Carta à Berta: Saudades do Stop do Bairro e de João Sabino
Olá Berta,
Não sei se alguma vez te cheguei a levar ao Stop do Bairro antes do proprietário, o João Sabino, falecer e antes mesmo de ter de mudar o restaurante mais icónico do Bairro de Campo de Ourique para Campolide. Era um homem extraordinário o João, foi com muito pesar que, na altura, o acompanhei até ao seu último destino. Deixou-me umas saudades imensas este meu velho amigo.
Não só eu perdi um grande amigo como o bairro perdeu uma das suas figuras maiores. Estava-te a perguntar isto porque eu tinha começado a organizar-lhe a garrafeira do restaurante, apenas por amizade, precisamente, na altura em que ele foi expulso pela senhoria, também ela aqui do bairro, naquele que foi um contrato de arrendamento (e de abuso de confiança) em que ele, coitado, não leu que o novo período de renovação não era atualizável e, na sua boa fé, o assinou.
Diz-me minha amiga, nunca te falei da Garrafeira do Stop do Bairro? Pensando no assunto, acho que não. Infelizmente, também o filho mais novo do João Sabino, haveria de falecer pouco depois vítima de uma overdose, não sem antes ter dado sumiço a mais de um terço daquela maravilhosa adega vendendo ao desbarato, pela necessidade de alimentar o vício. Contudo, isso são contas de outro rosário. Aquilo de que te queria mesmo falar era daquela que foi a maior e melhor garrafeira de vinho tinto do Bairro de Campo de Ourique.
Foram precisos 3 meses, com a ajuda de mais 3 pessoas, o Manuel, irmão do João, a Patrícia, funcionária da casa e o Victor, um bom amigo do proprietário, para elaborar um catálogo de 5 volumes, todos de lombada de 8 centímetros, com a classificação e levantamento dos vinhos tintos em causa. A garrafeira teria no seu conjunto, aos preços de hoje, um valor global a rondar os 200 mil euros, se estivesse ainda completa.
Alguns vinhos já só valiam pela antiguidade, por serem ainda datados do século XIX. Mas era nos vinhos tintos de excelência que o destaque era absolutamente admirável, desde as garrafas, ainda em caixas, da “Quinta de Vale Meão”, de “Pêra Manca”, às de “Barca Velha”, tudo se conseguia encontrar na notável coleção de garrafas do precioso néctar de fazer inveja às “Caves de Baco”, se o deus da antiguidade tivesse uma adega. João faria, em maio deste ano, 83 anos e deixou-me uma saudade imensa.
Uma boa parte da coleção ainda hoje se encontra disponível na lista especial de vinhos do Stop do Bairro, agora deslocada para Campolide, mas mantendo a notabilidade da cozinha da Dona Rosa, a célebre e maravilhosa cozinheira (e ainda sócia) do restaurante.
É com a memória de um excelente espaço e de um maravilhoso ser humano que me despeço por hoje minha querida, recebe um abraço apertado, deste teu amigo,
Gil Saraiva