Desabafos de um Vagabundo: Série Romance - A Felina - Noites de Lua Cheia - 7
II
AQUI HÁ GATO…
II
A gata fechou os programas e acessos e desligou o computador. Já sabia quem eram os cinco meliantes. Tudo malta da pesada, diria o seu avô. Não lhe restavam dúvidas que tinha de ter cuidado com aquela gente horrorosa. Por fim, resolveu não pensar mais naquilo e tratar de coisas práticas.
A Felina dirigiu-se à encomenda e abriu-a. Conferiu as noventa e nove facas feitas a pedido, em Carbotanium uma liga patenteada de titânio e fibra de carbono, com um acabamento negro, lindas de morrer. Adorou o facto de, na encomenda, não vir um, mas dois fatos completos. Ela pedira o segundo já fora de prazo e não sabia se viria com aquela remessa. Quanto à patente do Carbotanium ela gamara-a à Pagani, o fabricante italiano de automóveis. O que aquela liga criava, no seu uso em facas, era a leveza das mesmas se comparadas com as rivais, mas com um desempenho muito superior. Testou duas ao acaso e deu um grito de alegria. Leves, precisas e velozes. Uma verdadeira maravilha. Iria que ter cuidado, pois cortavam até o pensamento.
A Felina sorriu. O seu fornecedor brasileiro tinha um fraquinho por ela. Não havia nada que idealizasse que o homem não conseguisse fazer chegar a bom porto. Juntou os elementos dos novos fatos e foi pesar cada conjunto separadamente. Mesmo com o acréscimo das facas o equipamento completo chegava agora aos três quilos e quase meio. Maravilhoso, mesmo extraordinário, pensou. Onde teria o homem conseguido reduzir no peso?
Ao pesar tudo separadamente descobriu que o macacão perdera duzentos gramas, o cinto das utilidades, já munido de todo o equipamento, ficara também cem gramas mais leve, as proteções especiais para os ombros, cotovelos, pulsos e joelhos tinham perdido outras cento e quarenta gramas no total das oito peças, mas a grande redução fora nos ténis. Uma significativa diminuição de duzentos e noventa gramas por cada sapato, assim, com tais reduções, as cento e vinte gramas das facas tinham sido eliminadas da equação e mais de um quilo do fato original desaparecera.
Testou um dos dois pares de ténis recebidos. Adorou a aderência ao solo, a leveza que davam ao andar e o facto de ficar quase cinco centímetros mais alta, sem que isso parecesse dever-se ao calçado. Foi ver as especificações. Kevlar e seda e da sua liga de Carbotanium, a espuma na base era feita de um material também usado pela NASA para revestimentos espaciais. Levíssima, de desgaste difícil e aderente a todo o tipo de superfícies. Um verdadeiro fenómeno. Agora podia até caminhar nas nuvens, pensou.
Feliz, a Felina foi comer. Decidiu usar a cozinha normal. Até voltar a sentir-se em segurança só a usaria para que o cheiro de cozinhados não revelasse o esconderijo. Para isso bastava-lhe fritar por vezes um pastel de bacalhau. O cheiro a fritos disfarçaria a segunda opção, no caso das pessoas sem a sua deficiência olfativa. A rapariga achava que estava pronta e em forma para defrontar os seus novos vizinhos. Não sabia se conseguiria ser perfeita, porém, criara as condições para que isso fosse uma realidade plausível.
Aquele final de semana, em pleno verão, com um feriado na segunda, seria, no seu entender, a melhor altura para os penetras tratarem da vizinhança. Se escapasse haveria de contra-atacar. Contudo, para ter sucesso, teria de apanhar os elementos do grupo sozinhos e desprevenidos, um a um. Ainda lhe restava algum tempo para pensar no assunto. Para já, de acordo com o seu plano, só lhe faltava simular uma saída pela porta das traseiras do edifício.
Saiu de casa, abriu a porta das escadas de serviço ao fundo do corredor e deixou-a escancarada. Com jeito fez uma marca na parede imitando o bater do puxador da porta ao ser aberta à presa e com força. Em seguida largou, a meio da descida, na berma de um degrau, um gancho de cabelo.
A jovem mulher continuou a descer as escadas seguindo o seu plano. De súbito, tornou a subi-las e prendeu quatro ou cinco dos seus cabelos no gancho que acabara de largar, depois voltou a descer a escadaria e, ao chegar ao piso térreo, abriu a porta de serviço e deixou-a encostada, como se não tivesse lembrado de a fechar ou sequer tido tempo, devido à pressa com que fugia do local.
Marcou bem no chão os seus sapatos de salto na terra batida das traseiras, como se tivesse corrido, até ao seu carro. Um Dacia Duster SL Adventure, negro, equipado para a aventura, na versão limitada de série, com jantes de liga leve de dezassete polegadas Parana, mais as proteções laterais das portas e proteções das cavas de roda. Custara-lhe um pouco acima dos vinte mil euros, mas valera a pena. Guardou no espaço do airbag frontal e lateral do passageiro um dos dois novos equipamentos de trabalho que recebera.
Fez o carro sair em derrapagem do estacionamento e foi escondê-lo, a duzentos metros dali, num armazém sem portas, a cair de velho, à beira de um acesso para a Avenida de Ceuta, retirou um dos dois camuflados especiais que mandara fazer quando adquirira a viatura. Agora o carro parecia um monte de lixo. O outro camuflado só o usava em situações ligadas à natureza. Regressou de sabrinas ao apartamento, não deixando marcas no solo e subiu descalça, pelas traseiras, as escadas de acesso a casa. Agora sim, sentia-se melhor. Podia ser impressão sua, mas ela achava que eles iam mesmo atacar.
A Felina ativou as armadilhas internas que inventara para o interior do seu lar. Haveriam de morrer alguns a tentar eliminá-la. Depois pensou melhor… voltou atrás e desarmou todas as emboscadas. Se eles chegassem a um sítio com esse grau de preparação iam perceber duas coisas: primeiro que ela já sabia deles e que estava preparada para os defrontar. Segundo, que era um elemento perigoso e conhecedor do seu inimigo.
Ora, ela não queria nada disso. Aquele tipo de defesa era generalizada e visava defendê-la de um qualquer ataque indiscriminado e fatal, porém, na presente situação o elemento surpresa, ainda era, pelo menos por enquanto, o seu maior trunfo. Tinha que agir de repente. Ficou satisfeita por ter desarmado as suas ratoeiras no interior da casa.
Uma defesa generalizada, como a que tinha montada, obrigá-la-ia a ter de mudar de esconderijo, teria de abandonar de vez a casa do pai. Porque a exporia em demasia. Ora, ela não pretendia abandonar um ninho que lhe era tão querido e que ela adaptara à sua imagem e semelhança. Ainda para mais numa altura em que se encontrava em negociações para comprar o apartamento vazio do seu piso.
Sentada na sua secretária, olhou para o calendário no computador: quinta-feira, dia onze de agosto. Eles não iriam agir antes de sábado à noite. O fim-de-semana prolongado dava-lhes uma margem confortável para eliminar os vizinhos, transportá-los para algum lado e verem-se livres de qualquer vestígio no seu prédio, depois do ataque. O feriado de segunda-feira, dia quinze de agosto era o ideal para não se precipitarem a agir. Ela faria o mesmo.
Já teriam dado por ela no terceiro andar? Desde que viera do Brasil, e como era seu hábito, ela só entrara à noite no seu prédio e pelas traseiras. Era uma forma preventiva de, num qualquer regresso, depois de uma grande ausência, não ser apanhada desprevenida. As câmaras deles, embora não as tivesse detetado todas não possuíam infravermelhos, não descobrira uma única câmara térmica, nem qualquer sensor de movimentos. Poderiam vir a efetuar uma melhor vigilância do perímetro, mas, para já, o que ela descobrira era uma cobertura mínima de vigilância.
Uma ideia começou a desenvolver-se na sua cabeça. Tinha dois dias para agir. Com uma pouco de sorte, quiçá… talvez conseguisse até salvar os seus vizinhos. Mas primeiro precisava ter a certeza que não fora detetada pelas câmaras daquele bando. Abriu a visualização do sistema de vigilância no ecrã gigante, que tinha na parede, atrás da sua secretária e, de comando na mão, rodou a cadeira cento e oitenta graus.
Rapidamente reviu as imagens desde o momento em que instalara as câmaras de vigilância do prédio devoluto. Notou que naquela quinta-feira existira uma grande azafama de limpezas. A quantidade de vezes que os bandidos tinham vindo pôr lixo nos contentores era deveras anormal. A certa altura, inclusivamente, eles passaram a utilizar os caixotes do seu prédio por já terem enchido os deles. Coisa estranha.
(continua) Gil Saraiva