Carta à Berta nº. 279: Livro - O diário Secreto do Senhor da Bruma - II - Abordagens Sobre a Burrice (continuação - II - 4)
Olá Berta,
Se bem que eu aborde, ao longo deste capítulo do “Diário Secreto do Senhor da Bruma” a ideia de que nem sempre o burro é tão burro como parece ou a sua oculta sagacidade em se fazer mais burro do que realmente é, a verdade é que a humanidade continua a ter burros e bestas quadradas em demasia face aos restantes mortais. Um tio meu chamava essa gente de antas, sem qualquer relacionamento clubístico evidentemente, referindo-se unicamente à pobre da anta propriamente dita.
O meu falecido sogro, por via do meu primeiro casamento, um pintor famoso de nome Isolino Vaz, apelidado como sendo o pai do neorrealismo português na pintura, tinha uma outra expressão para apelidar as pessoas de visão curta. Chamava-lhes os acéfalos, sempre que tinha de evitar a linguagem vernácula, muito usada para os lados da invicta cidade do Porto. O que importa mesmo é que a burrice é um tema que vem há muito preocupando o pensamento nacional e os teóricos da análise do conhecimento dos povos. Voltemos, entretanto, à nossa narrativa sobre a burrice:
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II
Abordagens sobre a Burrice (continuação - II - 4)
Fevereiro, dia 28:
Avaliação de Provérbios sobre o equidno:
A expressão “Burra de sorte é felizarda sem saber porquê” alegadamente não foi criada para desculpar o gosto de Maria Vieira pelo CHEGA. Claro que há quem pense que a senhora é burra e que por isso tem a sorte de não saber a porcaria em que se meteu. Com efeito, é contraditório que alguém possa ser felizardo e não saber o porquê neste contexto. No meu entender a sociedade confunde o pequeno porte da Maria Vieira com a proporcional dimensão do seu intelecto. Dito isto, acho mais lógico pensar que a atriz não é burra apenas proporcionalmente curta de ideias.
Fevereiro, dia 29:
A propósito do ditado “A burro morto cevada ao rabo”, digam lá o que disserem sobre este dito, ele não foi certamente inventado por membros do movimento LGBT Limitada. Estes, levam muito a sério as suas opções e não usam o traseiro para armazenar um cereal. Ainda por cima num animal que virou carcaça. A frase parece um ato de sodomia irracional e seria mais compreensível se tivesse sido inventada por um qualquer praticante de uma seita mórbida ou de algum culto satânico. Eu, só para me citar a mim, nunca me lembraria de traduzir o provérbio “casa roubada, trancas à porta” por algo sequer aproximado ao rabo do dito jumento. Mas há gostos assim…
Março, dia 1:
“A burro que muito anda, nunca falta quem no tanja”: - ou quem lhe toque, descobri eu depois de muito investigar. Na verdade, quando mais expostos estamos, mais riscos corremos. No entanto, podemos reparar que, na composição deste ditado, o povo esforçou-se por arranjar uma rima de forma quase contrafeita e, mesmo assim, a que descobriu parece forçada. Com efeito, até no português arcaico é difícil encontrar o verbo tanger, conjugado na primeira ou terceira pessoa a obrigar à utilização da palavra “tanja”. Talvez o aparecimento da palavra na escrita tenha origens nas tangerinas do Algarve ou onde é mais fácil arranjar à tanja outros familiares na rima. Disso é exemplo a laranja, a marmanja, e a toranja. Enfim, é o que se arranja.
Março, dia 2:
Ao compararmos os provérbios “a burro velho, capim novo” com “a burro velho, pouco verde” fica fácil detetar o antagonismo dos significados. Mas julgo que isto terá mais a ver com as medidas económicas em voga por altura do nascimento de cada um dos ditos. Assim, numa altura em que é preciso tirar proveito de todos os recursos disponíveis, o conselho implícito é dar força e energia ao burro envelhecido, através de alimento fresco e saudável, para que ele possa continuar a dar um bom rendimento ao seu dono. Já numa ocasião de poupança e aforro o conselho inverte-se, recomendando que se deixe o burro ir para o abate ou para a reforma, por força a conseguir maximizar os recursos canalizando a alimentação para os jovens e possantes burros.
Março, dia 3:
O uso de ambos os casos, a não ser se usado por elementos do partido PAN, ao comparar trabalhadores com animais de carga de inteligência limitada, reflete bem a ideia que o nosso tecido empresarial tem sobre a classe operária às suas ordens. Perante estas observações considero pertinente pensar se a introdução de certos provérbios, na conversação popular, não seria uma forma oculta, e revolucionária, de protestar contra a negação de direitos dos trabalhadores durante o regime de Salazar.
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O outro dia ouvi, no Jornal das 8, na TVI, uma fanática, frenética deputada do PAN, que, sem travão na língua, defendia o fim dos apoios do Estado a todo e qualquer evento relacionado com a lide do toiro, a tauromaquia e os toureiros. Porquê? Por serem práticas que obrigam ao sofrimento do animal. Do outro lado, estava o jornalista Miguel Sousa Tavares, a contrapor, defendendo os apoios. Embora eu não seja um apreciador tauromáquico, gosto das pegas e da audácia dos forcados, de mãos na anca, armados em fanfarrões tolos e irreverentes, de barrete na cabeça, em frente ao animal. Resolvi escutar os argumentos dos 2 lados por forma a tentar escolher por quem tomar partido no fim das defesas e ataques de ambas as posições, apresentadas pelas argumentações e explicações de cada um.
No final, não tendo sido tendencioso, somente a argumentação do Miguel fazia sentido. Se queremos acabar com a tauromaquia em Portugal, porque o touro sofre, temos de o fazer num contexto mais global e terminar com todas as práticas que façam sofrer os animais. Mas todas, em simultâneo, e sem cinismos.
Não se acaba com a tourada e se deixa o peru a fugir, já sem cabeça, depois de embebedado, pelo pátio da quinta, por altura do Natal. Não se permite a matança do porco, que é feita bem devagarinho e com requintes de malvadez, não se autoriza a criação de animais em aviários onde os bichos sofrem desde que nascem até que morrem, tiram-se os animais, usados como cobaias, dos laboratórios, sejam eles salamandras, ratos ou políticos.
Também não se admite a continuação de jardins zoológicos e mais um cem número de práticas que continuam, todos os dias, a todas as horas, a causar sofrimento aos animais. Não esquecendo o burro, que, sem querer levantar qualquer suspeita de xenofobia ou racismo, passava bem melhor sem o cigano.
Mais uma vez alonguei-me nos argumentos. Fico-me por aqui, querida amiga Berta, com uma despedida acompanhada de beijinho deste teu amigo de ontem, hoje e amanhã, sempre ao dispor,
Gil Saraiva