Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente
correto.
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Quando viu as horas, ainda não tendo ido descansar nem um pouco, resolveu enviar o pedido de vigilância do prédio dos bandidos para a polícia. Mandou o e-mail para a esquadra vizinha e para o comando central da PSP e ligou diretamente para o comissário da esquadra. O homem, muito simpático agradeceu o pedido de ajuda e garantiu que ia imediatamente enviar três agentes para o local. Estariam lá em menos de cinco minutos.
Pelas oito da noite não se falava de outra coisa em todo o país. As apreensões da judiciária, o volume absurdo de drogas, bens e armamento apreendido e a quantidade de gente detida ou em vias de detenção, colocaram o evento no topo das notícias não só no país como em todo o mundo civilizado. A operação da judiciária ultrapassara, nas notícias internacionais o tempo de antena da guerra na Ucrânia na proporção de três para um.
O impacto ainda era maior porque o Primeiro-Ministro português, Antonino Mosca, acabara de garantir, num comunicado efetuado às dezanove horas, que todo o armamento apreendido ia ser doado à Ucrânia. Aliás, o Governo português decidira servir-se de imediato daquela invenção dos bandidos, que tinham criado os aranhiços blindados, registando a patente e fornecendo a Ucrânia de blindados ultraleves, o que poderia fazer uma grande diferença no esforço de guerra ucraniano.
O Governo já patenteara este novo carro de combate, com o nome de aramite, e iria mesmo abrir concurso para a produção em massa em Portugal. Os primeiros testes, realizados ainda durante a tarde, tinham provado uma extrema versatilidade, eficácia e uma mobilidade todo-o-terreno, sem par, nos veículos de combate conhecidos nos cenários de guerra internacional.
Os veículos estavam preparados para transportarem armamento letal de curto e médio alcance e até dois drones suicidas e a sua facilidade de condução e estabilidade em todo-o-terreno implicava que apenas necessitavam de dois tripulantes. O governo previa que no princípio de 2023, talvez em fevereiro, no máximo em março, as primeiras mil unidades estivessem prontas a entrar no ativo. Seriam lançadas três categorias de blindados, os ultraleves, de ação rápida, feitos de alumínio e fibra de carbono nomeados de Ases, os Reis, com armamento mais pesado, e os Valetes telecomandados e suicidas.
O Primeiro-Ministro de Cabo Verde, Hércules Baleia e Salsa, também já se adiantara oferecendo uma parceria a Portugal através de instalações e mão-de-obra na ilha da Boa Vista. A oferta fora prontamente aceite pelo homólogo português, que via com muito bons olhos esta nova possibilidade de cooperação militar com um dos países dos PALOPS.
O baixo custo proporcionado pelo tipo de estrutura e materiais e a versatilidade dos veículos, permitia, facilmente, transformar um batalhão de infantaria num de artilharia sem grande necessidade de adaptações. Os Valetes, que podiam ser comandados a vários quilómetros de distância tinham uma capacidade destrutiva absolutamente fantástica, podendo dizimar com um só ataque um grupo de sete ou oito tanques inimigos.
Carlos Farelo, passara pela sede, a pedido do Diretor Nacional, para acertar com ele e com os outros diretores adjuntos, qual seria a melhor estratégia de lançar a notícia publicamente. Acabaram por decidir não ocultar o papel da sua nova assessora, até porque já era alguém da casa, nem o enorme trabalho da Felina, a limpar o terreno e a facilitar a ação da PJ, GNR e PSP. Diriam, contudo, que a habilidosa ladra já se tinha pago a ela própria com o que desviara em dinheiro, ouro e joias, do covil dos bandidos.
Antes da uma da tarde, apesar do atraso, o Diretor Adjunto entrara nas instalações do prédio devoluto ao lado da morada do pai e do avô de Íris. Tinha que se apressar a inspecionar o edifício, pois o seu conteúdo seria esvaziado, ainda nessa tarde, pelos serviços da PJ. Ele achava que tinha tempo e que não iria encontrar nada de especial, porque já vasculhara tudo muito bem e com alguma cautela.
Começou por cima e encontrou a gaveta da mesinha de cabeceira do quarto de Muttley desmontada em cima da cama deste, com o fundo falso à vista. Quem teria ido ali e o que teriam levado? Já no piso de baixo não teve qualquer surpresa. Quer ele, quer os seis homens que o estavam a ajudar nas buscas nada tinham encontrado de novo ou importante. Todavia, no piso da garagem a conversa mudou de figura. Ainda estava a descer as escadas já um dos seus auxiliares o chamava. Por detrás da rede onde estava o armeiro, apontaram-lhe para os dois cadernos e uma outra moeda da Felina.
Mais uma vez aquela fera tomara a dianteira. Ficou satisfeitíssimo com os conteúdos dos cadernos. Mais uma catrefada de gente para prender e interrogar. Os contactos esclareciam a função de cada um deles e não apenas os nomes. Muitos provinham de ligações e elementos no estrageiro. Aquele caderno era mais uma mina. O outro explicava a história de Muttley, o que retirava qualquer espaço de manobra ao bandido.
Mas foi quando o auxiliar lhe apontara para a porta escondida que o queixo de Carlos Farelo caiu de vez. Ele estivera ali a ver aquele espaço quase ao centímetro e não dera com aquela porta. Abençoada mulher, aquela Felina era mesmo fora de série. Até já tinha pena de um dia a terem de capturar. Sem ela jamais teriam tido, de bandeja, a papa toda feita.
Os homens seguiram o caminho da porta aberta e deram com o restante armamento, a mesinha onde o bandido devia ter anotado as coisas nos seus cadernos, a saída para a fuga de urgência, a maquinaria pesada, a sala de tortura, a garrafeira, o material de construção civil e os dois jipes. Mais um grande achado que ajudava a explicar como o prédio tinha sido reconstruído por dentro sem que ninguém desse conta.
Depois de fazer umas contas por alto, com mais aqueles contactos, Carlos, satisfeito, achou que, com a ajuda internacional, iriam conseguir pôr por detrás das grades quase quinhentos fora-da-lei. Tudo porque ele um dia, há três anos atrás, se lembrara de oferecer uma assessoria a uma fulana doutorada em Antiguidade Clássica. Sem ela provavelmente não teriam conseguido agir com aquela celeridade, nem teriam, provavelmente tido todo aquele apoio por parte da pantera negra. Foi nesse momento que se fez luz no seu espírito. A Felina detetara a Íris na árvore, mas de certeza. Por isso não se limitara a roubar os bandidos, mas decidira igualmente auxiliar a PJ a apanhá-los. Fora o facto de dar com a outra mulher no cimo do muro que lhe mudara todo o seu habitual comportamento.
A evidência encaixava que nem uma luva. A jovem ladra não era uma qualquer criminosa, não gostava de bandidos perigosos, nem de assassinos ou de violadores. Ela aproveitara a vigília da outra mulher para mandar uma mensagem de que os iria ajudar.
Tinham estado todos equivocados sobre a Felina. Que burros! A mulher andara sempre um passo à frente deles para os ajudar deliberadamente. Tinha que informar de imediato Luís Navas. Era imperativo transmitir que tinham conhecimento do auxílio intencional da ladra. Tudo bem que ela tivesse visto na Íris uma oportunidade de ser menos procurada pela JP. Mas o desvio da sua rotina e o trabalho a que se dera para poder efetivamente ajudar a Judiciária era deveras assinalável.
Luís Navas estava tão espantado quanto ele ficara. Realmente o primeiro alerta de Íris tinha sido fundamental, mas sem a intervenção da ladra possivelmente podiam nem sequer ter conseguido apanhar os bandidos. Tinha toda a lógica que a gata tivesse visto a outra no cimo da árvore. Por isso dera o salto lateralmente. Exatamente como constava no relatório que recebera do coordenador superior, Vítor Melo, ainda nessa manhã.
Uma ladra que nunca se deixara ver, fotografar ou apanhar, não ia ver uma pessoa a olhar para si a quatro metros de distância? Era realmente ridículo. Claro que tinha visto e claro que decidira ajudar deliberadamente e não apenas por mero acaso. Mais uma prova disso era o que ela deixara bem à vista no edifício devoluto. Devido a isso, e sem deixarem de a considerar marginal, a PJ decidira inclui-la claramente nos créditos da operação. Quanto mais transparente a notícia fosse menos risco corriam de os jornalistas detetarem algo menos claro. Sim, sim, assim era bem melhor.
Íris acordou pouco depois das três da tarde. Não dormira muito devido a toda a agitação por que passara. No feriado dormiria melhor. Paciência. Enquanto tomava o seu pequeno almoço, foi buscar algo que trouxera consigo da casa do avô. Poisou a lamparina ao lado das torradas, acabadinhas de barrar. Tentou abrir a tampa, no topo, mas esta nem se mexeu. Ora, ora, pensara, tinha ainda mais um mistério?
O raio da lamparina era não apenas uma peça de valor, mas seguramente também um cofre portátil. Ao abanar com alguma força o objeto entendeu que aquilo não só era oco, mas que também tinha algo no seu interior. Ficou deliciada. Um cofre precioso, em miniatura para abrir. Seria que a engenhoca iria dar alguma luta a desvendar a sua abertura?
Uma hora depois percebeu que a luta era séria. Já descobrira que era uma engrenagem de quatro fechos, mas como a abrir estava a ser muito complicado. Um verdadeiro desafio mesmo para ela. Era evidente que o Olho deHórus na tampa e o Escravelho-Sagrado antes da parte afunilada da lamparina tinham a ver com o mecanismo, ela já sentira uma ligeiríssima oscilação em ambos os símbolos. Pela importância e simbolismo o sol de Rá, na cabeça do barqueiro com cabeça de pássaro também lhe parecia ser evidente, o problema eram os outros dois.
Por fim, optou pela Cruz de Ansata da Vida Eterna e pela Serpente com cabeça de Bastet, o Gato Sagrado do Egito. que mais não era do que o bico da lamparina. Só se reconheciam os símbolos olhando a lamparina de frente, porque lateralmente parecia um bico normal. Carregou nos cinco ao mesmo tempo e a peça ficou igual, no entanto dava a sensação de que algo tremera. Voltou a tentar, mas desta vez procurando baixar com os polegares a cabeça do Gato depois de ter carregado nos outros quatro em simultâneo.
Um mecanismo interior rodou e a tampa da lamparina girou abrindo-se para trás. Íris deu um grito de Eureca. Dentro da lamparina estava um caderninho e um mapa desdobrável. O mapa era o do Caminho das Cachadas, em Viana do Castelo, junto ao Rio Lima. Assinalava um armazém, marcado com o nome de Estaleiro da Aranha. O caderninho tinha os planos de construção dos aranhiços blindados, incluindo o que fazer de especial para eliminar os pontos fracos das viaturas depois de blindadas e de inserido o armamento.
A rapariga achou aquilo fabuloso. Ao fim ao cabo, já havia no país uma fábrica clandestina de aranhiços blindados a funcionar perto dos Estaleiros Navais de Viena do Castelo. A PJ precisava de saber daquilo com a máxima urgência. Eles deviam estar a preparar-se para divulgar a operação nos órgãos de comunicação social.
Íris foi buscar o encriptador de voz, gamado à Secreta Israelita há cinco meses atrás. Ligou-o ao seu telemóvel. Verificou que o seu número também estava encriptado e fez a chamada:
― É o Senhor Melo? Informo que descobri a fábrica dos aranhiços.
― Xi, rapaz, nem tinha pensado nisso. É claro que a Felina foi atrás do dinheiro. De alguma maneira soube da sua existência. Deve ter seguido os bandidos tal como a Íris ou então, o que me parece mais lógico, já conhecia aquele covil de uma investigação anterior, porque nós sabemos bem que ela prepara os seus golpes com muita antecedência. Até ao momento, ainda não caiu na armadilha que lhe montámos no Museu Nacional de Arte Antiga e a exposição já lá está há algum tempo. ― Avançou Carlos, meio aborrecido por se ter irritado com o seu auxiliar e também de não ter sido ele a pensar naquilo antes daquele relato.
― Isso sim, parece-me evidente que o ataque da Felina e o da perseguição da Íris foram mera coincidência. É como o Diretor Adjunto diz, todos os planos e golpes da Felina são precedidos de um estudo prévio bastante demorado e minucioso. Não acho que ela possa, em circunstância alguma, ter agido de improviso. Seria totalmente contra o seu método de trabalho. Ainda mais num projeto desta natureza, evidentemente perigoso. Sim, porque pelo que o Carlos afirma, ela prendeu sem grande esforço, dez perigosos bandidos. Ora, algo assim, nunca se faz de improviso… ― avançava Vítor Melo.
― Sim, sim, e pela quantidade de câmaras e sensores de que ela se escapou, nunca o conseguiria fazer sem planeamento e reconhecimento prévio. Aliás, ela precisava de saber inclusivamente a altura em que as câmaras e outras engenhocas de deteção no solar se encontravam desligadas. Sem isso não teria qualquer possibilidade de sucesso. Ela é boa, como o Vítor diz, mas não exageremos. Este plano deve ter alguns meses de preparação e, aliás, justifica porque não foi atrás da nossa armadilha no Museu. Genial raciocínio, meu caro coordenador. Peço já desculpas por me ter irritado consigo… ― desabafou Carlos Farelo.
― Cá para mim os homens são sempre a mesma coisa. Quando algo lhes interessa esquecem-se logo que estão na presença de uma dama. Diria que é uma enorme falta de educação, mas pronto, isto sou apenas eu a dar a minha opinião... ― interveio a jovem de rompante.
― Íris, desculpe... ― avançou o Farelo. ― Tem toda a razão.
― Além disso isto não são horas de a estarmos a incomodar. Já são seis e meia da manhã, A menina deve estar a precisar de descansar… ― começou por dizer o coordenador superior. Porém, acabou interrompido pelo Diretor Adjunto, que também confirmara as horas tardias que já tinham alcançado..
― Caramba! Ó Íris, desculpe este disparate, a menina já devia estar a dormir há muito tempo. Vamos embora, Vítor. Deixemos esta jovem senhora repousar um pouco. Já lhe ocupámos tempo que chegue. Quanto a si, meu caro coordenador, recomeçamos amanhã ao meio-dia. Foi a ordem que o Diretor Nacional deu a toda a gente. Assim que acordar peça um destacamento da PSP, para montar guarda à casa dos bandidos na Rua da Fábrica da Pólvora. Até lá podemos esperar pelo que será possível encontrar na casa. Já não haverá bandidos para a invadirem, pelo que não há perigo algum. Íris, peço mais uma vez desculpas. Não nos leve a mal, por favor. ―disse o Diretor Adjunto, encaminhando-se para a porta e levando atrás de si o coordenador superior.
Íris, mostrou-se delicada, agradecendo o cuidado que a Judiciária tivera com a sua guarda, durante toda a noite. Despediu-se de ambos com um beijo na face, sendo que o coordenador, sem que o Diretor visse, ainda levou com uma lambidela e um apalpão nas partes baixas. O homem quase acabava, com o salto que deu, ao colo do seu superior hierárquico, contudo, conseguiu controlar o balanço do salto e não esbarrar com as costas do outro homem, pouco mais de um metro à sua frente, a abrir a porta do elevador.
Assim que os viu, pela janela, a desaparecer nos seus carros, Íris, sem esperar mais tempo, vestiu um dos seus fatos e desceu até à garagem partindo com o mercedes de Érica para as suas instalações na Rua da Fábrica da Pólvora. Depois de apanhar o equipamento de que iria necessitar em casa, voltou a sair para a rua e começou a recolher as câmaras que instalara a quando da chegada dos bandidos ao prédio ao lado. Levou duas horas e meia a retirar todos os pontos de vigilância que instalara de novo e a esconder melhor aqueles que já possuía anteriormente. As últimas câmaras a retirar foram as da casa dos indesejados vizinhos.
A Felina, não só desmontou todas as câmaras como, igualmente, todas as cargas explosivas que instalara nas instalações do prédio aparentemente devoluto e abandonado. Eram oito e meia quando acabou a tarefa e guardou em sua casa, nos respetivos locais, todo o material recolhido, com as cargas explosivas já desativadas e devidamente arrecadadas.
Contudo, não satisfeita, regressou ao prédio ao lado, para fazer uma última busca à casa dos bandidos. Encontrou num fundo falso da gaveta da mesinha de cabeceira, do lado direito da cama, um caderno de contactos nacionais, brasileiros e internacionais de Jô Muttley. Finalmente já na garagem, precisamente quando vasculhava o fundo da nova zona onde tinha sido instalada a rede para proteger o armeiro, estranhou, desta vez, as rodas na mesa que servia de bancada de ferramentas.
As costas de madeira, com dois metros e vinte de altura, estavam cheias de pernes com ferramentas expostas. Mas porque haveria a bancada de ter rodas? Uma bancada de parede, aparentemente, não precisa de sair do sítio. Resolveu arredar a bancada. Ao fazê-lo a Felina pusera a descoberto uma porta bem disfarçada que descia para uma cave.
A jovem estava espantada por nunca ter dado com aquilo. Uma vez aí, ela descobriu uma enorme garrafeira, arcas de frio, um armazém de armamento e aquilo que ela imaginou ser uma sala de tortura. Afinal, bastava olhar para os equipamentos instalados para ter a certeza disso. Estavam lá também uma boa parte do armamento que vira antes atrás da rede na garagem. No final dessas instalações existia um corredor iluminado com luzes florescentes a cada cinco metros, que ela deduziu tratar-se de um corredor de fuga. Também deveria ter sido aquela passagem que, anteriormente, o bando usara para fazer a renovação da casa, sem dar nas vistas ou ser detetado pela vizinhança. O outro detalhe engraçado era o facto de os espaços terem todos tratamento de insonorização. Cuidadoso aquele Muttley, muito cuidadoso.
Uma pequena mesa e uma cadeira, a um canto, fazia de secretária apenas com um candeeiro, um caderno e uma caneta em cima do tampo. O caderno era um registo, tipo diário da vida de Muttley. Foi aí que ela descobriu que a mãe do bandido era egípcia. Daí a mania árabe do bandido, só podia.
Na posse desse caderno e do que encontrara no fundo falso, a Felina voltou à garagem. Poisou na mesa da secretária ambos os cadernos. Ia para encostar apenas a porta de acesso à cave, quando em vez disso voltou a aceder à mesma. Percorreu o corredor e acabou numa outra cave que tinha uma rampa e carrinhos de um condutor, preparados para transporte de mercadorias de diversas dimensões. Fora mesmo a partir dali que eles tinham arranjado e mobilado todo o prédio abandonado.
A rampa longa subia para um piso térreo de um enorme armazém abandonado. A um canto via-se montes de terra proveniente de onde fora feito o túnel. Vária maquinaria de construção civil também parecia agora abandonada. Dois jipes com alguns anos, estavam junto à saída do armazém. Ao espreitar o exterior percebeu que ficava mesmo ao lado do pequeno e velho armazém devoluto onde costumava esconder o seu carro. Agora sim, sentia que estava tudo mais que explicado.
Voltou para trás e regressou à garagem dos vizinhos. Deixou uma moeda sua na bancada junto aos dois cadernos e a bancada desarredada da parede. Com a porta à vista. Confirmou as horas. Eram nove e meia. Era tempo de sair dali. A Felina sentia-se cansada e suada. Aquele dia já muito avançado. Era tempo de regressar a casa.
Às dez horas estava, enfim, debaixo do chuveiro uma vez mais, no conforto do seu apartamento na Rua de São Bento. Finalmente, reconfortada, foi até à cozinha e preparou duas torradas e um copo de café com leite clarinho. Depois de comer foi-se deitar. Demorou dois minutos a adormecer. Que noite, mas que grande noite fora aquela. No entanto, apesar de tudo, ela estava feliz. Fora uma das suas melhores noites de Lua Cheia. O mundo dos sonhos tomou conta de Íris.
Vítor Fernandes de Melo, ainda não dormira. Acabara, pelas dez da manhã, de escrever o relatório onde apontara tudo o que Íris lhe tinha relatado sobre a Felina e boa parte dos elementos descritos pelo seu Diretor Adjunto, relacionados com a ladra, que era o seu principal dossier atualmente na Polícia Judiciária. Estava muito feliz com todos os avanços que tinha conseguido fazer. Lembrou-se ainda de Íris, que mulher, mas que mulher.
Contudo, a casa estava vazia e não existia qualquer sinal de reféns. Enquanto diversos elementos da GNR adormeciam os cães e os colocavam numa das carrinhas, outros juntaram-se ao grupo que vigiava a garagem. Esta aparentava estar vazia. Foi um dos oficiais da Unidade de Intervenção quem deu pelo tapete dobrado e por uma das moedas de cobre da Felina a brilhar em cima de um banco escadote, de dois degraus, num dos cantos opostos à entrada exterior da divisão.
No máximo silêncio, ao chegarem ao tapete, foi possível descobrir a entrada aberta, no solo, que conduzia à adega oculta. Sem o aviso da existência de reféns, sem aquele tapete velho dobrado e ainda sem o alçapão à vista, sinalizado pela moeda, todos acharam que seria muito difícil darem com aquela entrada para o subsolo, pelo menos em tempo útil de poderem acudir aos reféns com vida. Era mais uma dívida que podiam acrescentar às várias que já tinham para com a Felina.
O grupo desceu em silêncio a escada de acesso à adega e deparou-se com as oito celas. Não existiam sinais de qualquer guarda no espaço. De um lado via-se uma enorme garrafeira, maioritariamente composta por velhos vinhos tintos da zona de Colares, que pareciam estar ali adormecidos já há muitos e muitos anos. Do outro estavam oito celas, de construção relativamente recente.
Dava para perceber que o que existia desse lado direito, antes da construção dos módulos prisionais, fora arredado para a esquerda e para o centro da adega. Pipos e pipas, mesas grandes de madeira rústica, um enorme quadro com um esquema das colheitas ali guardadas escrito em letras bordeaux de estilo gótico, baldes e escadas de madeira, um armário com tesouras de poda e outros utensílios de vindima e um outro armário com cestos de vários tamanhos, cestaria de vime, certamente dedicada à apanha das uvas no tempo das vindimas. Havia ainda uma prateleira enorme com latas muito velhas de produtos antigos, tipo pesticidas e algum género de fertilizantes, logo depois da garrafeira.
Assim que mexeram nas portas das celas os pedidos de socorro, gritos aflitos e desesperados e o choro invadiram a cave. Era algo horrível de escutar.
Ao todo foram libertadas trinta e duas mulheres. treze de nacionalidade portuguesa e dezanove estrangeiras, com idades compreendidas entre os catorze anos e os vinte e cinco. Muitas tinham sinais de maus tratos e era evidente que todas tinham já servido de escravas sexuais. Era fácil detetar o ar quebrado e rendido às evidências da maioria do grupo. No entanto, pareciam estar bem alimentas, limpas e tratadas com algum cuidado como se fossem um bem precioso.
Apenas o grupo da última cela estava nu e amarado aos cantos de cada uma das camas, sendo a cela maior e não havendo beliches. Aparentemente, aquela era uma sala de sexo, para os residentes na quinta e devia ser utilizada com muita frequência. Algumas dessas mulheres apresentavam hematomas sérios, como se estivessem a ser educadas a aceitar a sua condição de escravas do sexo.
Este contingente feminino foi enviado para o hospital militar em Lisboa, sendo acompanhado por um grupo de mulheres da Polícia Judiciária, que mais tarde tratariam de recolher os devidos relatórios médicos e apresentar as declarações das vítimas, bem como a identificação de todo o grupo de reféns descoberto. Revoltante tinha sido o arsenal horripilante de objetos sexuais retirado daquela que já era apelidada como sala oito.
Finalmente, depois da quinta ter sido passada a pente fino, as restantes carrinhas e camiões da PJ e da GNR e mais alguns outros pedidos como reforços a ambas as forças da ordem, começaram a carregar por sala e depois da cave todo o espólio apreendido. O armazém escolhido para recolher tudo aquilo foi o maior existente na grande Lisboa, pertencente à aviação militar, da base de Sintra.
O exército também acabou por fornecer transportes para a retirada das peças maiores do espólio. Aquela fora uma megaoperação, a maior já realizada no país. Os documentos encontrados, reunidos na sala de vigilância pela Felina permitiriam, nos dias posteriores, capturar todos os cento e cinquenta elementos do bando em Portugal e solicitar à Interpol e Europol a prisão de mais quarenta e nove no estrangeiro. Um caderno encontrado na sala ainda relatava os assassinados efetuados pelo grupo, com datas e locais.
Desmantelada seria igualmente, nos dias seguintes, a rede de prostituição dirigida pelo Pintas em Lisboa. Setenta e sete, das cento e trinta e uma mulheres que veriam a liberdade, estavam no mesmo tipo de condições das descobertas na adega da quinta, em Sintra. Também tinham sido descobertos e iriam ser desmantelados mais sete armazéns de droga e quatro laboratórios clandestinos. Quanto à droga apreendida ia da marijuana até aos ácidos e à heroína e cocaína e rondaria um peso bruto a ultrapassar as quarenta toneladas de estupefacientes.
Mas as descobertas implicavam ainda cinco armazéns com carros e outros veículos motorizados roubados, três oficinas de transformação de viaturas para venda posterior, dois stands de venda de viaturas usadas e até uma farmácia que servia de fachada a um grande entreposto de venda de droga em Lisboa. Também seriam encerrados dois restaurantes, um na zona de Setúbal e outro em Lisboa e mais três bares que não passavam de locais de encontro de bandidos ou de espaços de fachada para a venda de armas e droga.
Carlos Farelo, ainda iria, com uma equipe especializada, na tarde desse dia, revistar a nova sede do bando, na Rua da Fábrica da Pólvora, uma vez mais, mas agora passando-a devidamente a pente fino, por via das dúvidas. O Diretor Adjunto estava a chegar ao fim da sua história. Porém, o seu braço direito, o coordenador superior, Vítor Melo, não parecia satisfeito.
― E dinheiro, joias, ouro, não encontraram nada? Ou o meu Diretor ainda vai mencionar essa parte das descobertas? ― indagou o coordenador superior intrigado.
― Ah, sim. No telemóvel de Jô, estavam na agenda registadas contas nacionais e estrageiras com cerca de setenta e nove milhões de euros em depósito. Mas ainda vai levar algum tempo até pormos a mão nessas importâncias. ― esclareceu a sorrir o outro.
― E na quinta, não havia nem joias, nem ouro, nem dinheiro? ― quis saber, insistindo, Vítor. ― Parece-me estranho que uma quinta com tanta coisa por lá e que por certo já era esconderijo do bando há muito tempo mesmo, não tivesse nada de valor…
― Com efeito, um dos quartos do primeiro piso continha uma pequena fortuna em marfim trabalhado, obras de arte, como quadros de alguns pintores célebres, esculturas em madeiras raras, vasos da dinastia Ming, um deles muito parecido ao que foi leiloado em 2011 por mais de dezasseis milhões de euros. Todavia, para além disso, ainda existia mais uma grande quantidade de artigos que ainda têm de ser inventariados e catalogados. ― esclareceu o Diretor Adjunto, visivelmente satisfeito com a operação.
― Sim, sim, mas e dinheiro vivo, joias e ouro? Não me diga que não encontraram nada de nada... ― insistia, ansioso, Vítor. ― No meio de tanta coisa…
― Não, com efeito não, quer dizer algum dinheiro, poucos milhares nos bolsos de seis dos bandidos, mas nada mais. Mas a que se deve essa tua insistência no assunto, Vítor? Não estou a entender porque insistes nesse assunto… ― quis saber Carlos Farelo, ligeiramente irritado com a atitude do seu braço direito.
― Porque, meu caro chefe, julgo ser evidente que deviam existir as três coisas, dinheiro, e muito, pelo menos algumas peças de ourivesaria, joias e peças em ouro, bem como, possivelmente ouro em barras. Numa casa com tudo o resto, parece-me evidente que deviam existir obrigatoriamente... ― repetia teimosamente o coordenador superior com uma certeza enervante.
― Pois é, meu perspicaz braço direito. Existia muito coisa, mas o que tu mencionas não faz parte das existências. Sinto muito, por nisso estares redondamente enganado. Isso já nem é mais assunto… ― afirmava absolutamente convicto o Diretor Adjunto.
― Então está tudo explicado! ― Vítor, sorria bastante satisfeito consigo mesmo e com a sua descoberta.
― O que está explicado, hum? Vá lá, eu conheço esse teu sorriso de triunfo. O que, com um raio, pensas tu que descobriste, hein? ― quis saber Carlos Farelo.
― Nada de mais, meu caro chefe. Apenas descobri o que foi a Felina fazer realmente àquela quinta. Ela foi atrás da ourivesaria, do dinheiro e do ouro. Garanto-lhe que não era coisa pouca. Ela já se pagou do serviço.