Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 54
Também descobrira que uma empresa de fachada, que funcionava como filial de uma multinacional russa controlada pelo líder do Grupo Wagner, comprara a quinta de Sintra que fora de Jô Muttley. Devido ás câmaras ocultas que instalara no local, durante parte do mês de setembro, tendo um extremo cuidado na sua colocação, para que essas não fossem detetadas caso a Kalinka se instalasse ali, como viera a acontecer, tinha, detalhadamente, em todo o lado, desde o muro e o portão da entrada até todo o complexo, o controlo do que se passava no seu interior.
A Felina, também passara algum tempo na Rua da Fábrica, no seu apartamento familiar, a preparar e a atualizar o seu equipamento de combate, até porque recebera os novos fatos de pantera, do Brasil, com as suas últimas inovações. Entre elas instaladas nas orelhas da gata, que agora rodavam trezentos e sessenta graus, um conjunto de câmaras especiais com visão térmica, visão noturna e visão natural com uma excelente capacidade de alcance instalada graças a um inovador sistema de zoom. Os equipamentos que anteriormente tinha nas orelhas tinham sido reinstalados na parte da frente dos ombros.
A visualização dos conteúdos das diferentes câmaras chegava-lhe aos olhos através de lentes de contacto conectadas às objetivas por Wi-Fi. Um maravilhoso progresso. O comando e as opções estavam localizados no interior do pulso esquerdo. Também nas orelhas havia agora quatro micro sensores de som com ampliação regulável pelo comando do pulso, abrangendo os mesmos trezentos e sessenta graus de envolvência. Para além disso adquirira e adaptara para as suas narinas dois minúsculos aparelhos, originariamente criados para cães pisteiros, que conseguiam ampliar em dez vezes o nível de captação de odores que possuía.
A Felina sentia-se pronta e mais preparada para o embate que o confronto com a Kalinda lhe poderia causar. O pai e o avô sempre lhe tinham ensinado a estar atenta e disposta para novos desafios.
Porém, nada a havia preparado para a descoberta dessa terça-feira, um de novembro. Nem ela, que tentava a todo o custo antever todos os cenários possíveis dos confrontos que lhe poderiam aparecer, esperara algo assim.
A pantera negra vira a Kalinka instalar-se e começar a operar na sua nova zona de influência. Até final de outubro nada fizera para intervir. Precisava conhecer muito bem o seu inimigo. No final do mês, ninguém diria que eles tinham chegado há tão pouco tempo. Pareciam estar por ali havia vários anos. Também já sabia quem era Alex Budvi e os seus comandantes diretos, Igor Shevchenko, Ivan Yakovlev e Dimitri Borisov. Também assistira a duas execuções, que filmara, de elementos do bando, um que tinha desobedecido a um comando direto e outro que desviara fundos da organização. O primeiro fora abatido a tiro e o segundo colocado vivo dentro de um barril de ácido, sem dó nem piedade. O evento acontecera nessa terça-feira de manhã.
Este episódio, aliás, fora excelente para a Felina. A organização convocara todos os seus elementos da Grande Lisboa, para um grande encontro global, onde todos se ficariam a conhecer, que afinal servira, isso sim, para dar o exemplo com a Kalinka, em peso, a assistir. A Felina tivera tempo suficiente, para registar em filme, um a um, todos os elementos da máfia, sem sequer ter de se apressar.
Porém, quando se dedicava a essa tarefa, ao chegar aos líderes nada a preparara para ver, junto ao grupo dos Cedros, localizados de fronte para os Zimbros, o seu conhecido Vítor Fernandes de Melo, mesmo do lado direito de Alex Budvi. Como estava a filmar remotamente pelas câmaras, que instalara previamente na quinta, e não se encontrando na propriedade, pensou ter visto mal. Só podia ter visto mal.
Assim que chegou ao fim da filmagem de todos os elementos voltou para trás e, agora com o zoom, filmou aqueles dois juntos a rir sadicamente, enquanto um desgraçado de desfazia, aos poucos, vivo, no ácido do barril Não havia dúvidas de que era mesmo o Superintendente.
Uma luz iluminou o rosto de Felina. Era isso que ela não pensara quando vira a ascensão meteórica de Vítor. As prisões no Porto tinham sido combinadas com Alex Budvi. Talvez elementos excedentários ou pouco aplicados, gente que servira para o ajudar a ganhar prestígio rapidamente. A estratégia fora um enorme sucesso. Naquele momento nem lhe servia de nada avisar a PJ, pois quando chegassem ao local a maioria já teria ido embora.
Precisava arranjar uma maneira de avisar a Polícia Judiciária, sem se deixar apanhar, e sem que estes pudessem duvidar dela, a gata ia ter que magicar um plano para o conseguir. Para a jovem, mais importante que a Kalinka toda era agora Vítor. O homem enlouquecera. Não havia outra explicação. Como era possível um ex-elemento dos topos da Judite, estar ali, a rir de um desgraçado vivo a desfazer-se em sebo? Aquilo era inconcebível.
No mesmo dia, quase ao fim da tarde, um novo episódio ensombrou o país. Raquel Coreto, a Secretária de Estado da Administração Interna, fora assassinada ao regressar a casa, à porta da sua residência. O motorista que a levara tivera a mesma sorte, ambos com tiros de um sniper, segundo comunicação da PJ. No local, em cima do corpo do membro do Governo, fora encontrada uma medalha da Felina.
A PSP, a pedido da Judiciária, revira as medalhas da larápia ao seu cargo e não faltava nenhuma. Ora, sendo esta a única entidade pública que guardava, como prova, as medalhas da Felina, não havia hipótese de se tratar de uma falsa acusação. A pantera negra, assassinara deliberadamente uma Secretária de Estado e o seu motorista e, como sempre, assinara o seu feito. O país estava chocado com esta inesperada atitude da gata. O Governo já adiantara que o facto, a ser provado, seria severamente punido pela justiça portuguesa assim que o julgamento terminasse.
O Correio da Manhã, que conseguira chegar ao local ainda antes da polícia, traria na manchete do dia seguinte uma imagem do assassinato onde a medalha era bem visível. Segundo o diário, que tanta manchete fizera à custa da Felina, a autoria do crime não podia ser da gata, pois o ato era totalmente díspar do seu comportamento padrão.
No entanto, outra imprensa menos simpática advertia que a atual imitação barata do Robim dos Bosques, iria ter, mais cedo ou mais tarde, que descambar no crime puro e duro. Nos comentadores as opiniões também estavam divididas. Basicamente, quem defendera a existência da gata e o seu papel na sociedade portuguesa mantinha a sua opinião, mas os que nada haviam dito da primeira vez ou os que se haviam manifestado contra a ladra, eram agora unanimes a pedirem a prisão imediata da cobarde assassina.
Íris, que passara a tarde a compilar um SD Card com os ficheiros completos sobre a Kalinka e a fazer outra cópia para si esteve até quase à meia-noite sem saber de nada. Quando se sentou no sofá da sua sala, no primeiro andar, do número quatrocentos e quarenta e quatro da rua de São Bento, acompanhada por um bom copo de vinho tinto, para escutar as notícias da meia-noite, quase que deitou o vinho pelo nariz com a notícia que servia de abertura àquele bloco noticioso.
Várias imagens apresentavam o corpo inanimado da Secretária de Estado, com a moeda em cima do peito. Íris, gravou a imagem e passou-a para o seu computador. Na sua sala secreta efetuou uma ampliação e tratou a fotografia de forma a poder vê-la claramente. Rapidamente se apercebeu que se tratava de uma imitação. Podia ser da televisão, mas o brilho da imagem e a cor não lhe pareciam exatamente iguais às suas medalhas.
Na sua mente pareceu-lhe evidente que aquilo era, mais uma vez, um plano maquiavélico de Vítor. Só uma mente perversa a podia representar a tirar uma vida, ainda por cima, através de uma arma de tiro à distância. Um tiro de sniper vindo dela era tão verosímil como uma morte de alguém à bomba. O homem estava doido.
Ligou o sistema de vigilância da quinta no seu computador. Procurou por Alex Budvi. O homem estava sentado no grande cadeirão do salão principal que outrora fora de Jô Muttley. Ele brindava com outro de costas para a objetiva. A jovem era capaz de reconhecer aquelas costas em qualquer lado. Vítor brindava com o novo associado. Subiu o som, ambos festejavam o princípio do fim da gata.
Ficou feliz por ter a gravação das imagens ativa. A data altura entrou no salão um sujeito com uma arma de precisão, própria de um sniper, ao ombro. Vítor chamou-o de leopardo, o gato que entalara de vez a farrusca. Tinham sido dois tiros certeiros, nem fora preciso ao homem disparar uma terceira vez. Um Cedro era assim, dizia o recém-chegado. Cumprira a sua missão na perfeição. Ainda conseguira deixar a medalha antes da chegada do Correio da Manhã que fora avisado por eles. Aliás, por uma das putas do bando, que por ser de Lisboa não tinha qualquer sotaque detetável.
(continua) Gil Saraiva