Carta à Berta n.º 588: Assédio e Abusos Sexuais no seio da ONU
Olá Berta,
As notícias começaram a surgir com mais força na imprensa escrita em Portugal, em meados de março passado, algures nas páginas internacionais dos diários e semanários e chegaram, de uma forma muito mais clara, através de um documentário que recentemente passou na SIC num horário depois das 24 horas. Para mim, caíram que nem bombas, e eu fiquei a aguardar pelos resultados.
Os meses passaram e, até hoje, nada aconteceu. Deves estar a tentar adivinhar do que estou eu a falar, certo, amiga Berta? Estou a falar de centenas de denúncias de abusos sexuais no seio da ONU, isso mesmo, a Organização das Nações Unidas e de muitas das suas derivadas como, por exemplo, a FAO, a UNISEF, a Organização Mundial de Saúde e muitas outras, tantas que até assusta.
Pelo que li nos jornais e vi e ouvi no documentário que passou na SIC e na BBC, minha querida, fiquei a saber que os todos os funcionários seniores e os altos quadros destas organizações (e são uns milhares) têm imunidade diplomática total, a nível mundial, de todas as leis nacionais e não podem ser julgados em qualquer que seja o país, pelos seus atos, e isto abrange os Estados Unidos da América e todos os outros países, sejam eles a Síria ou a República Democrática do Congo. Se cometerem um crime ou são acusados no seio da ONU e a pena é apenas o seu despedimento, ou nada acontece. Até hoje, pelo que consegui averiguar, nada aconteceu mesmo.
E não penses, cara Berta, que o assédio e o abuso sexual no seio destas organizações são meia dúzia de casos pontuais. Nada disso, só nos últimos quatro anos são centenas, de forma repetida, sistemática e diária. Há denúncias que falam, inclusivamente, de violações de crianças, em algumas das missões da ONU ou da UNISEF, entre outros, em países africanos e asiáticos.
António Guterres, enquanto Secretário Geral da ONU, veio inclusivamente dizer publicamente que passaria a haver uma política de tolerância zero para estas práticas no interior da ONU ou das organizações que dela são derivadas, como é o caso da UNISSEF, do Alto Secretariado para as Migrações ou a Organização Mundial de Saúde, entre outras.
Mas foram apenas palavras. Nenhum acusado foi julgado, fosse em que país fosse, nem mesmo pelas próprias organizações e, a grande maioria das vítimas que apresentaram queixa, acabou por ser liminarmente despedida.
Estamos a falar de homens que assediaram e violaram sexualmente, colegas de trabalho do sexo feminino, minha amiga, mas também outras mulheres e crianças que deviam estar sob a alçada e proteção da própria ONU ou das organizações que dela derivam.
A impunidade e a corrupção semeiam o pânico dentro da ONU, porém, talvez porque até ao momento, que eu saiba, as denúncias surgem apenas da parte de mulheres e crianças ainda nada foi feito para estancar tamanha ferida.
Segundo uma das vítimas, que denunciou estas práticas, ela chegou mesmo a falar com António Guterres, que lhe respondeu que tinha conhecimento de vários casos, mas que ele, diretamente, nada podia fazer. A coisa tinha que passar pelo organismo competente. Ora, cara Berta, esse organismo prefere calar as vítimas a culpar um (ou mais) funcionário sénior ou um alto cargo. Pior ainda, o organismo em causa não tem qualquer poder judicial, seja ele qual for, não podendo julgar, mesmo que quisesse, os indivíduos acusados de assédio ou abuso sexual.
Uma imunidade criada para que as organizações derivadas da ONU e ela própria pudessem agir sem ingerência dos países virou arma secreta de impunidade de umas centenas de predadores sexuais instalados no interior destas estruturas. É uma pescadinha de rabo-na-boca.
Já eu, minha querida, fico enjoado com tanta podridão. Se quiseres ver mais sobre o assunto procura na internet pelo tema, encontrarás centenas de notícias e relatos de denúncias, até na imprensa portuguesa. Assédio e abuso sexual na ONU, começa por aí que rapidamente chegarás ao restante. Despede-se com um beijo, triste com o nosso mundo atual, este teu amigo,
Gil Saraiva