Carta à Berta: O Submarino da Fortuna
Olá Berta,
Cá estou eu de novo a escrever. Acho que esta nossa correspondência se está a tornar um vício. Tenho que ter cuidado. Não gosto de estar dependente seja lá do que for. Chegam-me bem, infelizmente, os 2 comprimidos que, diariamente, tenho que ingerir. Todavia, sem eles, o risco de AVC torna-se bem mais ameaçador. Ah! Escusas de me vir falar nos cigarros, conheço perfeitamente os meus hábitos.
Contudo, a minha carta de hoje, tem a ver com isso mesmo, vícios, mais concretamente, o mercado e o vício das drogas, onde, em meu entender, a cocaína continua impávida e serena o seu reinado. Faz-me lembrar a Rainha de Inglaterra, aliás, numa análise superficial, não sei qual das 2 reina há mais tempo.
Não te vou descrever nesta carta os prós e os contras da droga, os perigos que acarreta, o problema social que dela advém e nem sequer vou falar de reabilitação ou mesmo dos toxicodependentes.
Podia abordar a temática, porém, tudo o que sei sobre o assunto é demasiado vago, muito pela rama, sem a profundidade necessária para estar para aqui a “botar postas de pescada”. Consigo fazê-lo, pelo menos numa ou outra vertente, se investigar a fundo o tema. Mas, por agora, não é uma daquelas coisas de que me agrade falar. Se um dia tiver de ser, será.
A coca, usando o nome mais habitual, para além de toda a sua parte trágica, muito bem documentada em inúmeros registos de todo o tipo, já nos deu livros intensos, filmes que se tornaram intemporais, músicas inesquecíveis e manifestações de criatividade, genialidade, representação, superação e resistência incríveis ao longo dos anos.
Eu não faço parte do grupo dos cínicos que não reconhece o papel dessa droga, entre outros, talvez, na superação alcançada por apresentadores, artistas, atores, músicos, pensadores, políticos e mesmo cientistas, sob o seu efeito. Casos há, em que, apenas através dela, o rasgo e o génio se revelam na sua plenitude.
Ora eu, não sendo propriamente um santo, até porque já fui adolescente e jovem, prefiro manter oculto, dentro de mim, um dom superlativo que hipoteticamente possua, do que ter de recorrer a esta, ou a qualquer outra droga, para o fazer emergir e se revelar ao mundo. Não há nada a fazer, são apenas opções de vida e cada um, à partida, faz as suas como bem entende. Eu fiz a minha.
Pronto, ponho-me para aqui a dar opiniões e acabo por deixar para trás o que realmente queria dizer. É sempre a mesma coisa. Desculpa lá, amiguinha, tu sabes que não o faço com maldade. Um pensamento puxa outro e, quando damos conta, o fio da meada está perdido num labirinto de frases e considerações. Vou tentar ser mais objetivo naquilo que, esta semana, me deixou perplexo.
Estava a ler as notícias do jornal Expresso online, quando me deparei com uma que, pelo insólito, me parecia tirada de um filme de James Bond. Até pensei que se aquilo fosse usado num livro de ficção, se calhar, era considerado irrealista, desproporcionado e demasiado fantasista. Contudo, ali estava, mais uma vez, a realidade a superar a ficção, de um modo absolutamente espetacular.
Espanha tinha acabado de apreender um submarino de 20 metros, um tamanho equivalente a 5 carros, tipo Seat Ibiza, alinhados uns atrás dos outros, ou 8 veículos como o Smart Fortwo, alinhados em bichinha pirilau. O submergível terá, aparentemente, ficado sem combustível, e a tripulação fê-lo encalhar e vir parcialmente à superfície, para se poder pôr em fuga. Dos 3 fugitivos apenas 2 foram apanhados e um terceiro continua a monte. A carga é, revelaria a investigação, um absurdo loteamento de 3 toneladas de cocaína de elevado grau de pureza.
A viagem parece ter começado algures na costa norte da América do Sul, ou perto, para as bandas do Golfo do México ou Caraíbas, sendo o fabrico do submarino, provavelmente, originário da Guiana Francesa.
Depois de consultar outras notícias, em diversos jornais online, confirmei que, basicamente, os relatos eram muito coincidentes, pelo que me limitei a compilar os dados apresentados para os poder descrever, o mais corretamente possível, nesta carta.
Ora, há nesta história várias coisas que me espantam e deixam perplexo. Em primeiro lugar, pelos registos descobertos, a viagem transatlântica era regular, ocorrendo de há vários anos a esta parte e estando na classificação das operações correntes e banais dos narcotraficantes.
Em segundo lugar, como é que alguém, seja quem for, que transporta 360 milhões de euros de mercadoria ilegal, clandestina, proibida e altamente penalizada pelos sistemas judiciais europeus, se esquece de abastecer? Como é possível ser-se idiota ao ponto de conduzir 6 milhões de doses de coca para o mercado europeu, a 60 euros a dose, correndo uma imensidade de riscos e não verificar o combustível? Parece impossível que, em operações desta envergadura, exista gente que, além de criminosa, é intrinsecamente estúpida. Mais uma vez a realidade ultrapassa a ficção.
Em terceiro lugar, tendo por base as fontes, podemos tentar extrapolar um cenário provável. Por exemplo, quanto representa este negócio, só por esta via, se o transporte se fizer sempre na mesma quantidade de coca, o que, a julgar pelas acomodações, parece muito plausível, e se a sua regularidade for, digamos sem exagerar, mensal e já decorrer há 7 anos, mais coisa menos coisa? Feitas as contas, neste quadro, que, quanto a mim, é bem superior aos meus cálculos, na realidade, estes meninos trouxeram para a Europa mais de 30 mil milhões de euros em droga. É de cortar a respiração.
Todavia, não me admiraria nada, se este submarino não for apenas um, mas parte de uma frota de 4 ou 5. Há droga mais do que suficiente, na origem, para que esta ideia seja real. Para além de ser menos provável que quem tem um negócio destes apenas tenha um, e só um, transporte deste tipo em funcionamento. Passando isto para dinheiro, que é o que mais campainhas faz soar, até porque a Europa consome anualmente imensamente mais coca do que isto, estamos a falar, em 7 anos, de montantes no valor de 150 mil milhões de euros, o suficiente para pagar, por 2 vezes, o dinheiro que Portugal pediu à Troika, após Sócrates.
Porra, Berta, já imaginaste bem? E andas tu a sonhar com o euromilhões, isto é que é um negócio de alto rendimento. Menos de um décimo disso teria dado para ter continuado com o Banco Espírito Santo a funcionar, sem inventar um banco mau, e sem ter de o vender ou ter lesados.
Mas se esta rede de narcotraficantes, que se sabe fazer escala em Portugal, estiver relacionada com a descoberta, 2 dias antes, pela Polícia Judiciária, nos arredores de Lisboa, num armazém de fruta, disfarçada em caixas de bananas, de mais uma tonelada e meia de coca quase pura (a qualidade parece muito semelhante à outra) que se apurou chegar por via marítima, em navios mercantes, então, não estamos a falar de um mero grande cartel, mas de um império que, num só ano, gera receitas suficientes para pagar, completamente, a dívida portuguesa.
Algo que nenhum “Robin dos Bosques” seria capaz de fazer, por mais milionários sem escrúpulos que roubasse em toda a sua vida.
Uma obra bem feita seria Portugal e Espanha, os portões europeus deste império do mal e do mel, conseguirem descobrir e confiscar o dinheiro, que estes parasitas da humanidade, têm algures depositado em aprazíveis paraísos fiscais. Isso sim, era algo que valia a pena. Infelizmente esta é a parte onde esta carta entra definitivamente no campo da ficção romântica.
Fica bem minha querida, despeço-me saudoso com um beijo. Este teu eterno amigo,
Gil Saraiva