Carta à Berta nº. 186: As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz em Tempos de Covid - Parte II / VII - A "Dieta Zero"
Olá Berta,
Quem tratou do meu internamento hospitalar no Egas Moniz foram os bombeiros, os mesmos que me tinham feito chegar até ali. Eu, pelo meu lado, esperei, na maca dos soldados da paz, agonizante, que toda a burocracia terminasse e, só no quinto andar, é que descobri ter sido levado para a Cirurgia Geral, onde cuidadosamente me mudaram da maca para uma cama, num quarto para 4 pacientes. O meu número de leito era o 27 e, por estar no quinto piso, passei a ser o internado 527. Um número que, vá-se lá saber porquê, muito me agradou, talvez porque a soma dos 2 primeiros resulta no terceiro, contudo, não sei porque gostei. O quarto situava-se quase no fim do corredor, do lado esquerdo de quem chega, mesmo antes da sala de topo, uma área reservada aos médicos.
Se estava, desde o Hospital São Francisco Xavier, em dieta zero, ou seja, a pão e água, porém, sem o pão e sem a água, assim continuei, ligado a soro e com doses intravenosas de antibiótico, anti-inflamatório e dois tipos de analgésicos, sendo um o Paracetamol e o outro o Nolotil. Um verdadeiro manjar dos deuses, se me é permitido dizer. O meu problema, um monte de berlindes abafadores, que, inadvertidamente, ocuparam a minha vesícula e resolveram inflamá-la e, por simpatia, infetar-me o fígado, devido a uma localização não recomendável, não podia ser operada durante a crise do Coronavírus.
Em resumo, era preciso aplacar-me as dores lancinantes, debelar a infeção e, depois destas duas fases passadas, enviar-me para casa, com uma dieta zero em álcool e gorduras, até ao dia em que a operação à vesícula seja viável. Algures perto das Calendas Gregas.
Neste meu segundo dia de internamento, se bem que já noutro hospital, fiquei a saber que, o teste de Covid-19 que me tinha sido feito na véspera se destinara a viabilizar, ou não, a minha transferência para o Egas Moniz, um hospital categorizado como Covid negativo, ou seja, destinado a pacientes sem Covid, enquanto o anterior, o São Francisco Xavier, era um centro Covid positivo, por possuir uma ala totalmente dedicada a casos de pacientes infetados com o vírus. Mais tarde, viria a descobrir, por mero acaso, que também o Egas Moniz tinha um edifício com casos Covid, mas que estavam em fase de transferência, embora sem data certa. Coisas da burocracia.
Vistas bem as coisas, a verdade é que apenas o edifício central do Hospital Egas Moniz era não Covid. Contudo, fez-me confusão constatar que, pelo menos o pessoal médico, servia os 2 hospitais e ainda o Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, por todos eles pertencerem ao mesmo Centro Hospitalar, o de Lisboa Ocidental. Sendo que Santa Cruz e São Francisco Xavier tinham ambos centros de despistagem Covid-19. Concluí que os médicos e a DGS deviam saber o mesmo que eu e que, portanto, tudo estava controlado.
Não é altura para sorrires ou rires, amiga Berta. É imperativo termos confiança em quem trata de nós. Contudo, vou-te confessar uma coisa sem importância, detesto o eufemismo “dieta zero” aplicado a quem fica privado de comer ou beber. Que raio de dieta é essa? Se é zero é porque não existe, certo? Mais valia colocarem-lhe o nome de “fome hospitalar”. Era mais justo e mais apropriado, ou “papa-cheiro”, que é principalmente marcante quando o internado, da cama da frente, abre um almoço de carne de lombo assada com puré de batata.
Por hoje, fico-me por aqui, falar em comida, não é dos melhores temas para um sujeito em dieta zero. Amanhã continuo As Aventuras de um Vagabundo no Hospital Egas Moniz. Recebe, deste teu grande amigo, um beijo, e até amanhã,
Gil Saraiva