Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 61
XV
Noites de Lua Cheia
XV
Com a Lua Cheia a começar a oito de novembro, Íris já perdera quatro dias das suas noites especiais do segundo Ciclo da Luz. Restava-lhe a noite de dia onze e os dias doze, treze, catorze e quinze. Mesmo assim, não se podia queixar muito. O cerco à quinta de Sintra correra melhor até do que ela esperara. Renderam-se, antes do final do dia, os quinhentos e trinta e sete membros da Kalinka.
Todavia, não foi uma tarefa fácil. Foram efetuadas onze perseguições de helicóptero e mais de cem fugas travadas pelos aranhites que se mostraram essenciais para virar o jogo a favor das polícias. Mesmo assim ainda foram abatidos os seis Cedros principais, que não se renderam e saíram pelo portão numa viatura, com metralhadoras automáticas a disparar para todo o lado.
Também morreram, fruto da troca de tiros, outros vinte e sete Cedros e quatro Zimbros. Numa iniciativa de última hora o Governo vendeu ao canal americano “Crime” os direitos de filmagem dos preparativos, do confronto e o contrato só terminará com a extradição da restante máfia e respetivas famílias. Será produzida uma série de vinte e quatro episódios. Foi aprendido um verdadeiro arsenal de armas e munições, algumas toneladas de droga, mais de trinta, sendo vinte e quatro de cocaína e heroína e mais de seis de drogas leves e anfetaminas.
Em consequência da operação foram retiradas da atividade cerca de duzentas e sessenta e três prostitutas e desativadas dezenas de casas de prostituição clandestina, bem como se desmantelaram duas redes internacionais de tráfico, uma de armas e outra de pessoas. Da operação resultou ainda a apreensão de mais de quarenta milhões de euros em notas e cerca de sete milhões em ouro e joias. Na noite de onze para doze as armas e os valores ficaram a cargo da polícia de Sintra.
Do lado das forças que efetuaram o cerco, foi ferido numa perna, sem gravidade, o Diretor Adjunto Carlos Farelo, sete oficiais e onze elementos do exército. Dos oficiais dois eram dos paraquedistas, três dos fuzileiros, um dos comandos e outro dos rangers. No entanto, as mazelas e ferimentos não apresentavam perigo, sendo apenas coisas relativamente ligeiras. Nos contingentes da PSP e da GNR, que se encontravam numa segunda e terceira linha de intervenção apenas existiu um tornozelo torcido, durante uma perseguição.
Contudo, não foi possível encontrar em lado nenhum o Superintendente da PSP, Vítor Fernandes de Melo. O solar foi virado de alto a baixo e toda a quinta batida palmo a palmo, mas sem grandes resultados. Os cães deram com rastos dele em diferentes locais, demasiados até, e foi impossível determinar como fugira.
O homem era agora o sujeito mais procurado de Portugal e foram emitidos mandatos internacionais através da Interpol e da Europol. A Judiciária estava convencida que a sua detenção seria, provavelmente, uma questão de dias. Ninguém, sem experiência, desaparece para sempre sem deixar rasto.
O cerco começara à uma da tarde e só fora dado por terminado perto das duas da manhã. Nas primeiras declarações à imprensa o Primeiro-Ministro confessou que todos os operacionais agiram com uma eficácia e profissionalismo exemplares, mas que, foi graças às imagens, que foram sendo transmitidas por uma série de câmaras instaladas, antecipadamente, dentro do solar e em toda a quinta, pela Felina, que as baixas das forças da ordem tinham sido tão reduzidas.
As imagens transmitidas pela gata, quer as primeiras do SD Card, que dera origem à operação, quer as do direto, seriam entregues ao canal “Crime” que pagaria os direitos a uma lista de pessoas necessitadas cujos nomes já se encontravam na posse do Governo, que seria a entidade que zelaria pelo pagamento desses direitos e a entrega dos respetivos valores aos devidos destinatários constantes no rol apresentado pela Felina.
O Estado esclareceu que, nas declarações que possuíam da pantera negra, esta se lembrou de instalar as câmaras quando descobriu que a quinta de Sintra, onde estivera o bando de Jô Muttley anteriormente, fora vendida a uma empresa estrangeira proveniente do Leste da Europa. Também conseguira ligar o comprador, como se veio a provar, ao Grupo Wagner, que usa a Kalinka, espalhada em toda a o velho continente, como o braço mafioso do dito grupo para se infiltrar no espaço europeu.
Ficara também provada a mais valia dos aramites na operação, pelo que o Governo considerava que a sua utilização massiva, na Ucrânia, poderia vir a ajudar a virar a página da guerra. Ao fim, ao cabo, era como transformar um batalhão de infantaria num de cavalaria ligeira sem custos elevados.
Os americanos do Canal “Crime”, puderam filmar ao vivo, as atuações em campo dos aramites, o que se tornava muito útil para provar a eficácia desta hibrida viatura ligeira de combate, fácil de conduzir, com uma enorme versatilidade de armas de pequeno e quase médio alcance, cujo conhecimento para as utilizar era tão simples como conduzir um carro ligeiro. A distribuição do peso estava tão bem organizada por toda a viatura que esta, mesmo em caso de capotamento, acabava sempre por ficar com as rodas assentes no chão, tipo sempre-em-pé.
Antonino Mosca também agradecera, através de uma conferência de imprensa, esta já no dia doze, o elevado contributo representado pela consultora da Polícia Judiciária, a Doutora Íris Vasconcelos que aceitara o pedido do Diretor Nacional da PJ, Luís Navas, para fazer o papel de intermediária nas negociações entre a gata mais famosa de Portugal e a PJ, com risco da sua própria vida e sem nunca sequer uma hesitação que fosse. Revelava ainda que era do seu conhecimento que depois da importância da Doutora nas duas últimas grandes ações anticrime esta seria condecorada.
A condecoração com o Grau de atribuição do Grande-Colar da Ordem de Cristo seria entregue numa sessão solene presidida pelo excelentíssimo Senhor Presidente da República. Felisbelo Rabelo de Lousa. No final da conferência de impressa, Antonino Mosca, revelou ainda que se a Kalinka não tem sido travada no dia anterior, tinham provas que depois do dia catorze já seria tudo muito mais difícil, pois nessa altura ela expandiria o seu raio de ação para a região de Coimbra e para o Algarve e de seguida, antes do final de novembro, para o restante país e ilhas.
Carlos Farelo, que levara o tiro na perna, quando fazendo uso da sua pistola automática de estimação, uma Taurus PT 58 HC PLUS, se entrepusera, logo à saída do portão da quinta, em frente da carrinha que transportava os líderes da Kalinka, armados de metralhadoras automáticas, e conseguira eliminar o condutor com dois tiros certeiros, também ia a ser agraciado com o Grau de Comendador da Ordem de Cristo, na mesma cerimónia em que Íris Vasconcelos seria agraciada.
Todos os discursos, da PSP, da GNR, dos chefes dos três ramos das Forças Armadas, do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, do SIED, do SIS, do SEF e de Luís Navas, enquanto Diretor Nacional da Polícia Judiciária, para além das intervenções dos Ministros da Defesa e da Administração Interna, secundavam, validando as escolhas e as palavras proferidas pelo Primeiro Ministro, Antonino Mosca.
Um artigo do New York Times, dessa semana, realçava como é que um país antigo na sua história, mas de dimensão reduzida se comparado às grandes potências, conseguia ser tão eficaz e inventivo numa guerra do século XXI.
Vítor Fernandes de Melo estava furioso. Passara de Coordenador Principal da Polícia Judiciária para Superintendente da Polícia de Segurança Pública e número dois da filial portuguesa no maior grupo mafioso da Europa e, mais uma vez, sem ele se dar conta, o sucesso fora-lhe arrancado das mãos por uma gata vadia. Ao contrário de Íris, de quem ele tirara partido de forma pouco católica, e que, por isso mesmo, achava justo que esta lhe fizesse alguma frente, mesmo que fosse mais correto ser a fulana a agradecer-lhe.
Para além disso, não era para se armar aos cucos, mas Íris podia bem agradecer aos deuses ele tê-la deixado provar uma iguaria como ele. Sabia que se aproveitara da fraqueza dela no momento e que se fizera apaixonado, mas caramba, mesmo não tendo sido muito honesto dera-lhe o direito raro de disfrutar dele. Todavia, tinha que reconhecer que Íris fora uma das melhores coisinhas que já provara, se não a melhor, e sobre isso não havia como mentir, nem tal seria justo.
Por outro lado, e bem ao contrário, a Felina sempre fizera dele gato-sapato. Mas a expressão correta deveria ser que ela fora para com ele como uma "gata-à-sapatada". Agora tinha que se esconder para não ser apanhado pela bófia. Não era certo. Tudo porque uma gaja armada em boa o tomara de ponta. Mas como lhe dizia o pai, quando, por vezes, do nada, lhe dava uma tareia, a vingança era um prato que se servia frio.
Ele vingara-se de o pai fazer dele um saco de pancada, fosse por causa do homem beber demais e depois decidir bater-lhe até ficar sóbrio, fosse porque se tinha chateado no trabalho, ou fosse, como tantas vezes acontecia, só porque lhe apetecia. A vingança fora o primeiro grande roubo da sua vida. Ele roubara-lhe a mulher. Conseguira convencer a velha a ensinar-lhe as artes do sexo e, entre os doze anos e os vinte e quatro anos, a sua mãe fora a sua melhor amante.
Fora ela que o ensinara a dar ás mulheres o que elas queriam e a fazê-las felizes. A ela devia o facto de ser o amante e o galã que hoje era. Não estava nada arrependido de, numas férias em família na Serra da Estrela, ter atirado o pai por uma ribanceira abaixo. Afinal, alguém que merecia morrer torturado acabara por ter uma morte santa.
(continua) Gil Saraiva