Carta à Berta nº. 215: Memórias de Haragano - A Revolução Começa na Cama - Parte XIII
Olá Berta,
Um bom-dia para ti, sejam lá as horas que forem, no momento em que estiveres a ler esta carta. Hoje vais encontrar nas memórias a referência a uma escritora que já nos deixou faz tempo. Contudo, trata-se de alguém que tem a minha admiração e, por isso mesmo, falo dela. Seguindo para o texto, deixo-te com a sua leitura.
Memórias de Haragano: A Revolução Começa na Cama – Parte XIII
“A propósito de escrever…
<<Escrevo porque sou uma desesperada e estou cansada, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias>>
Clarice Lispector
Ao ler esta frase de Clarice fico quase tentado a concordar. Mas, e não sei porquê tem sempre de haver um mas, julgo que chegarei ao fim sem realmente a aprovar na totalidade. Porém, se me colocar no lugar de quem escreve, sou capaz de entender. No caso escrever para a autora era tão vital como para qualquer humano beber água. Morreríamos todos sem o precioso líquido. A carência do ato de escrever seria igualmente fatal para Clarice Lispector.
A minha vida faz-me ver outra realidade que, por força do que tenho vivido, me leva a ideias um pouco diferentes. Tenho que concordar que viajar sem um bloco e uma esferográfica é inimaginável para mim e que, na maioria das vezes, não me lembro do champô ou da máquina de barbear. Já me aconteceu inclusivamente sair de casa sem o bilhete de avião e o passaporte, mas muito ciente de trazer comigo tudo o que era preciso, apenas por sentir na bolsa ou no bolso o volume da caneta e do bloco.
Escrever, para mim, é uma de duas coisas: um processo de arquivo ou uma aspirina para a imaginação. Antes de descrever estas situações tenho que discordar da ideia generalizada de que <<quem escreve, escreve para si próprio>>. Ou seja, mesmo os intimistas, os cultivadores de diários muito privados, ou outros <<secretistas>> da palavra passada à escrita, sentem, nem que seja lá no fundo mais refundido do seu fundo, o desejo de ser lidos (para já não dizer apreciados pelo que escrevem), pode até ser, e é o mais normal, mas depois, por outro lado, vendo o meu caso, eu escrevo para arquivar ideias antes que delas me esqueça. Gosto de ser lido? Gosto, principalmente se for apreciado, mas não é o que mais me move. Porém detestaria que após a minha partida deste mundo alguém chegasse ao computador e apagasse pura e simplesmente todos os livros, poemas, pensamentos, crónicas e textos que já escrevi. Odiaria isso realmente. “
É com esta tenebrosa ideia de um dia ser apagado que me despeço por hoje minha amiga. Recebe o virtual beijo deste teu menos novo amigo,
Gil Saraiva