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Alegadamente

Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente correto.

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Carta à Berta nº. 191: As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz em Tempos de Covid - Parte VII / VII - Os 3 Mosqueteiros - O COVID

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Olá Berta,

Chegamos ao fim. Terminam hoje As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz. Já te falei em detalhe dos 3 mosqueteiros e de mim, o D’Artagnan da história. O papel de Porthos só pode pertencer ao Jacinto, não por este ser gordo, que não era, mas pela barriga dilatada pela operação que a tornou proeminente e pelo feitio complacente e bem-disposto. O dinamismo, o porte mais diminuto e a energia contagiante de Athos assentam, que nem uma luva, em Quim, sempre pronto a desenrascar o próximo. O papel de Aramis, um verdadeiro espadachim e cavalheiro, apenas tem paralelo com o elegante Libânio, um aventureiro que por muito que adore a esposa, não deixa de ter quem lhe cuide do instrumento, uma vez que a idade e algumas maleitas já lhe afastaram a companheira de certas práticas.

Libânio foi, nos seus tempos dourados, um triunfante vendedor, representante de marcas de prestígio, um caixeiro viajante, qual cavaleiro andante que sem medo, nem descanso percorreu o país do litoral à raia de Espanha, inspirando compradores, consumidores e glorificando aqueles que representou. Ganhava muito dinheiro, contou-me um dia, mas as patuscadas regulares e a sua vasta orquestra de sopro também geravam muita despesa. Não se arrependia de nada. Alcançara uma boa reforma e dera sustento e educação às 2 filhas e conforto e carinho à esposa. Sentia-se um homem realizado.

Regressando a Athos, ou melhor dizendo a Quim, há um episódio que não posso deixar de referir. Na véspera da sua já anunciada alta, o mosqueteiro, que sempre se apresentou escanhoado e com o melhor aspeto que conseguia, ensombrado pelo seu recente problema dentário, detetou que as suas lâminas de barbear tinham acabado. Não era isso que o impediria de fazer a barba e lá conseguiu rapidamente que uma das auxiliares de saúde lhe aparecesse com uma fornecida pela unidade hospitalar.

Foi fazer a barba e voltou meia hora depois, com uma toalha na cara, destinada a reter o sangue que lhe escorria dos 11 pequenos cortes que ostentava no rosto. O pacifico Porthos, Jacinto, só lhe perguntava porque raio não tinha ele parado de fazer a barba ao primeiro corte ao que o outro respondia que não ia deixar a barba meio por fazer.

Por causa dos comprimidos para liquefazer o sangue, este não parou de correr durante todo o dia e só quase à noite é que uma enfermeira o conseguiu convencer a fazer um penso enorme, branco, que lhe tapava a cara toda de uma patilha à outra, incluindo a zona do bigode. Foi para alta com ar de Pai Natal. O sangue, esse, acabou por estancar apenas ao terceiro dia, acabando com aquelas 11 chagas de Cristo.

Ao primeiro telefonema que lhe fiz depois da alta, Quim, informou-me logo que já tinha desencantado um dentista e que já reiniciara, finalmente, a arranjo dos dentes. Ele lá o convencera com o seu desenrascanço a abrir o consultório.

Nada do que, até aqui, te tenho contado conseguia abalar o espírito de boa disposição que se gerara naquela enfermaria. Porém situações houve em que nos sentimos profundamente abalados, preocupados e quase abandonados à nossa sorte ou falta dela. Um dia de manhã, em vez do pequeno almoço habitual, descobrimos que todos os médicos, enfermeiros, auxiliares e até o pessoal da limpeza tinham sumido da cirurgia geral. O quinto piso ficou vazio de funcionários.

A razão, descobriu o pacifico Jacinto, ainda hoje não sei como, tinha a ver com 4 casos positivos de Covid. Um, na enfermaria em frente à nossa, num doente que, entretanto, fora retirado, mais 2 casos no corredor e uma das enfermeiras de serviço. Para meu azar, isto calhou no dia em que tive mais dores e que cheguei a julgar que, somando as 2 coisas, não sobreviveria. Mas o pânico foi generalizado. Ficámos horas sem saber de nada. Depois, bem, depois lá apareceram umas personagens de ficção científica a desinfetar tudo, menos o nosso quarto, vestidos à astronautas pandémicos dos filmes de terror, sempre sem que ninguém nos informasse do que se estava a passar.

Finalmente, a meio da tarde começaram a chegar novos doentes para as camas vazias de alguns dos quartos e fomos visitados por todo o staff do sexto piso. Informaram-nos que o nosso pessoal normal tinha sido posto em quarentena e que eles tinham sido transferidos, com os seus doentes, para o nosso andar. Mas nem uma vez se referiram à Covid.

Achei tudo aquilo, e a forma como as coisas se tinham passado, marcadamente desrespeitoso dos 13 a 15 doentes que foram abandonados durante horas, sem uma explicação sequer. Explicação essa que nunca nos foi dada até à nossa saída do hospital. Quanto ao almoço desse dia, acabou por chegar a meio da tarde. Era mais um desenrasque que um almoço e foi-nos entregue (aos que comiam, é claro) quase como se nos tivessem a fazer um especial favor. Foi só nessa altura que descobri que tinha passado tão mal por falta de soro, antibiótico e analgésicos. Enfim, esse foi um daqueles dias para esquecer.

Houve um segundo dia que gerou algum susto. Uma manhã, ao acordarmos, descobrimos que tínhamos à porta 2 guardas. Tratavam-se de 2 cavalões, daqueles que às vezes vemos nos filmes à porta das discotecas, com cara de poucos amigos. Só mais tarde descobrimos que estavam ali porque um cidadão cabo-verdiano, tinha sido operado de urgência a uma facada no abdómen e estava agora internado no quarto em frente ao nosso. Estivemos guardados por guardas prisionais, dia e noite, por 6 dias consecutivos. Nunca nenhum pessoal do hospital nos deu qualquer explicação. Não fosse o bom do Jacinto, que sempre conseguia informação, ainda hoje estaríamos a especular sobre o que se passara. O paciente ferido, conseguimos vê-lo mais tarde, não ficava nada atrás dos monstruosos e musculados guardas do nosso serviço prisional.

Conforme podes constatar, querida Berta, os meus dias de internamento foram tão intensos e ocupados que nem consegui ler uma página que fosse, do livro policial de Rex Stout, que tinha levado comigo para o hospital. O grande mestre da literatura policial iria ter de esperar por melhores dias para ser lido com atenção.

As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz, ficam-se por aqui. Havia mais o que contar, mas seria prolongar, talvez em demasia, um assunto que, de bom, apenas me trouxe a amizade dos 3 mosqueteiros. Como despedida, recebe um beijo deste teu amigo de hoje e de toda a eternidade,

Gil Saraiva

 

 

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