Carta à Berta: Os Camionistas Sem Natal
Olá Berta,
Agora que o Natal já lá vai e se aproxima a Passagem de Ano venho falar-te dos camionistas portugueses retidos em Inglaterra e que só queriam regressar a Portugal para passarem o Natal com a família. Só portugueses eram quase mil, mas o total de motoristas e acompanhantes retidos perto do eurotúnel e na zona dos ferryboats ultrapassavam as 15 mil almas, gente que foi tratada como marginal e escumalha de terceira categoria pelas autoridades britânicas.
Podem vir dizer para a comunicação social o que bem entenderem esses senhores da política. Mas o que se passou foi mais uma pouca-vergonha que ofende os direitos fundamentais do ser humano. Entre os camionistas, estava um, de nome Raúl, meu amigo de infância, casado, com três filhos (o João, de 9 anos, a Raquel, de 11, e o Fernando, de 13), que acabaram por não poder ver o pai no Natal.
Aliás, continuam milhares, e não são poucos, os que se mantém retidos em Inglaterra. No caso do meu amigo, sei que passou fome e sede. Só conseguiu acesso a água dois dias depois de a reserva que tinha consigo se ter acabado, e ele sabia de casos mais graves. Teve 5 dias a alimentar-se com um saco de pão de forma e uma marmelada que a esposa lhe tinha pedido para levar para casa. Era para ter chegado a Portugal no dia 23 e hoje, disse-me ele, ainda não sabe se conseguirá estar na Passagem de Ano de regresso ao lar. Será que ninguém olha para esta gente com um pouco de solidariedade? Se França e Inglaterra fecharam as fronteiras alguém devia ter tido a responsabilidade de tomar conta destas pessoas. Eles não são burros de carga. São indivíduos que merecem tanto respeito como qualquer outro. A impunidade destes atos roça o crime.
Esta malta trabalhadora não teve direito a alojamento, alimentos, nem à mais elementar água por dias a fio. Aliás, nem sequer teve direito a ser informada fosse do que fosse face à situação em que se encontravam e ainda se encontram mais de 70% dos que ali estavam, retidos e continuam sem solução previsível. Finalmente, ontem, já ouve distribuição de alimentos e água. Pelo que o meu amigo conseguiu saber por ordem do Governo Britânico. Mas e a nossa embaixada e as dos outros países? Ninguém faz nada? E quanto tempo vão ter de esperar mais? Nem condições da higiene mais básica existem por ali. Muitos são os que têm rapado um frio de morrer. Tudo isto é inqualificável.
Enfim, tudo isto é inadmissível, bárbaro e desumano. Nada, nem mesmo o Coronavírus justifica a maneira como estas 15 mil almas foram tratadas. E estamos nós no Natal… ai… amiga Berta, desculpa lá o desabafo, mas eu não sei ficar calado com estas coisas a passarem-se com o meu conhecimento. É não apenas revoltante como repugnante. Despede-se triste, com um beijo à distância, este teu amigo,
Gil Saraiva