Carta à Berta nº. 363: Emigrantes - Parte I - Antigamente era assim...
Olá Berta,
A um e dois de outubro de 2020, ainda durante o tempo em que estiveste incomunicável, minha querida, escrevi-te duas cartas seguidas, parte um e dois sobre imigração e emigração, temas que hoje em dia voltam a estar na moda. Essas cartas nunca chegaram até ti, por isso agora volto a enviar-tas, com a devida atualização, todavia, mantendo a ordem cronológica em que foram originariamente escritas, tentando manter-me fiel ao que já tinha escrito.
Portugal, durante grande parte da segunda metade do século XX foi um país de emigrantes. Era difícil viver condignamente, doce amiga, numa ditadura que se esforçava por manter o povo inculto, pobre, iletrado, sem grandes condições de saúde, com um muito limitado sistema de saneamento básico, num país onde as mulheres eram propriedade masculina, não podiam votar, nem podiam viajar sem autorização escrita dos pais ou dos maridos.
Na verdade, minha cara, nem sequer podiam ter opinião ou voto em matéria de propriedade, nem mesmo podiam votar, pese embora o facto de as eleições serem uma farsa até abril de 1974.
Lutando para sobreviver, no seio de um regime fascista o povo optou por emigrar. Em 1961, quando eu nasci, residiam em Portugal 9 milhões de pessoas. Dessas, Bertinha, 3 milhões não tinham a quarta classe.
Em apenas 9 anos, 500 mil portugueses emigraram. Ao chegarmos à década de 70, amiguinha, eramos apenas 8,5 milhões de residentes. Muita gente mudou de ares para o Brasil, Venezuela, Angola, Moçambique, Estados Unidos da América, e, em geral, para toda a Europa, com grande relevância da França, Suíça, Alemanha, Holanda e Luxemburgo, como destinos de eleição.
Os emigrantes a residir em Portugal rondavam os 27 mil estrangeiros e em 1970 eram já tão poucos que desapareceram das estatísticas. Uma vez no estrangeiro, os nossos emigrantes ocuparam-se, maioritariamente, dos trabalhos não qualificados, dos serviços menores ou da agricultura. O preconceito estrangeiro para com os portugueses era dominante e eramos considerados um povo de segunda categoria, minha querida.
A falta de cultura era deveras gritante e apenas 250 mil pessoas tinham o curso dos liceus completo e somente umas 50 mil possuíam uma licenciatura. Existiam 2,7 milhões de habitações, mas apenas 32% delas tinham banheira ou duche. Hoje existem quase 6 milhões e apenas 115 mil têm falta dessas condições, sendo a maioria habitações ilegais e improvisadas. A vida era dura no nosso país para os portugueses, minha cara confidente.
Hoje, amiga, calcula-se que Portugal ultrapasse os 3 milhões de emigrantes. Embora atualmente Portugal exporte, contrariamente ao passado, uma população qualificada.
A explicação para serem tantos emigrantes é simples. Quem saiu instalou-se e criou raízes lá fora, poucos decidiram voltar porque ganham lá fora quase o dobro, e nalguns casos mais, pelo mesmo serviço, do que aqui. Ora, é fácil de entender, minha querida, porque se dizia que o povo português não era racista, nem xenófobo, nem nada dessas coisas agora tão em voga. Eramos nós quem vivia na mó de baixo e afinal, nem tínhamos imigração que nos incomodasse fosse porque razão fosse.
A primeira vez em que o povo português se sentiu seriamente invadido e em que o preconceito pareceu existir como um facto problemático foi, amiguinha, quando, após a independência das nossas ex-colónias, recebemos, em poucos anos, meio milhão de retornados.
A vida em Portugal melhorou muito nos últimos 50 anos. Mas o povo tem memória curta. Bastam meia dúzia de anos para darem como direito absoluto o que levaram décadas a conquistar. A educação e um outro nível de vida também os ajudou a ver a realidade de outra maneira e a exigirem mais. É normal. Todavia, agora, a história é outra porque a vida é assim... falarei sobre ela já na próxima carta, na segunda parte deste tema. Por hoje, Berta, recebe um beijo de despedida deste teu eterno amigo,
Gil Saraiva