Carta à Berta: A Minha Rua no Bairro de Campo de Ourique: O Meu Regresso... - Parte I
Olá Berta,
Minha muito querida amiga, estou de volta. Regressei a casa ontem, ao final do dia 14 de abril, finalmente. Retornei ao meu doce lar, na Rua Francisco Metrass, no meu amado Bairro de Campo de Ourique. Podes achar banal e pensar que voltar ao bairro após 12 dias de ausência é algo de pouco relevo e de somenos importância, mas estás totalmente equivocada.
Chegar aqui, para mim, é muito mais do que um simples retorno. É um regresso ao ninho, à segurança deste planalto feito de gente que me é querida, de pessoas que se importam com o vizinho do lado e que estiveram a torcer por mim, como se eu fosse seu familiar chegado. Sim, sim, não te iludas, aqui existe solidariedade, carinho, empatia, amizade e preocupação genuína pelo próximo.
Em Campo de Ourique também vivem os novos habitantes pomposos, desde que o bairro virou moda. É verdade, mas desses, mesmo desses, mais de metade já foi infetada beneficamente pelo espírito corrente. Os outros, salvo sempre as honrosas exceções dos cara-de-pau, também acabarão por ceder aos usos e costumes da minha aldeia, tão minha como de todos os que aqui habitam ou habitaram num passado mais ou menos remoto, mas para quem o sentimento de saudade não esmorece ou se perde na memória dos tempos.
Enfim, voltei, porém, não regressei curado. Dias haverá em que não terei condições de te escrever e por isso peço previamente todas as minhas antecipadas desculpas. Ter pedras a passear pela vesícula é como ter comigo, permanentemente, um cão com trela a morder-me o estômago, por baixo do plumão direito. Às vezes o cão abana a cabeça, como quem desafia o dono a fazê-lo largar o osso. Nessas alturas a dor é lancinante e eu mal consigo ver, quanto mais escrever. Não voltei operado e a culpa é do Covid, mas amanhã explico porquê.
Contudo, existirão outras ocasiões em que, graças aos anti-inflamatórios, antibióticos e analgésicos, o cão ou dorme ou apenas morde de leve o osso, ou ainda somente se passeia preso pela trela. São estes os momentos em que te redigirei as cartas referentes aos dias que fiquei sem te escrever. Pela descrição de cada carta entenderás, pela data, a que dia me refiro.
Conjuntamente, irei mandando as cartas referentes aos dias atuais, esperando que tenhas paciência de leres mais do que uma carta por dia. Não leves, por favor, minha amiga, a mal o meu uso de algumas piadas, se bem que nem todas terão graça, de ironia ou sarcasmo, mas eu sou mesmo assim. Até sobre o que me acontece nunca consigo deixar de utilizar o humor como arma do meu teimoso otimismo. Em resumo, voltei ferido de asa, mas com uma tremenda vontade de voar. A ti, minha amiga, o meu obrigado pela amizade que sempre mantiveste viva.
Na carta de amanhã explicar-te-ei porque não voltei curado. Mas temos tempo, se continuares disposta a ler-me e a escutar as vivências e observações deste teu amigo, despeço-me com um terno beijo,
Gil Saraiva