Carta à Berta nº. 346: E Se Um Desconhecido Te Oferecer Flores?
Olá Berta,
Aqui vai mais uma das cartas que não te enviei em outubro de 2020 devido à pandemia. Ainda são 37 cartas que ficaram por enviar e que agora te remeto sempre com as devidas atualizações temporais.
Na época queria-te contar sobre o dia em que resolvi comprar uma dúzia rosas ali no Jardim da Parada a uma senhora que por ali costuma estar a vender flores. Simpaticamente a senhora ia-me oferecer um arranjo e eu agradeci mas disse que não queria. As rosas eram para oferecer às pessoas que fosse encontrando de preferência senhoras até brinquei com o anúncio dizendo: “Sabe… se um desconhecido lhe oferecer flores isso não é impulse é pancada mesmo.”
Ela riu-se para mim e disse-me: “veja lá, tenha cuidado com isso para não apanhar nenhuma lambada na cara”. A primeira rosa que ofereci foi a uma senhora de alguma idade que estava sentada de olhar perdido no lago dos patos olhando como quem vê mais além, muito para lá do que os olhos revelam.
Com um ar surpreendido indagou? “É para mim?” ao que eu respondi que sim, com um sorriso e de mão estendida. A mão tremeu-lhe ao estender o braço para receber a flor, depois juntou-a ao corpo e inclinou a cabeça para a cheirar: “É fresca e cheira a rosa, sabe menino a última vez que me ofereceram flores foi o meu falecido há 20 anos pelos nossos 50 anos de casados”.
E ficou assim de mão trémula, com a rosa encostada ao peito, perdida no tempo, das memórias passadas. Eu desejei-lhe um resto de bom dia e ela acrescentou, sem me ter ouvido, de lágrima a fugir-lhe pelo canto do olho esquerdo: “Casei nova, aos 18 anos, hoje tenho 85 e estive casada 52 anos, mas ele foi-se embora cedo, deixou-me sozinha, o tabaco levou-o em 3 meses. Obrigado pela flor, o menino tem coração, que Deus o proteja!”
Acabei por ficar ali à conversa mais uma meia hora. A senhora vivia sozinha, com 85 anos, num rés-do-chão da Rua Ferreira Borges. Tivera 3 filhos que já não a visitavam há mais de 5 anos. Queriam que ela vendesse a casa de família onde morava e que fosse para um lar. Ela obviamente não concordara e eles deixaram de aparecer.
Eles tinham tempo para a vender quando ela se juntasse ao marido, ele costumava ir para o jardim, jogar cartas e ela ficava ali pelos bancos à conversa com as amigas até ele aparecer e voltarem para casa. Gostava muito daquele jardim.
Mas as amigas tinham desaparecido, uma a uma, duas tinham sido despejadas da casa onde viviam há 40 anos e tinham regressado à aldeia perto de Coimbra a pedido do irmão que as queria lá com ele. Despejadas pelos senhorios, uma pouca vergonha. Se não tivessem para onde ir iam para onde? Para a rua? Com a idade delas a viver ao frio?
Aquilo era indecente. Não se fazem maldades daquelas a pessoas de idade. Mas pronto lá foram, as outras tinham morrido uma atrás da outra, e já só restava ela.
Distribui as rosas num instante, as raparigas mais novas olhavam para mim com alguma desconfiança, mas acabavam por agradecer e sorrir. Uma senhora pediu-me duas para colocar num solitário em casa e eu cheguei a casa com três para oferecer à minha esposa.
Foi um dia muito giro e diferente e só uma mulher me disse que não queria flores e que deviam estar drogadas. Acrescentando de seguida que o que eu queria era arranjar uma oportunidade para a roubar. Há gente muito desconfiada nesta vida e algumas delas com razão. Disse que estava enganada e segui o meu caminho.
Tenho que voltar a fazer isto agora que me lembrei. Foi um dia agradável aquele e cheio de simpatia e gente cordata. Por hoje é tudo, minha querida amiga, deixo-te uma rosa do coração embrulhada num beijo saudoso de amizade, este teu amigo de sempre
Gil Saraiva