia lentamente. Não havia vivalma no carro acidentado. O chefe principal acabava de perceber, ao levar a mão ao solo molhado, que se tratava de água e não de gasolina. Daí a descobrirem que o fumo do motor provinha de uma lata larga com borracha queimada a derreter foi um saltinho. Os polícias tinham sido enganados e infantilmente roubados. Quando chegou o auxílio já a carrinha desaparecera há vinte minutos.

A carrinha do corpo de intervenção foi encontrada quase à entrada de Agualva. Os sacos do dinheiro estavam vazios e as três malas enormes de alumínio tinham os cadeados arrombados e estavam vazias. Bem, quase vazias. Dentro da última descansava uma moeda da Felina, assinando o roubo. Em meia hora tinham desaparecido as joias, o ouro e vários milhões de euros, como que por magia.

Na Rua da Fábrica, em Campo de Ourique, a Felina acabara de chegar à sua sala secreta, guardando no cofre o resto das joias que trouxera escada acima até ao seu apartamento. Tinha subido e descido aquelas escadas treze vezes, mas finalmente tinha o ouro todo e as peças de ourivesaria guardadas no cofre. No seu Dácia ficara o dinheiro. Esse seria guardado no primeiro andar, na sua sala especial, no número quatrocentos e quarenta e quatro da Rua de São Bento. Depois de tudo tratado ali, foi para lá que seguiu.

Íris ligou ao seu mecânico chefe. Agradeceu a 4L e a montagem da armadilha. Este, vaidosamente esclareceu que usara uma viatura acidentada retirada de um ferro velho em Pero Pinheiro, juntamente com uns salvados de que precisava para a sua oficina e que na compra não fora registada a 4L individualmente, apenas o peso de um lote de salvados diversos. A matrícula que colocara na viatura tinha outra origem e também não seria possível descobrirem de onde viera. O mais difícil fora arranjar o braço mecânico do manequim e montar o engenho no banco do condutor.

Alfredo Neto, estava muito feliz por ter sido útil. Para a próxima vez que a Felina precisasse dele não tinha que lhe pagar o trabalho tão generosamente, nem de forma antecipada, teimava novamente. Ela só tinha que pedir. Depois, insistentemente, voltava a repetia que nem precisava de ser pago. Sem ela ele jamais se teria conseguido voltar a erguer, a ter um negócio e a viver com alguma prosperidade como agora vivia. Ela sabia disso.

Sim, ela sabia. Todavia, quem trabalha tem de ser pago e, ainda por cima, aquele fora um trabalho de risco. Ele refilava mesmo assim. O que ela lhe pagara dava para comprar um carro novo de gama média e ele só usara uma viatura a desfazer-se. Além disso, dava-lhe imenso gozo realizar estes trabalhos para ela. Sempre que os fazia sentia-se trinta anos mais novo.

O assalto tinha sido muito bom. Quase cem milhões, sacados de forma simples, sem muito risco e com imenso gozo. A cereja no topo do bolo era a fortuna vir da Kalinka. As joias, ela ainda ia ter que as desmontar e vender, o ouro teria se ser entregue aos seus fornecedores para transformar em barras de cem gramas, mas o dinheiro continuaria a ajudar o seu serviço de acudir os mais necessitados. Tinha sido um trabalho limpinho.

Tocaram à sua porta, estava ela a fechar a sua sala secreta. Foi ver quem era. O sorriso desalinhado de Diamantino apareceu na pequena câmara da campainha. Ela sorriu e indagou pelo intercomunicador:

      ― Sim… o que deseja? ― Íris, parecia formal. ― Se me vem vender bíblias ou passar a Palavra do Senhor, informo que já tenho o livro e quanto à palavra de uma Testemunha de Jeová, ainda há três dias tive cá duas outras testemunhas que nunca mais se calavam. Estou cheia de palavras. Entendeu?

      ― Não, não! Eu venho é mesmo jantar e depois passar-lhe a pila deste senhor. ― Diamantino, rindo, respondia com a boa disposição de sempre. ― Ou a senhorita já teve pila que chegue?

      ― Jamais me verá queixar de pila a mais. Por quem o senhor me toma? Mas não suba, eu desço. Hoje apetece-me jantar fora. ― Íris, divertida, respondia, por entre um riso contagioso.

O arqueólogo esperava por ela no passeio junto à porta do prédio. Hoje iam no carro dele, podia ser? Indagou contente, ainda com a cabeça cheia de pó, com ar de quem acabara de chegar das ruínas romanas onde ambos trabalhavam. Atravessaram a rua e chegaram ao parque de estacionamento. Ele aproximou-se de uma Renault 4L vermelha, que quase parecia a do acidente forjado do início da noite. Íris desatou a rir. Aquilo era um déjà vu, ela nem queria acreditar.

O poiso preferido de Dia, como ela chamava a Diamantino, era a Cervejaria Portugália na Avenida Almirante Reis. O ar clássico do restaurante abria-lhe o apetite, explicava ele, mais uma vez, ao entrarem. O homem era desconcertante. Nunca conhecera ninguém que estivesse sempre feliz até o conhecer. Contudo, era verdade, nada desanimava aquele Indiana Jones.

 

(continua no último fascículo do livro) Gil Saraiva

 

 

 

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