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Alegadamente

Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente correto.

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Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 52

A Felina - 52.jpgNo caminho, a pensar que era bom não fazer nada quando não lhe apetecia, sentiu-se uma privilegiada Em Portugal, haveria muito pouca gente a poder agir assim. Enquanto conduzia lembrou-se que não pedira os três símbolos do Jaguar no carro. A cabeça em letras pretas e cromada na grelha, o animal em relevo lateral cromado nas traseiras e o jaguar cromado em três dimensões, a saltar, no capô.

Ligou para a Carclasse e avisou o Diretor Comercial. Dois deles já vinham de origem, disso ela podia estar descansada, quanto ao do capô eles tinham em stock e iram coloca-lo com muita honra. Ela que estivesse descansada, nem teria de pagar esse acrescento. A Carclasse tinha todo o prazer em oferecê-lo. Se ela quisesse até podia instalar o dispositivo que permitia a recolha do símbolo do capô, para o seu interior, evitando roubos. Eles tinham uma grande equipa pronta para trabalhar assim que as peças chegassem, não seria esse o problema, nem o atraso. Íris, agradeceu simpaticamente e aceitou a sugestão do processo antirroubo.

Ainda no trajeto, a rapariga ligou para a sua oficina de confiança, mais um daqueles a quem ajudara no passado, e perguntou ao dono se era possível mudar os emblemas traseiro e da grelha de um jaguar através de um qualquer tipo de chapa rotativa comandada de dentro do carro, num ela queria que se lesse a palavra jaguar e ativando o botão que este fosse trocado para um logo sem letras. O homem disse-lhe que sim, levava para aí uma semana, mas ficava um trabalho perfeito. Íris agradeceu.

Finalmente, estava a chegar à quinta. Passou o portão, vestiu-se de Felina, depois de estacionar na berma, logo a seguir à primeira curva do lado esquerdo da estrada e já virada em sentido contrário. Conferiu se não via ninguém, deu uma corrida até à sua árvore de eleição e chegou ao cimo do muro do terreno do solar.

Um movimento no interior obrigou-a a esconder-se na árvore que acabara de trepar. Em cima do muro podiam vê-la. Viu dois homens em direção a uma escada que estava encostada ao muro para lá do portão. Ambos tinham rostos fechados e cabelo cortado a pente um. Pareciam ser gente de Leste. Não entendia tudo o que diziam, mas tinha a certeza que falavam russo.

A língua russa não era uma das especialidades de Íris. Entendia o suficiente para compreender o significado de uma frase, mas não tinha domínio da língua para a falar, pelo menos fluentemente. Várias vezes entendeu o nome Kalinka, mas não o contexto. Aquilo era o nome de uma famosa canção russa, mas não lhe parecia haver enquadramento no contexto das frases. Também não entendia o que fazia dois russos, de escada às costas ali dentro da quinta. Tinha que entender o que se passava.

O segundo homem a subir puxou, com a ajuda do primeiro, a escada para cima e colocou-a do lado de fora do muro. Foi aí que ela reparou no Skoda Octavia Break RS 2.0TDI, de cor branca, do outro lado da estrada. Aquilo era carro para ter custado mais de cinquenta mil euros até porque a matrícula era recente. Vestiam sem gosto, mas eram dois tipos secos e altos, de estilo militar. Toda aquela envolvência era estranha, muito estranha.

Os fulanos desmontaram a escada de harmónio e prenderam-na no tejadilho do carro. Estavam a entrar para a viatura quando uma carrinha passou por eles na subida da ladeira. Não só ambos não entraram logo, como ficaram a ver se a carrinha parava ou se fazia algo suspeito. Só quando confirmaram que não, é que entraram no Skoda e partiram em direção da Malveira da Serra. Pararam uns metros à frente para prenderem melhor a escada que tinham colocado no tejadilho, voltaram a entrar e não pararam mais.

A Felina confirmou que tinha a costa livre e desceu para a estrada. Tirou o fato no carro, guardou tudo e desceu a colina de volta a Lisboa. Uma vez na capital, decidiu ir almoçar ao restaurante “O Madeirense”, no Amoreiras Shopping. Apetecia-lhe umas lapas grelhadas com limão, um filete de peixe-espada com banana e maracujá e uma maçã assada com Vinho da Madeira, à noite ia comer carne.

Finalmente despachada rumou a casa. Estacionou o Dácia na garagem e subiu pelo elevador ao primeiro piso. Foi buscar um digestivo e sentou-se ao computador no seu quarto secreto. Ora, ela ouvira Kalinka, nas primeiras páginas do Google apenas lhe apareciam coisas sobre a música russa. Todavia, quando passou para a imprensa online deu logo com uma notícia do JN, sobre a Máfia russa do Porto, autodenominada de Kalinka. Era isso!

Para ela a Máfia russa devia estar à procura de poiso na capital. Depois de investigar mais um pouco descobriu que a quinta estaria à venda em hasta pública brevemente. Tinha de estar atenta. Aquele pessoal quereria por certo ocupar as posições de Jô Muttley, ou pelo menos parte delas. Bonito serviço. Se tudo aquilo tivesse ficado sem ser badalado na televisão provavelmente os mafiosos não saberiam tão cedo que havia um lugar a ocupar. Iam mudar as moscas, mas a merda continuaria a mesma.

Como sempre ninguém pensara que anunciar com aquele espalhafato o fim de uma enorme rede mafiosa iria atrair fregueses indesejados prontos para a substituírem. Era triste, às vezes achava que vivia num país de galarós idiotas. Os culpados da Kalinka vir para a capital eram eles.

Todavia, outra notícia tinha mais informações sobre a Kalinka, segundo outro artigo do JN a Kalinka fazia parte do Grupo Wagner, os assassinos privados ao serviço de Putin, que tinham estado na linha da frente na guerra na Síria e que lideravam as hostilidades russas na guerra na Ucrânia. A Kalinka era o braço mafioso do grupo terrorista e estava espalhado por toda a Europa. E agora, graças à PJ e ao Governo, vinham-se instalar em Lisboa. Aquilo tirava-a do sério. Cambada de gabarolas.

Ela ia ter que prestar atenção redobrada dali para a frente. Não os podia deixar levantar muito a garimpa. Aquilo era outro nível de mafiosos e com outro treino. Algo como uma divisão principal. Mais uma vez a Felina agradeceu ao seu instinto de predador, porque tinha de ser na altura exata em que decidira ir visitar a quinta que os russos haviam de lá estar? Ela não sabia explicar, mas tinha sorte, muitas vezes com aqueles seus repentes, mais, muito mais do que seria normal acontecer.

Isso ia implicar que teria de voltar a assinar a assessoria com a Polícia Judiciária, mais dia menos dia. Ela ainda nem descansara devidamente. Enfim, faria o que fosse preciso. Mas não ia poder estar parada por muito tempo. Agora, o que lhe apetecia mesmo, era um gelado da Santini de Cascais, a geladaria mais badalada da zona metropolitana de Lisboa. Novamente meteu-se no carro. Desta vez com destino para o número cem da Alameda dos Combatentes da Grande Guerra na baía de Cascais.

Íris, não dera pelo passar do tempo em Cascais. O fim de tarde estava maravilhoso e ela andara a ver montras, vira malas, jeans e sapatos, muitos sapatos. Porque gostaria ela tanto de sapatos? Não sabia bem, mas era quase uma doença. Não precisava de comprar sapatos, mas a temática não podia ser discutida sobre o precisar ou não. Era muito mais, isso sim, o ter que ter ou não aquele ou outro par de sapatos.

Regressou a casa, foi mudar de roupa para a noite e finalmente arranjou-se para sair. Ao preparar-se para entrar na Rua de São Bento, vinda da garagem e, ao olhar para a direita, viu à porta principal do seu prédio, sentado no chão, o surfista desgrenhado da noite anterior. O seu táxi devia estar a chegar. Fez-lhe sinal, o homem voou pelo passeio e veio ter com ela com um sorriso de orelha a orelha. Pelos vistos este gostara do que comera.

Com a chegada do táxi, e com o seu surfista atrás, foi um instante em que chegaram ao representante da Jaguar. Íris, olhou para as horas, nem meia hora demorara, faltavam dez minutos para o fim do prazo. O Diretor Comercial vi-os chegar e veio ao encontro da cliente. Na mão trazia o comando da viatura. Estavam a terminar apenas a limpeza final. O seu chefe de oficina estava a chegar com a viatura. Não devia demorar muito.

Realmente, uns três minutos antes do final do prazo combinado o homem entrou com a viatura. Ambos estavam à espera de uma inspeção rigorosa por parte de Íris, contudo, ela sorriu e disse que quem cumpria o que prometia, não erraria depois disso nos detalhes. Dizendo de outra maneira, insistia, tinha agora total confiança na Carclasse. Não seria necessário e muito menos preciso fazer qualquer verificação.

Só faltou meter um babete por debaixo do queixo do Doutor Henriques Figueira. O homem estava delirante com o elogio à empresa.  Até o Jaguar se fazer à estrada o homem disse e repetiu umas dez vezes que estavam ali para o que fosse preciso. Qualquer coisa que a Doutora Íris Vasconcelos precisasse bastava ligar. Se não tivesse acontecido ele próprio tinha dúvidas que o que tinham realizado seria possível. No entanto, o impossível acontecera afirmava a rapariga e ela tinha muito orgulho, afirmava sorrindo, de ser cliente de uma empresa que consegue o impossível.

Rumo à Malveira da Serra o surfista foi fazendo perguntas sobre aquela última conversa e ela lá foi descrevendo a história por entre as exclamativas admiradas do desgrenhado morenaço. Sem vir a propósito a jovem perguntou-lhe:

      ― Olha lá, e tu estás à espera do quê para me dizeres o teu nome? ― quis saber Íris.

     ― O meu nome é Ricardo Melro Miranda, tenho uma pequena empresa de distribuição. Faço serviços de distribuição de mercadorias em Portugal e no Brasil. ― respondeu o surfista e prosseguiu. ― Consigo gerir as operações todas por telemóvel. A vida é bela.

Depois prosseguiu esclarecendo que também tinha dois excelentes diretores comerciais e dois ótimos gestores de frotas. Uma dupla em Portugal e a outra dupla no Brasil. Porém, ela que não pensasse que ele era rico, pois não era. Vivia bem, esclarecia, normalmente quase que só fazia o que queria. Mas ainda estava longe de não ter que trabalhar.

Enquanto lhe era possível ia tentando aproveitar a vida. Porém, tivera sorte, herdara algum dinheiro e investira na distribuição. Começara com três camiões, hoje tinha quarenta e sete. Dezasseis em Portugal e trinta e um no Brasil. A camionagem no Brasil era mais rentável que em Portugal. No entanto, graças à pandemia, tinha conseguido crescer bastante no país, principalmente com os transportes de longo curso, em viagens à Alemanha e a Inglaterra, na maioria dos casos.

Chegados ao Restaurante Estrela da Serra, o surfista atacou uma gigante espetada de carne de vaca e camarão. Ela preferiu um tornedó fabuloso, de fazer água na boca só de olhar.

A noite acabou uma vez mais na cama, no duche, em cima da mesa da sala de jantar, na cozinha, aqui e ali, onde calhava e foi uma verdadeira loucura. Era evidente para Íris que o rapaz se entusiasmava com ela. Estava constantemente a inventar disparates eróticos para fazerem e divertidíssimo por a ver alinhar nas suas fantasias. Quando acordou, no dia seguinte, estava, como na primeira vez, a dormir sozinha.

 

(continua no Capítulo XIII) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 51

A Felina - 51.jpgEla estava romântica naquela manhã, era normal nos dias de Lua Cheia, foi ver, como habitualmente o seu correio eletrónico, depois de se arranjar, conferiu ainda a sua lista de auxílios aos necessitados, tinha sete em que já terminara a investigação prontos para enviar, esteve a fazer as encomendas e deixou tudo pronto para entregar ao seu amigo dos CTT. Levara um rombo de mais duzentos e cinquenta mil euros. Verificou online os saldos das suas contas. Estava à vontade, o ano tinha sido muito produtivo.

Depois deu uma vista de olhos pela imprensa online, anotou mais três aflitos do Correio da Manhã, para futura investigação e possível auxílio, e quase no final deu com ele: um Jaguar F-Type Convertible R 75P575 AWD Automático, entrou na publicidade da marca, com todos os acessórios o Jaguar preto custava cerca de cento e noventa e cinco mil euros. Estava apaixonada. Na garagem ainda tinha espaço para mais dois carros e três motos, pelo que havia onde o guardar.

Com o número do representante a chamar, enquanto assobiava baixinho, aguardou uns trinta segundos. Estava decidida a comprá-lo no nome de Íris, era uma excelente viatura para os seus devaneios noturnos ou quando fosse para fora da cidade ou quando quisesse dar nas vistas. Na conta do Millennium BCP havia verba que dava e ainda sobrava muito. Do outro lado, escutou o bom-dia do representante. Descreveu o carro, definiu os acessórios e perguntou a que horas podia ir buscá-lo. Pela linha, o homem confirmava que tinham um pronto e em stock, mas que alguns dos acessórios demoravam uns dias.

Nada disso avançou Íris rindo, ela queria hoje. Ele que falasse com o gerente, ela pagava mais cinco mil euros pela urgência, mas ou era hoje ou não era nunca. O homem engasgou, ia a tentar argumentar quando ela o avisou de que estava a perder tempo. O sujeito pediu um momento.

Quando regressou pediu-lhe o contacto, o gerente estava a falar para a fábrica e ele já ligava de volta dentro de meia hora. Íris disse-lhe que o contacto era pessoal e que ligaria dali a meia hora. Saiu de casa, no seu Dácia, foi à sua dependência do Millennium BCP, pediu um cheque visado de duzentos mil euros e rumou à Carclasse, o concessionário da Jaguar.

Estacionou na Avenida Marechal Gomes da Costa número trinta e três, vinte e sete minutos depois de ter desligado a chamada. Entrou nas instalações da Carclasse e pediu para falar com o gerente. Pediram-lhe que aguardasse um instante pois o Doutor Henriques Figueira, normalmente em Braga, era o Diretor Comercial que hoje ali se encontrava ao serviço, mas estava a ultimar um telefonema urgente. Íris olhou para o relógio, a meia hora acabara de passar. Sorriu mais uma vez e disse:

      ― Diga ao Senhor Doutor que a Doutora Íris Lobato de Lemos Pessanha Vasconcelos, está aqui à espera e que é por causa dela que ele está ao telefone, porém, lamento muito, mas a meia hora já passou.

O homem ia para argumentar, mas a jovem não o permitiu. Fez-lhe sinal que fosse dar o recado e ficou a marcar o tempo. Um minuto e meio depois o Diretor Comercial chegava um pouco afogueado, com o outro atrás. Pediu desculpa, pois a chamada demorara um pouco mais. Estivera a falar com a Jaguar Land Rover no Reino Unido, diretamente com a sede, efetivamente, com a proposta de extra que ela fizera era possível ter o carro já com matrícula e tudo no nome dela se ela pagasse ainda hoje e lhe entregasse cópia da sua documentação. Íris pegou na pastinha que trazia debaixo do braço e passou-a ao Doutor Henriques Figueira. Este abriu e verificou que esta tinha tudo o que ele precisava, incluindo um cheque de duzentos mil euros, visado, em nome da Carclasse. O homem quase que se engasgava ao engolir em seco. Ainda atrapalhado proferiu:

      ― Parece-me que está tudo certo Doutora Íris Lobato Vasconcelos. Se me permite vou já tratar da encomenda pois vem um avião de Inglaterra com as peças em falta. Quer o troco em cheque ou em numerário? ― questionou o Diretor.

      ― Não quero troco, quero é vir buscar o carro pronto às oito da noite em ponto, acha possível? ― indagou Íris.

      ― Se não lhe fizer muita diferença preferia à oito e quinze. Nós fecharemos um pouco mais tarde para lhe deixar tudo pronto... ― retorquiu o Diretor.

Ela concordou, estaria ali às oito e quinze em ponto. Guardou o recibo e saiu.

A rapariga vinha divertidíssima. Aquele ar de durona que ela às vezes colocava, deixava sempre os homens em sentido, principalmente quando havia dinheiro envolvido e era ela a pagar. Era bom que à hora marcada lhe passassem as chaves do carro para a mão e que este viesse atestado e com os papeis tratados como ela referia na cartinha que constava dentro da pasta que lhes entregara, senão anulava a venda, só porque sim.

Henriques Figueira sentiu o rosto voltar ao normal. Tinha que ter tudo pronto mesmo à hora certa. Pelo que constava na carta que acabara de ler, a venda ficaria sem efeito se houvesse atraso na entrega da viatura. Confirmou tudo com a Sede em Inglaterra, referiu bem os prazos que tinha e o detalhe e que a venda seria anulada pela compradora se a viatura fosse entregue fora de prazo. Do outro lado confirmavam-lhe que as peças já estavam a caminho do jato que as traria para o aeródromo de Tires.

O Diretor Comercial disse que ia enviar de imediato uma carrinha para o aeródromo e falar com a alfândega. De seguida ligou para um amigo da Alfândega do Porto e expôs o problema, este disse-lhe que podia estar calmo que já lhe ligava de volta. Quando retornou a chamada o outro garantiu-lhe que tratara do assunto e deu-lhe o nome de quem deviam contactar em Tires a quando da chegada do avião.

Estava a desligar e o seu telefone tocou novamente, era o homem que mandara tratar dos papeis do carro a dizer que estaria tudo resolvido dentro de hora e meia. Henriques Figueira estava satisfeito. Mais um telefonema para enviar a carrinha para Tires e depois cuidou de convocar a equipa da oficina para estarem todos de prontidão para tratarem da viatura a tempo de entrega e avisou ainda que a mesma tinha de ser entregue atestada.

Só depois de sentir tudo a andar é que o homem descansou um pouco mais. Estava a aproximar-se dos quarenta anos de idade, já tinha vinte anos de casa e nunca lhe tinha acontecido uma destas. Ainda não estava relaxado. Até ver o automóvel pronto a entregar, não ia ter como descontrair. Uma coisa daquelas era inédita. Ainda havia algo na sua cabeça… ele conhecia o nome e aquela cara de algum lado, mas de onde? De repente, sem saber bem como, lembrou-se, era a Assessora da PJ a que se demitira depois de os entalar.

Aquela mulher era fogo. Ela até conseguira correr com um coordenador superior da Polícia Judiciária. Pelo que ele sabia do currículo dela que vira na altura na internet, a sujeita era assessora da casa mãe da Rolex, da Louis Vuitton, da Dácia, e de mais uma boa dúzia de marcas internacionais. Também vira que ela era doutorada em Antiguidade Clássica, o que nada tinha a ver com as suas assessorias, mas o facto é que parecia que todos a queriam. Só podia ser uma pessoa muito inteligente e ainda por cima era cá um pedaço de mulher, vá lá, vai.

Íris, achou que depois de ter o seu carro novo devia ir jantar a algum sítio diferente. Teria de ser com companhia, depois veria quem convidaria, o problema estava em escolher onde ir. Lembrou-se do Restaurante Estrela da Serra, na Malveira da Serra, já fazia algum tempo que não visitava a sua amiga e sócio-gerente do local, a Tê Beleza Figueira. Ela que há pouco andara por aqueles lados na quinta do Muttley e nem se lembrara de lá ir comer. Ligou para a amiga e aguardou. Ao fim de meio minuto foi atendida.

      ― Olá Tê, daqui é a Íris. Eu sei, eu sei, agora sou estrela de televisão. Olha, tem lugar para mim na mesa da direita junto à lareira para esta noite? Somos dois para o jantar, lá para as oito e meia, um quarto para as nove... ― quis saber Íris.

      ― Para ti sempre, minha querida. Escolhes quando chegares ou tens alguma ideia prévia? ― perguntou a amiga.

      ― Escolho quando chegar, mas diz-me, quanto ao vinho tinto, ainda tens Quita do Vale Meão de 2012? Tens! Ótimo, reserva-me duas garrafas. ― respondeu a jovem.

     ― Certo, podes contar e vens em negócios ou romance? Romance, tudo bem, vou pôr as velas e acender a lareira. Ainda está calor, mas à noite é mais fresco e fica lindo… ― garantiu Tê Figueira.

A rapariga estava contente, o dia continuava maravilhoso como começara. Até ia dar um salto ao muro da quinta de Jô, só para matar saudades. Não, a ir a esse lugar ia agora, à noite podia estar demasiado arranjada para andar a trepar às árvores.

Saiu de casa novamente e tirou o carro da garagem, ia dar um olhar à quinta.

 

(continua) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 50

A Felina - 50.jpgA Direção Nacional anunciava por último, em ofício separado, que devia ser implementado o quanto antes, pelo Comando Metropolitano de Lisboa, um comportamento de tolerância zero para com a Kalinka, caso esta se viesse mesmo a instalar no raio da área da Grande Lisboa, dependente daquele comando. O ofício vinha assinado pelo Superintendente-Chefe e Diretor Nacional, Miguel Agosto Margina da Silveira.

Seguia-se um anexo com explicações detalhadas sobre a Kalinka, de acordo com o último relatório apresentado pelo Intendente Vítor Fernandes de Melo, onde constava a negrito que esta organização mafiosa era um braço que, comprovadamente, estava integrado estruturalmente no Grupo Wagner e espalhada por roda a Europa. Ora, sendo o grupo Wagner uma organização privada militar, ao serviço da Rússia e de Putin, responsável por crimes de guerra na Ucrânia e na Síria, entre outros locais, a Kalinka em Portugal fora recentemente classificada, pelo Governo português, como uma máfia terrorista integrada no Grupo Terrorista Wagner, devendo ser perseguida e erradicada, a todo o custo, do território nacional.

Tendo em conta todas aquelas novidades e o modo como Vítor agira durante a sua passagem pela cidade Invicta, o Comandante do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, encarregou-o de criar, organizar e escolher os elementos para os Gamas de Lisboa, que ficariam instalados no edifício anexo ao da sede daquele comando.

Assim que o grupo estivesse formado ele passaria a comandar essa unidade com o posto de Superintendente. Todos os elementos deviam fazer parte dos quadros policiais pertencentes à área geográfica do Comando Metropolitano de Lisboa da Polícia de Segurança Pública e já ter, pelo menos, na sua folha de serviço, cinco anos de experiência na polícia.

O futuro Superintendente enviou para todas as esquadras e outros serviços do comando de Lisboa, uma nota informativa sobre a abertura das vagas para os Gamas, explicando que seria um grupo que atuaria contra organizações mafiosas ou com foras-da-lei como a Felina. Ele sabia que, com este detalhe afastaria do seu núcleo todo e qualquer admirador da gata o que, só por si, era um excelente indicador de futura fidelidade a si e aos Gamas.

Tendo em conta a popularidade da gata na capital, foi deveras surpreendente até para Vítor assistir à inscrição de oitenta e sete polícias voluntários nas candidaturas aos Gamas. Porém, através da análise curricular conseguiu, com relativa facilidade, formar um grupo com sessenta indivíduos. Muitos deles já com alguma experiência no combate ao crime organizado. Para dar formação ao grupo foi buscar um grupo de oito instrutores aos diversos ramos policiais e militares do país. Do SIS, às Forças Armadas, passando pela própria polícia, SEF e GNR.

No final, tinha uma seleção de polícias devidamente treinados para os desafios que poderiam defrontar. Foram escolhidos dez elementos para o plano de apoio e coordenação na sede e, cinquenta, divididos por grupos, núcleos e brigadas, com valências específicas cada um. A formação do pessoal levou-lhe o final de setembro e todo o mês de outubro.

Entretanto, conseguira que Alex Budvi adquirisse em asta pública a quinta de Sintra que pertencera a Jô Muttley, através de uma empresa de fachada que funcionava como filial de uma multinacional russa controlada pelo líder do Grupo Wagner. Essa seria a sede da Kalinka na Grande Lisboa. Porém, em vez de adquirirem outras propriedades recorrem antes ao aluguer de meia dúzia de vivendas espalhadas pela zona metropolitana e estrategicamente colocadas pelo território.

Para os chefes da Kalinka deslocados do Porto para Lisboa foi relativamente fácil aglutinar os pequenos grupos de delinquentes russos e de países de Leste existentes na zona, através da Embaixada Russa que sabia bem caracterizar os seus cidadãos na zona em causa. Alex Budvi deixou o seu lugar de tenente, à número dois, Natacha Kutcheva, encarregue da organização no Grande Porto e veio, ele próprio, liderar a sede a Sul. Tratava-se de um passo importante para a organização e não podia entrega-la nas mãos de terceiros.

Juntamente com Budvi vieram ainda mais três dos chefes dos grupos do Norte, para que a estrutura pudesse iniciar a atividade com alguma maior experiência e devidamente fortalecida. Dois deles até já tinham vivido uns anos na zona da Grande Lisboa.

A estrutura da Kalinka na capital seguiu as diretrizes da organização no Porto e no resto da Europa. A meio de outubro já tinham recebido todo o armamento de que necessitavam, angariaram no próprio mercado local o primeiro lote de prostitutas a que juntaram mercadoria própria vinda de Leste. Os pontos de distribuição da droga foram fornecidos por Vítor, bem como de outros negócios tendo em conta a antiga rede de Muttley.

No final de outubro já estavam a laborar a todo o gás, como se estivessem há muito anos instalados na região. Para que isso fosse possível, muito contribuíra o conhecimento passado por Vítor, ao detalhe, para as mãos agradecidas de Alex Budvi. O homem estava admirado com a sede de vingança que alimentava o seu amigo da polícia. Ele achava Vítor cada vez mais disposto a fazer qualquer coisa para levar a bom porto a sua missão de destruir e por fim eliminar a Felina.

Ora, para a Kalinka em Lisboa, a gata também era um entrave ao progresso e prosperidade da organização. Por isso mesmo já fora lançado um plano especialmente desenhado para a conseguir deitar abaixo. Aliás, Budvi considerava que isso era bem mais simples do que todos lhe diziam. Ela não passava de uma mulher só, sem apoio de homens com maiúscula, a combater uma das maiores e mais bem organizadas máfias da Europa.

Com eles não haveria lugar para samba ou farró. A Kalinka podia também ser uma música, mas era a música dos bravos e resilientes duros da nova e moderna Máfia russa. Era uma organização que jamais vergaria perante um mero e pouco relevante rabo de saia. Devido aos avisos constantes de Vítor iriam ter mais cuidado do que normalmente faziam com um inimigo individual, mas no fundo, para Alex Budvi, o perigo da Felina era algo insignificante e meramente residual.

A máfia instalou-se metodicamente desde a Península de Setúbal, até aos concelhos na margem sul do Tejo e toda a zona metropolitana de Lisboa, abrangendo assim os concelhos da Amadora, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Odivelas, Oeiras, Sintra e Vila Franca de Xira. O intuito era poder atuar num vasto território de três milhões de habitantes, onde o poder de compra era bem mais enriquecido do que no resto do país.

Na noite de Lua Cheia, a dez de setembro, sábado, a Felina sabia, como que por instinto, que nem valia a pena tentar estudar. Todo o seu ser ansiava outro tipo de diversão que nada tinha a ver com o seu gosto pelo estudo. Mesmo estando muito entusiasmada com o seu mestrado essa não era uma boa noite para esse tipo de passatempo.

Ao verificar que já eram sete da tarde, Íris confirmou se tinha o seu bilhete para ir ao Coliseu de Lisboa assistir ao concerto de Xavier Rudd. Não conseguia entender como é que o concerto do músico australiano estava esgotado, contudo, era um facto, ela apenas o escolhera por ser o evento que mais lhe agradara para iniciar o segundo dos Ciclos da Luz, o da Lua Cheia, Era uma música umas vezes melódica, mas lenta ou então confusa e demasiado tribal para o seu gosto, mas o cantor sufista tinha obviamente bastantes fãs na capital portuguesa.

Ela ia ao concerto porque lhe parecera o melhor cartaz do início da Lua Cheia na capital e podia ser que o “Follow The Sun” sempre se ouvisse naquela noite. Não era o mesmo do que seguir a Lua, mas era a coisa mais aproximada. O concerto teve início à hora marcada e a sorte fez-lhe companhia. Ao seu lado estava um surfista de cabelo castanho, desgrenhado, aloirado pelo Sol de muita praia, algures na casa dos trinta e poucos anos, que já devia ter fumado uns quantos charros antes do concerto.

O sujeito acabou por passar a noite com ela a surfar pelo seu corpo como se o conhecesse melhor que a sua mais estimada prancha. Só por isso o concerto já valera a pena, porque em termos musicais, a música no palco não lhe dissera grande coisa. Já o atlético companheiro da noite valera bem pelo bilhete, tendo tido uma atuação digna de vencer as mais altas ondas da longa euforia que durara e renascera diversas pela noite fora, como se o mar a invadisse, em marés agitadas, pleno de vagas e ondas vigorosas de puro prazer.

Quando acordou já o seu noturno companheiro partira rumo ao nascer do Sol, lá para os lados da Ericeira, onde os cavalos selvagens ainda pareciam correr em liberdade, quais cavalos marinhos na crista de ondas impossíveis de transpor, que não pelos poucos sonhadores da liberdade.

 

(continua) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 49

A Felina - 49.jpg XII

A Ameaça da Máfia Russa

XII

Vítor Fernandes de Melo não sabia muito bem o que fazer com a sua vida. Sabia que no Comando Metropolitano da PSP, embora ninguém lhe dissesse nada, também já estava queimado, mais do que o falhanço a apanhar a Felina no Museu, fora a TVI, com uma ajuda do Expresso, quem lhe tinha feito a cama. Precisava reagir e depressa para não se afundar rapidamente.

Ultimamente, o seu tempo era passado na sede do comando a atualizar sistemas, a reorganizar o modo como deveria estar a funcionar o arquivo, enfim, a modernizar e trazer para o presente século aquele órgão policial. O certo era que essa atitude, de não ter levantado muitas ondas e ter começado aquele trabalho interno, o mantivera no lugar. Começara, ainda, naquela semana, a organizar a articulação do comando com outros comandos regionais, com as esquadras e com os serviços centrais, bem como com as outras forças policiais e os seus respetivos departamentos.

De momento, embora o seu ódio pela Felina crescesse minuto a minuto, nada podia fazer para a apanhar. Tinha que manter, para já, um perfil sereno e esconder do mundo o seu absoluto desejo de vingança. Por sua vontade ou a prendia com a pena máxima ou lhe dava um tiro que acabasse com ela, se pudesse alegar legitima defesa. Das duas ele sabia que uma haveria por acabar por acontecer mais cedo ou mais tarde.

Era a missão da sua vida e nada, nem ninguém, impediria, mesmo que tentasse, que esse objetivo fosse atingido. Todavia, por agora, tinha de se manter aparentemente calmo e desinteressado desse tema, mas estava atento, muito atento.

Por volta do dia cinco de setembro, uma segunda-feira, Vítor, recebeu do Comando Metropolitano do Porto da PSP um ofício interno a comunicar que a Kalinka, uma organização mafiosa oriunda do leste europeu, principalmente composta por russos, parecia estar a querer expandir a sua área de intervenção em Portugal, do Porto, único local onde se sabia haver um elevado número de elementos, para Lisboa.

Ora na capital, como no resto do país, não era conhecida até à data qualquer ramificação da organização. A informação tinha por base três escutas particulares a elementos dessa máfia, autorizadas pelo tribunal e relacionadas com vários casos de venda de armas no submundo nortenho. Nelas tinha sido descoberto o envio de vários elementos para a zona metropolitana da capital a fim de ser estudada a melhor localização de uma nova base.

Do que as conversam tinham conseguido apurar, a organização queria aproveitar o vazio deixado pela quadrilha de Jô Muttley na área metropolitana de Lisboa. Aparentemente a pressão da procura de serviços antes prestados por Muttley estava a aumentar significativamente e a oportunidade, a haver uma, parecia ser imediata. Tudo levava a acreditar que a Kalinka pretendia aglutinar os pequenos grupos de bandidos oriundos do Leste e fundi-los em torno de si mesma, fazendo nascer a base de Lisboa, sob o comando de um dos líderes do Porto que se deslocaria para Sul. Infelizmente, nenhuma das conversas referia datas ou locais que pudessem servir de referência e de informação mais detalhada.

Depois seguia-se um relatório sobre as atividades da Kalinka no Grande Porto e a explicação de que o nome da máfia derivava do significado da palavra, que em português era o de uma árvore da família do zimbro ou do cedro, cujas principais caraterísticas eram a facilidade de implantação em novos territórios, uma excelente resiliência e longevidade e uma dureza impressionante, tudo caraterísticas desta máfia que, segundo os dados do comando do Porto, mais não era que um braço civil de bandidos do poderoso grupo de mercenários russo designado comumente por Grupo Wagner.

Este era, então, o mesmo grupo que parecia liderar o lado russo na guerra da Ucrânia. No Porto, mais uma vez, a organização tinha dois subgrupos, os bandidos, ladrões, traficantes, extortores, conhecidos pelos Zimbros e as chefias, os raptores e assassinos designados por Cedros. Este último subgrupo, muito menor que o primeiro, detinha o comando, o controlo e a liderança de toda a Kalinka.

Com este dossier na mão, Vítor, apresentou às chefias a sua ideia de ir umas semanas para o comando do Porto, aprender mais sobre esta máfia, de forma a que o comando de Lisboa se pudesse preparar atempadamente, antes da chegada da organização à capital. A ideia foi muito bem recebida, principalmente por o afastar a ele dos holofotes da comunicação social por mais algum tempo, mais do que pela importância imediata de uma situação que, até ao momento, era uma mera conjetura.

Com a guia de marcha na mão e uma vez a proposta aceite pelo comando do Porto, no dia sete de setembro, este apresentou-se na sede nortenha ao serviço. A pronta resposta de Lisboa, que não assim tão vulgar, agradara imenso às chefias na Invicta. Ainda mais ao verem o genuíno interesse do oficial enviado. Com a chegada do fim-de-semana, no domingo, a onze de setembro já Vítor tinha prontos os novos arquivos que iria levar para Lisboa, com toda a informação que o Porto tinha sobre a Kalinka.

Porém, em vez de regressar à capital e usando a desculpa de querer entender como eles funcionavam no terreno, integrou o grupo que o Comando Metropolitano da Porto da PSP tinha a trabalhar no assunto. O Intendente ia a tudo, vigilâncias, detenções, rusgas, o que quer que fosse.

Ganhou, aliás, excelentes relações com os líderes do comando do Porto e com o grupo com quem trabalhava diariamente. Vítor, ajudou a otimizar os serviços metropolitanos da PSP na Invicta enquanto, sem nunca se impor, e parecendo aceitar e fundir as ideias dos outros elementos, sem qualquer ressentimento, criava novas estratégias e planos de atuação para aquilo que designou como o Grupo Anti Máfia de Ação e Segurança, os Gamas.

Para estes criou até um emblema e um nome. Eles passaram a ser conhecidos como os Gamas da PSP. O emblema era azul escuro torneado a dourado com umas tripas cinza em cruz, no interior, e um coração vermelho no centro, com a palavra gamas a dourado no topo. Também propôs, e foi aceite, o lema: “Fazemos das Tripas, Coração!” que ladeava os dois lados do emblema. Os homens estavam felizes, motivados e mortinhos por mostrar serviço, o que agradara sobremaneira às chefias nortenhas desejosas de por fim àquela máfia na cidade, que se espalhava como um polvo.

No domingo à noite, de regresso à pensão onde se encontrava, Vítor estava delirante, pois tudo corria conforme planeara. Antes dessa noite terminar conseguira ser conduzido à presença do líder da Kalinka no Porto, um indivíduo russo de nome Alex Budvi. Fora a ele que propusera juntar-se à Kalinka e ajudá-los a expandir a máfia para Lisboa. Sem rodeios colocara as suas condições, pretendia fazer parte dos Cedros, ser pago com um valor equivalente às chefias e impunha a condição da ajuda da organização para caçar e liquidar a Felina de uma vez por todas. Em contrapartida aceitaria quaisquer circunstâncias que lhe fossem impostas pela máfia, sem a mínima oposição ou reclamação.

A Alex Budvi aquele negócio caíra do céu. Podia não saber o que contar por parte da PJ em Lisboa e Porto, mas passaria a controlar as ações da PSP que, até ao momento era quem lhe tinha trazido mais problemas. Ter um informador, ainda por cima motivado pela vingança era como ter um cão fiel ao fundo da cama. Claro que possivelmente, quando matassem a Felina, teria de o abater também a ele, mas podia até ser que não. O acordo ficou fechado.

Para Vítor, aquele domingo, onze de setembro era o primeiro dia do fim da pantera negra. Ele ia ter a sua vingança e rir por último.

Para poder fazer figura, antes de regressar a Lisboa e esperar pelo elemento dos Cedros, que veria organizar a célula da capital, Vítor, combinara com Budvi, apanhar e prender, ao serviço do Comando do Porto, as franjas do Zimbro que o russo considerasse corruptas ou a necessitar de serem substituídas por grupos mais ativos.

O homem do Leste achou uma boa maneira de limpar os indesejáveis ou os incapazes e, numa semana, o comando do Porto prendeu quase quarenta mafiosos em ações cirúrgicas planeadas pelo, cada vez mais admirado, novo elemento do Comando Metropolitano da PSP do Porto. Ao regressar a Lisboa, no início de outubro, mais propriamente no dia três, foi com mágoa que o comando do Porto, no Largo 1º de dezembro e os Gamas, também ali instalados, o viram partir.

Ficara, aliás, o convite de que se alguma vez quisesse regressar ao Porto seria recebido de braços abertos, segundo o Superintendente-chefe, que liderava o comando da Invicta, nem sequer conseguia entender porque é que um elemento com o gabarito de Vítor era mal-aceite no comando de Lisboa. Por se ter enganado uma vez? Era ridículo, afirmava.

Os elogios e o relatório de serviço do Comando nortenho, eram de tal maneira positivos e elogiosos que o Comandante do Comando Metropolitano de Lisboa considerou que talvez tivesse havido algum preconceito, em Lisboa, na avaliação que tinham feito de Vítor Fernandes de Melo, principalmente por causa de toda a confusão à volta da Felina e da assessora da Direção Nacional da PSP. O relatório do seu colega no Porto não podia ser mais positivo, nem mesmo que ele o quisesse fazer.

Aliás, a Direção Nacional da PSP, enviara-lhe uma norma de serviço, baseada no trabalho do seu Intendente, para que também em Lisboa, a nível metropolitano, fosse criada a unidade especial dos Gamas, a exemplo do que fora proposto pelo Comando do Porto e integralmente aceite pela Direção Nacional. Com esta norma chegara ainda uma recomendação, em forma de nota interna, da passagem do Intendente para Superintendente, numa data que deveria ser próxima, de forma a reparar a subavaliação que fora feita relativamente ao oficial Vítor Fernandes de Melo.

 

(continua) Gil Saraiva

 

 

 

Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 48

A Felina - 48.jpgEsses sim, eram os verdadeiros heróis. Esses sim, podiam e deviam ser recompensados e aplaudidos pelos seus pares e por todos aqueles a quem serviam com humildade e abnegação, diariamente, num quotidiano sem fim. A eles, a todos os que serviam o bem comum é que era devido, hoje e sempre, um verdadeiro e sincero aplauso.

Para os partidos de esquerda a gata não passava um produto de uma sociedade que não cuidava dos seus. Num país realmente democrático e em que os que trabalham fossem devidamente remunerados pelo seu contributo, não poderia nem haveria lugar para este tipo de personagens. Porém, perante a miséria e a falta de condições de vida não era de admirar o aparecimento destes ditos heróis ou heroínas.

Mais do que tudo o importante era o Governo reconhecer que era precisa ser feita uma profunda reforma social. A atual heroína, que o povo tanto apreciava, deixaria de ter lugar e de fazer qualquer sentido, se essas reformas fossem implementadas. No entanto, ninguém se devia admirar que estes processos voltassem a acontecer caso tudo se mantivesse na mesma. Era este que devia ser o foco e era isso que defendiam, fosse a sua posição ou não do agrado de terceiros.

Já o líder da direita radical, um tal de Tomé Frescura, era a favor da prisão efetiva dos parasitas da sociedade, que vivem à custa do povo português, disfarçados de ovelhas, enquanto não passam de grandes cabras. Segundo ele, a Felina existia porque o Governo o permitia, ela apenas servia para afastar as atenções de que é ele quem, efetivamente, desviava todos os dias o dinheiro do povo.

Tomé Frescura, lembrava que noutros tempos, chamados de mais bárbaros, aos ladrões era cortada uma mão e depois a outra em caso de reincidência. Embora algo assim tão radical já não pudesse ser considerado algo politicamente correto, no entanto ver um ladrão a ir perdendo um ou outro dedinho como pena de um crime de roubo não era assim nada de tão radical. A sociedade poderia dessa maneira começar a assistir realmente a um testemunho visível de que os prevaricadores não ficavam impunes. Só assim se poderia eficazmente confirmar existir uma justiça eficaz.

Para os comentadores da comunicação social as posições eram das mais variadas. Para o humorista Renato Marujo Macieira o papel de uma larápia que se dá ao trabalho de gamar terceiros, tendo o cuidado de não desviar verbas de quem delas precisa, como de pão para a boca, já era um princípio que ele valorizava de sobremaneira. Mas ainda lhe parecia mais louvável que ela acudisse aqueles que não tinham a quem recorrer, sem nada lhes pedir em troca.

Com efeito, ele via com bons olhos uma jovem, com todas as curvas nos devidos lugares, a dar o corpo ao manifesto sem cobrar por isso, a ajudar aqueles a quem o Estado não prestava a devida atenção. No entender do comediante entre as alternativas de uma gaja boa a dar dinheiro a necessitados e a pôr na prisão malfeitores perigosos e dos banqueiros da nossa praça ele optaria sempre pela que oferecia mais entusiasmo.

Para além disso, Renato Marujo Macieira, achava excelente que a existência da Felina, não dependesse da aprovação do Tribunal Constitucional, como a Lei da Eutanásia dependia. Talvez isso ajudasse a explicar porque é que a esta existia e a Lei da Eutanásia não. Quanto ao facto de roubar a ladrões, o humorista lembrava o velho ditado onde se diz que: “ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão” ou lá o que é.

Ele aceitava ainda que o seu pensamento pudesse gerar polémica, por exemplo, no seio da igreja católica, mas jurava que se tivesse de ser ele a escolher preferia, fossem quais fossem as circunstâncias, ajoelhar-se perante a Felina, ou vice-versa do que ter de se ajoelhar perante um padre. Pelo menos em frente à mulher gata o falo derivaria sempre, desse por onde desse, do verbo falar.

Compreendia também a oposição dos marialvas e dos machos latinos que se recusavam a ver a Felina a ficar por cima, afinal, para estes era mais fácil agir se ela tivesse o rabo entre as pernas. No entanto, era-lhe simples aceitar alguém, que tentava repor o dinheiro de onde este nunca deveria ter desaparecido e que para isso fazia umas maldadezinhas, do que achar justa a cada vez maior diferença entre ricos e pobres sendo estes últimos, aqueles que acabam, como sempre, por ficar na mó de baixo.

 A visibilidade dada pela TVI à gata gerara, efetivamente, na sociedade e entre a comunicação social um falatório animado, ora aplaudindo ora deitando abaixo as atitudes e ações da Felina. Porém, quando a TVI apareceu com uma sondagem sobre as personalidades portuguesas que os lusitanos mais admiravam, a Felina aparecia a liderar as preferências nacionais entre os inquiridos, que responderam com oitenta e sete porcento a seu favor, seguia-se o cantor Jordi Ofício com seis porcento, o humorista Renato Marujo Macieira com cinco e o Presidente da República com três, sendo que os remanescentes três porcento estavam espalhados entre mais de vinte personalidades.

Um sociólogo, convidado pela estação de televisão, veio explicar o porquê de tão forte tendência em apoiar a gata. Para o homem era lógico que o povo se identificasse por um personagem que parecia tirado de um filme ou livro de ficção e que ajudava os mais fracos, mesmo que ficasse com alguma coisa para si próprio.

Era preciso compreender que os portugueses estavam a atravessar uma fase terrível com o peso da inflação e da subida das taxas de juro sobre as suas costas. Depois o país atravessava uma crise onde muita gente, dos reformados aos que tinham vencimentos iguais ou perto do ordenado mínimo, não conseguia fazer face a todas as despesas do mês.

Para Xana Lombas, a analista política, que era membro do PS, comentadora de televisão e ex-eurodeputada, ninguém devia perder tempo com personagens de ficção, cujo campo de intervenção é meramente residual e sem importância alguma no contexto social. Uma mascarada até poderia ter a sua graça num qualquer corso de carnaval, mas apenas isso.

Xana, que gostava de deixar as coisas claras, quando da análise da vida dos outros se tratava, tinha por hábito não ter papas na língua, desde que não lhe viessem falar de parte de uma sua propriedade construída ilegalmente em área protegida, avançava ainda que não entendera porque é que o Governo não ordenara um verdadeira caça à tal Felina, que, pelo que lhe era dado a entender, se tratava de um animal selvagem sem qualquer respeito pelas normas e pela conduta humana numa sociedade onde roubar é crime.

Opinião diferente tinha o comentador do PSD, Acres Lentes, um sujeito baixinho e muito opinativo, para quem a dita mulher-animal não passava de uma moda e de um fait-diver que, rapidamente, seria esquecido e ultrapassado pelo fenómeno mediático que se lhe seguisse. Qualquer aberração, como por exemplo, o homem mais alto do mundo ou o mais gordo, tinha o seu momento de fama, mas não passava disso mesmo, um soundbite que rapidamente seria substituído pelo próximo.

Quando interrogado sobre qual seria a melhor atitude do Governo o diminuto ser, dissera do alto do seu metro e quarenta que o Ministério da Administração Interna já deveria ter deixado claro a todas as forças de segurança que era uma prioridade absoluta pôr fim à fantochada de uma gata escondida com rabo de fora. Não devia ser um jogo do gato e do rato, proferira o pequeno hámster. O Estado tinha o poder do cão, mesmo do lobo e facilmente deveria extinguir de vez com reinado de uma Felina, em vez de a vir felicitar com agradecimentos bacocos.

Já o Presidente da República, Felisbelo Rabelo de Lousa, achava que seria interessante ter uma conversa com essa jovem, porque, bom… vistas as coisas pela positiva, ela tinha comportamentos que indicavam poder vir a seguir um novo rumo. O facto de ela fazer o papel de Madre Teresa dos Meliantes indicava poder haver um bom fundo que poderia ser aproveitado pelos Serviços de Reinserção Social para uma vida mais produtiva e sem a persistência da tendência para o crime.

Rabelo de Lousa lembrava que, como o gato, gata escaldada de água fria tem medo. Ora, segundo o mais alto magistrado na nação, era preciso aproveitar o facto de a pessoa em causa ter acabado de prestar um excelente serviço ao país, para se ser proposta alguma clemência, caso ela devolvesse o ouro roubado e decidisse, voluntariamente entregar-se às autoridades. Felisbelo estava convencido que ela estaria a ponderar isso mesmo.

Já para Josué Palheto Palmeira, o ex-dirigente e ex-deputado do PSD, comentador televisivo e Diretor da biblioteca e revista Fátua, achava que iriamos assistir nos próximos anos ao aparecimento de fenómenos semelhantes. Porque há sempre imitadores prontos para o disparate.

Segundo Palheto Palmeira, a democracia em Portugal estava com dificuldade de dar resposta aos reais problemas da população e, por isso mesmo, o aparecimento de líderes populistas, por um lado, quer à esquerda, quer à direita, e o despontar de fenómenos bizarros, por outro, como heroínas mascaradas ou heróis de cuecas, tinham um vasto campo para poderem crescer cada vez mais.

Sidónio Raposa Cister, o comentador do CDS no programa “O Começo da Hesitação” era totalmente contra a popularização de ladrões de bancos encapuçados. A vida real não era a mesma coisa que a “Alice no País das Maravilhas”, pelo que se tornava necessário pôr as coisas no seu devido lugar. O comentador afirmara: “― Ora, vamos lá ver se nos portamos como adultos e deixamos as brincadeiras para as crianças” …

 Ainda segundo Raposa Cister proferira: “― Não é possível admitir que os devaneios de uma ladra virarem, agora, porque sim ou porque não, fábulas justiceiras de trazer por casa. Eu nem me admirava nada, com tanta fantasia à mistura, que um dia destes, alguém anunciasse que essa gata é membro do PS”.

Na realidade, por toda a comunicação social, o assunto sobre a temática da Felina parecia não deixar ninguém indiferente. Só mesmo Íris se mantinha verdadeiramente satisfeita com a situação. Entrara uma vez mais nos Ciclos da Luz e os próximos sete dias seriam importantíssimos para se dedicar aos seus estudos, entregar se possível ainda em setembro a sua tese do último mestrado em que se metera e pôr na devida forma a sua destreza física, que com a caça aos bandidos ficara um pouco atrasada.

A jovem precisava desse tempo para si. Era importante viver uma boa pausa. Fazer aquelas pequenas coisas de que tanto gostava. Ela teria certamente, até ao próximo domingo, dia onze de setembro, tempo para dedicar à sua pessoa. Para além disso ainda iria de necessitar de um algum bom período para o romance, assim que chegasse a Lua Cheia. Isso parecia-lhe uma evidência, principalmente, depois de ter perdido a paciência com um palhaço, não porque o sujeito fosse um mau amante, mas naquele caso, em vez de um verdadeiro macho, como ela afirmara, afinal: “― o museu pariu um rato”.

 

(continua no capítulo XII) Gil Saraiva

 

 

 

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