Este blog inclui os meus 4 blogs anteriores: alegadamente - Carta à Berta / plectro - Desabafos de um Vagabundo / gilcartoon - Miga, a Formiga / estro - A Minha Poesia. Para evitar problemas o conteúdo é apenas alegadamente
correto.
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Numa altura em que foram publicados no site do INE os resultados preliminares do Censos 2021 e em que Portugal se prepara para seguir a via do desconfinamento e embora o Certificado Digital Covid-19 ainda dê problemas para chegar a todos os que já estão em condições de o ter, há coisas que realmente correm bem no reino luso, como, por exemplo, o auto agendamento, que cada vez tem menos travadinhas informáticas quando se tenta aceder a ele, embora ainda não esteja cem por cento funcional.
Positiva é, igualmente, a grande luz que se faz sentir sobre o adiamento dos tratamentos, consultas e operações, não relacionadas com a pandemia, minha querida amiga Berta. Porém, na realidade, existe falta de clareza na informação das responsabilidades criminais do pessoal ligado à saúde ou aos lares e à assistência social, onde possam vir a ocorrer óbitos provocados por contacto com estes trabalhadores que, devendo estar vacinados, optaram por não o fazer.
Parece certo que poderemos vir a assistir à abertura de processos judiciais, onde estes funcionários (e as instituições onde trabalham) correm o risco de ser diretamente acusados e condenados de homicídio por negligência, segundo a opinião de muitos advogados e constitucionalistas, pese embora o facto de, nesta altura, a situação ainda se manter na fase de avaliação e discussão temática.
Mas hoje, num mundo cheio de informação onde as novidades rapidamente se tornam obsoletas, prefiro falar um pouco do Censos 2021. De acordo com os primeiros resultados, Portugal, que tinha ainda tido um crescimento modesto da população de 5% entre 1991 e 2001, o que se traduzia num abrandamento significativo e constante, face às outras duas décadas anteriores, e um desacelerar de crescimento, menos significativo, de apenas 2%, entre 2001 e 2011, gerou, na última década, entre 2011 e 2021, minha simpática amiga Berta, uma verdadeira viragem ao entrar numa espiral real de declínio populacional, que nos retirou mais de um quarto de milhão de habitantes do país.
Em resumo, encolhemos de forma significativa nos últimos dez anos. Menos do que as previsões internacionais diziam (na casa dos 400.000 a 500.000 habitantes), mas, mesmo assim, é inegável que se trata de um encolher populacional grave e preocupante. A chegada de populações vindas da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, ou de outros pontos do globo, o regresso de muitos dos nossos emigrantes e a natalidade nacional não conseguiram, portanto, travar o envelhecimento e perda de população em termos globais. Mais grave se torna a situação se pensarmos que deveríamos crescer entre 250.000 a 500.000 habitantes e que em vez disso perdemos um quarto de milhão.
Numa outra perspetiva, é fácil de concluir que entre o abrandamento do crescimento e a realidade da atual diminuição da população, o país sangrou, perdeu ou fez evaporar, por força das circunstâncias, no século XXI, cerca de um milhão de habitantes, ou seja, 10% da sua atual população. Se nada for feito, amiga Berta, para inverter esta tendência, o final do século XXI pode apresentar Portugal com uma população total de apenas 6 milhões de habitantes, a mesma que tínhamos em 1920, há cem anos atrás. Uma verdadeira calamidade.
Podem os mais distraídos julgar que eu estou a ser exagerado, que algo assim é totalmente impossível, mas é para aí que caminhamos a passos mais largos do que aqueles que eu descrevi, efetivamente a Comissão Europeia prevê que a área em desertificação, em Portugal, passe dos atuais 68%, já observados em 2021, para os 93% previstos para 2050. Se pensarmos que em 1961, ano em que eu nasci, a área em risco de desertificação do país era de 23%, minha querida amiga, ora isso dá para ver bem a rapidez e evolução do flagelo. Em apenas 90 anos a desertificação pode subir, no mínimo, 70%, nunca menos. Contudo, estamos apenas a 29 anos dessa linha aflitiva e absolutamente grave.
Temos de agir enquanto país, e quanto antes, se não queremos ficar com um aspeto territorial semelhante ao do deserto do Sahara daqui a menos de três décadas. Mais grave ainda é que se somarmos estes dados, todos eles descritos e avançados nos inúmeros relatórios a que tive acesso, associados à diminuição gradual e progressiva que já se regista na população nacional, tal fusão de eventos pode fazer com que acabemos o século XXI com apenas um quarto da nossa população atual, ou seja, 2,5 milhões de habitantes.
Aliás, minha querida Berta, o Tribunal de Contas tem publicados diferentes alertas, aos sucessivos governos, no que respeita a estas áreas de combate à desertificação, ao auxílio na reposição da neutralidade dos solos, evitando a sua degradação, e posteriormente à reposição de solos produtivos e sustentáveis. Contudo, o Tribunal avisa que não consegue detetar para onde foram os milhões destinados ao combate à desertificação entre 1996 e 2021. A verdade é que estamos a perder todos os anos um por cento do território para a desertificação. Temos recebido verbas de vários programas, desde a Organização Nações Unidas até à União Europeia, sem que exista uma evidente aplicação destas verbas neste combate fundamental.
O assustador aumento dos incêndios parece tornar-se uma inevitabilidade e a nossa passagem de clima temperado a clima tropical já é quase um facto consumado. Temos de inverter esta situação ontem porque, afinal, amanhã, já será tarde demais. Acabei por me sentir árido com tudo isto, fico-me hoje por estes pensamentos, minha querida, recebe um beijo de despedida deste teu companheiro de desventura e de algumas alegrias,
(Fotografias de Gil Saraiva - Bombeiros de Campo de Ourique)
Olá Berta,
Esta é a última de três cartas, sobre “O Que Se Passa em Campo de Ourique - Conversa à Mesa do Café" – Os Bombeiros de Campo de Ourique – Espírito Pioneiro. A presente carta trás consigo, pelo menos, mais duas situações que eu desconhecia de todo. Hoje o assunto versa, entre outras novas informações, aquelas que para mim constituem surpresa.
Efetivamente o Adjunto de Comando, André Fernandes, conseguiu fazer-me abrir a boca de espanto mais uma vez, nesta recolha de novos e surpreendentes conhecimentos, sobre os Bombeiros de Campo de Ourique, eles que são uma das sete corporações de Soldados da Paz existentes no Concelho de Lisboa.
Afinal, os “meus” bombeiros, e digo meus porque transportam consigo o nome do meu bairro (a que chamo meu, porque nele vivo e nele me sinto parte de um todo) que estão sempre prontos para socorrer e assistir quem deles precisa (ainda há poucos dias estiveram em Monchique), sem que disso sejam obrigados, tinham, minha cara amiga, muito mais para me revelar.
A conversa com o Adjunto do Comando já ia longa sem que André Fernandes demonstrasse qualquer pressa em lhe pôr um fim. A certa altura, enquanto me falava das viaturas ao serviço no quartel, que iam das quatro ambulâncias, ao veículo urbano de combate a incêndios, passando pela história adorável de como tinham transformado, estando já em fase de ultimação, um camião de transporte de leite num autotanque, até ao veículo de combate florestal e ao veículo ligeiro de combate a incêndios, veio à baila a necessidade de renovar este último.
No meio do diálogo, querida Berta, acabei por não anotar se tinham apenas um a funcionar e precisavam de renovar um segundo ou se se tratava de renovar o único existente. Porém, o relevante era mesmo a necessidade de atualizar devidamente uma das viaturas da corporação. Estas necessidades poderiam ser superadas mais rapidamente se o apoio da população, e de um ou outro mecenas, fosse mais relevante, o que atualmente era, cada vez menos, o caso.
(Corredor de Fardamentos - Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique)
Como não podia deixar de ser, eu, que desde que entrara no quartel vira o estado de degradação em que todo o edifício se encontrava, encaminhei a conversa para a humidade visível, e para a falta de manutenção adequada, que era notória em todas as instalações no seu conjunto. Ora, cara Berta, sem qualquer vergonha o Adjunto do Comando reconheceu o óbvio. Aquele quartel fora antigamente uma fábrica de contadores de água, que por se encontrar ao abandono, fora ocupada pelos Bombeiros de Campo de Ourique, e transformada em novo quartel, precisamente porque as antigas, pequenas e obsoletas instalações da Rua Francisco Metrass tinam começado a meter água à séria.
Atualmente, a manutenção era efetuada à custa das artes e ofícios dos próprios bombeiros. O eletricista desenrascava o que era necessário para manter as ligações operacionais, os carpinteiros ajudavam na reparação de algum mobiliário, os canalizadores faziam o mesmo, bem como os pintores e outros ramos de operários que, simultaneamente, acumulavam as funções de bombeiros voluntários com a sua normal atividade laboral. O problema não era, portanto, o custo da mão de obra, porque essa era oferecida, mas o custo dos materiais para se fazerem as reparações.
Um sorriso no rosto de André fez-me perceber que vinha a caminho mais uma revelação, aliás, minha querida amiga, uma verdadeira surpresa. Porém, contava-me o Adjunto de Comando, a situação das instalações dos Bombeiros de Campo de Ourique, estaria certamente resolvida nos próximos anos, não mais que uma mão cheia deles e isso no máximo, afirmava ele convicto da situação.
Ao que parecia o imenso terreno, onde a corporação estava instalada, tinha-se valorizado de sobremaneira ao longo dos anos e era agora um território a que a Câmara Municipal de Lisboa queria deitar mão, para depois o valorizar em termos imobiliários, devido à situação estratégica e à excelente vista que proporcionaria a quem viesse a viver naquele local. Não apenas vistas para Monsanto, mas até ao Tejo se a construção fosse baseada em estruturas verticais de maior altura e porte.
Ora, para isso acontecer a Câmara iria em breve mandar construir um novo quartel para os soldados da paz, muito bem localizado, dentro do bairro e com facilidade de acesso a algumas vias principais da cidade de Lisboa.
O local mais provável, amiga Berta, parecia ser a perpendicular à rua Ferreira Borges, na Rua de Campo de Ourique, do lado direito de quem vem a subir a Rua do Sol ao Rato, mesmo antes de chegar à Ferreira Borges, onde hoje se encontram uma imensidade de edifícios vazios e devolutos, prontos a dar lugar a um novo quartel de bombeiros. O local permitiria que os bombeiros ficassem com três saídas estratégicas das instalações, consoante a necessidade e urgência de cada situação, para outras tantas vias.
A alienação do atual terreno dos bombeiros dava e sobrava para a construção de raiz do novo espaço. É claro, dizia-me André, que continuariam com necessidades e carências para poderem ter um funcionamento menos preocupante, mas a atualização das tabelas de preços dos serviços prestados pela corporação, que se mantinham os mesmos desde há doze, treze ou catorze anos poderia ajudar.
Havia ainda a possibilidade de poder gerar algum rendimento através de dar formação aos lisboetas nas áreas dos primeiros socorros e outras, bem como às empresas, ou até de conseguir alguém capaz de elaborar um crowdfunding dirigido a necessidade específicas da instituição.
(Sala de Formação - Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique)
Explicar às empresas e às pessoas que donativos em dinheiro ou em espécie, estavam abrangidos ao abrigo da Lei do Mecenato e que, portanto, eram donativos deduzíveis aos impostos, era ainda outra grande tarefa que eles tinham em mãos, minha querida amiga Berta.
Se alguém doasse, por exemplo, uma televisão ou casaco de cabedal ou uma bicicleta, o donativo aceite é traduzido pelo seu custo de mercado e a pessoa pode descontá-lo no IRS, sem precisar de ser ela a o transformar em dinheiro, elucidava-me André. Tinham era de arranjar formas de cativar a comunidade e gerar o envolvimento com eles, de forma a que todos se pudessem vir a sentir parte deste todo que se desejava implementar, ajudando a criar e fomentar esta interação.
A outra preocupação do Adjunto de Comando era fazer-me ver a importância do reforço de sócios dos Bombeiros de Campo de Ourique. Afinal, com apenas cerca de vinte euros pagos por ano, um novo sócio, se somado a muitos outros, pode contribuir de sobremaneira para suprir as necessidades mais urgentes dos soldados da paz.
André achava até que as pessoas deviam vir conhecer o quartel, visitar a sala-museu ou vir comer ao restaurante de forma a que a interação com o seu corpo de bombeiros pudesse crescer de forma sustentável e com isso ajudar a tornar mais fortes os laços comunitários. Era contagiante o carinho, dedicação e amor daquele homem aos bombeiros.
Uma pessoa pode não precisar dos bombeiros durante anos, mas quando precisa quer certamente ter a certeza de que pode contar com eles. A conversa à mesa do café aproximava-se do fim, minha querida amiga, e eu ainda não perguntara a André como faziam, nos dias de hoje, para arranjar pessoal, a mão de obra tão necessária para a existência de bombeiros voluntários.
Segundo o Adjunto de Comando, os voluntários estavam destinados a acabar em todo o país. Cada vez menos gente conseguia estar disponível para ir passar horas e horas, dias e mais dias, depois do seu horário de trabalho, afastado da família, a dar o tempo aos voluntários.
Antigamente era mais fácil, por exemplo, em Campo de Ourique, e sabendo que apenas as classes mais baixas estão, maioritariamente, disponíveis para servirem como bombeiros, a angariação de jovens era feita nas franjas menos abonadas do bairro, fosse na zona da Maria Pia ou da Meia Laranja, fosse mesmo no Casal Ventoso, onde, segundo André Fernandes, centenas de jovens foram, ao longo dos anos, salvos da droga, porque precocemente integravam os bombeiros voluntários como infantes e mais tarde cadetes, na esperança de chegarem a bombeiros.
(Parte das Salas Museu dos Bombeiros de Campo de Ourique)
Fiquei impressionado com mais esta surpresa, para mim uma verdadeira revelação, contudo, a lógica era inegável, se um jovem, ainda criança, tinha um objetivo nobre era, por força da situação, mais difícil que se metesse na droga.
De repente ao escutar o que o Adjunto me contava comprovei que, pelo que eu próprio conhecia que ele tinha toda a razão. Cheguei mesmo a inventar, para o interior dos meus pensamentos, um novo provérbio: “Gente fina não veste à bombeiro nem segura mangueira.” Sorri para mim mesmo. Era uma realidade… aos poucos os voluntários iriam, nos próximos anos, dar lugar a um cada vez maior número de bombeiros profissionais pagos pela sua função, devidamente, com uma carreira e devida progressão ao longo da vida. Era engraçado, querida Berta, que eu nunca tivesse pensado nisso.
Olhei para o relógio, a conversa estava a chegar às três horas de duração e o meu caderno já tinha cinco páginas cheias de apontamentos relevantes. O Adjunto de Comando devia querer ir-se embora, porém, fosse por educação ou gosto de me informar sobre assuntos que para ele eram uma evidente paixão, não dava qualquer mostras de cansaço da entrevista, nem de mim, por sinal.
Andávamos agora às voltas pelo quartel, enquanto ele me ia explicando tudo, passámos pela sala de formação, pelas instalações do comando e do comandante, sala de reuniões e foi nas salas do pequeno museu da instituição que uma fotografia me chamou a atenção. A foto, que me esqueci de apanhar com a máquina fotográfica que tinha ao peito, mostrava um grupo de raparigas, todas fardadas com a farda de bombeiro. Ingenuamente perguntei se era algum coro.
André Fernandes riu-se. Não, não eram coro algum, nem faziam parte de fanfarra ou de banda dos bombeiros. Aquela fotografia era a prova de que os Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique, tinham sido o primeiro quartel de bombeiros de Portugal continental e ilhas a promover a igualdade de género e a incorporar no seu seio um corpo de bombeiros femininos de doze ou treze mulheres, já não tinha a certeza. Decorria o ano de mil novecentos e oitenta e um e, mais uma vez, o comandante via-se na dificuldade de angariar novos voluntários. Ao consultar os regulamentos e normas dos bombeiros, notou que estes nunca se referiam a bombeiros masculinos, mas sim a indivíduos.
Decidiu então consultar a autoridade máxima dos bombeiros nacionais a quem perguntou se a palavra indivíduos nos regulamentos e normas se referia apenas a indivíduos ou também a individuas. O seu superior nacional pareceu incomodado com a questão. Não havia individuas, a palavra indivíduos não tinha género, era como dizer pessoas, esclareceu indagando o porquê de tal disparate. O Comandante dos Bombeiros de Campo de Ourique esclareceu prontamente que aproveitava a ocasião para comunicar superiormente que no fim daquele mês o seu quartel teria uma nova secção de bombeiros femininos.
A polémica gerada foi imensa, mas o Comandante levou a sua avante e foi assim, querida Berta, que os quarteis de bombeiros passaram a ter homens e mulheres na sua constituição. Esta foi a minha maior surpresa nesta entrevista à mesa do café. Senti-me orgulhoso por saber que os “meus” bombeiros foram geradores e pioneiros na promoção da igualdade de género dentro da instituição que compõe os nossos soldados da paz. Mais ainda por saber que a minha rua, a Francisco Metrass, foi berço das primeiras bombeiras de Portugal. Caramba, vivam os Bombeiros de Campo de Ourique. Com isto termino, espero que tenhas gostado, minha querida Berta, recebe um beijo deste teu camarada,
Gil Saraiva
(Entrada Principal - Bombeiros de Campo de Ourique)
Sendo esta carta a segunda, de três, sobre “O Que Se Passa em Campo de Ourique - Conversa à Mesa do Café" – Os Bombeiros de Campo de Ourique – Até Onde. A narrativa, hoje versa, entre outras novidades, mais uma das surpresas que tive do diálogo com o Adjunto de Comando, o senhor André Fernandes, em representação dos Bombeiros de Campo de Ourique.
Fiquei a saber que a corporação ronda os quarenta bombeiros no ativo, descontando os oito estagiários e os alunos da Escola de Infantes e Cadetes, sim porque, querida Berta, esta associação também ensina, sendo que, de momento, a escola é frequentada por quinze pupilos, que também compõem os elementos ativos da fanfarra.
Para além do pessoal já referido a casa conta também com mais quatro pessoas entre o pessoal administrativo e de limpeza. Porém, não sei bem como, eles conseguem ir dando conta do recado, com um número relativamente escasso de soldados da paz, ainda mais que, como fiquei a saber, destes quarenta, apenas dezoito estão integrados como bombeiros profissionais, ou seja, os restantes bombeiros são voluntários e só estão disponíveis depois de acabarem os seus trabalhos na outra atividade, sejam eles enfermeiros, carpinteiros, lojistas ou trabalhadores de uma qualquer empresa. Fiquei a pensar que aqui existe muita alma.
Para meu espanto, e juro-te amiga Berta que estava assombrado, não tivesse eu já sido presidente dos Bombeiros Voluntários de Sintra, descobri que embora não tendo ligação direta ao INEM e não possuindo nenhuma viatura do organismo, tinham quatro ambulâncias ao serviço da população a funcionar através do DIPEPH, que mais não é que o Dispositivo Integrado e Permanente de Emergência Pré-Hospitalar.
Ora bem, o DIPEPH funciona como, deves estar tu, amiga Berta, a perguntar, pois pouco entendes de bombeiros? Ele é, para explicar resumidamente, um programa coordenado pela Câmara de Lisboa, através do Serviço Municipal de Proteção Civil, que trabalha, entre outras muitas valências, com o INEM, reforçando a assistência do mesmo, em viaturas, serviços e pessoal, quando esta é solicitada.
(Imagens de Gil Saraiva - Parte da Sala Museu dos Bombeiros de Campo de Ourique)
Como fontes de rendimento as coisas não estão famosas para estes soldados da paz, pois os sócios (já para não falar nos voluntários) são cada vez menos, fruto da mudança de estratos sociais no bairro, penso eu que já lidei com estes assuntos. Com efeito, embora pareça contraditório, quanto mais educada e instruída é a população de um bairro, quanto mais este deriva da classe baixa para a média ou a média alta, como tem acontecido com Campo de Ourique, menor é o apoio económico dado aos bombeiros locais. Assim como também diminui drasticamente o número de gente disposta a ser bombeiro voluntário.
Aqueles que estão bem economicamente tendem a pensar que não é sua responsabilidade contribuírem para os seus bombeiros, porque estes devem ser obrigatoriamente apoiados pelo poder autárquico e pelo Estado. Ora, isso é verdade, mas apenas em parte, estas entidades cobrem as despesas mínimas da associação, mas não muito mais do que isso.
Assim, se é necessário adquirir mais uma viatura, reforçar o quadro de pessoal profissional, arranjar equipamento novo para substituir o obsoleto ou deitar mão a um novo serviço, os recursos vindos pela via institucional são, e serão sempre, muito inferiores às verdadeiras necessidades de uma corporação de bombeiros.
Por sorte, segundo me contou o Adjunto de Comando, existe um benemérito que tem ajudado com a aquisição de equipamento, só não me foi dito quem ele é porque a pessoa pretende manter o anonimato. Apesar deste auxílio as necessidades são muito superiores às receitas e era bom ver a população a aderir à condição de sócio dos bombeiros.
Como complemento extra a associação tem ainda um parque de estacionamento, para os residentes do bairro que aí pretendam guardar as suas viaturas, bem como um bar e restaurante, aberto a toda a população, mas concessionado, o que faz com que os bombeiros não tenham qualquer desconto nas refeições. Aliás, a escassez de recursos tem feito desenvolver o espírito inventivo dos homens da paz.
Com efeito, estão a ser pensadas ações de formação pagas para os sócios, empresas e população em geral, seja no âmbito dos primeiros socorros, seja na prevenção e combate a incêndios. Esta ideia de gerar novos recursos e de cativar a população numa modalidade de quartel aberto a todos veio do próprio combate à pandemia de Covid-19, e à diminuição ainda maior dos recursos disponíveis, sendo que o Plano de Contingência da Câmara Municipal de Lisboa sempre ajudou com o fornecimento atempado, dentro do razoável, de equipamento de proteção individual.
(Mostra de equipamentos - usados em formação)
Porém, embora este extra fosse precioso, isso não tem impedido que, no decorrer deste ano e meio, não existam sempre dois ou três bombeiros infetados e outros tantos remetidos ao isolamento profilático, o que tem reduzido o número médio de ativos ao serviço em dez ou quinze por cento, desde o início da pandemia.
Mas o que me espantou, minha querida amiga Berta, aquilo que me fez ficar de boca aberta foi a novidade seguinte. Estava eu a dizer a André Fernandes (já sem o senhor, a pedido do mesmo), o Adjunto do Comando, que Campo de Ourique era um bairro e uma freguesia densamente populosa, e que considerava que eles estavam abaixo dos recursos necessários para fazer face a uma emergência maior que pudesse surgir, quando o vejo a sorrir para mim, como se eu estivesse a dizer uma asneira que, no entanto, não deixava de ser engraçada por ser tão fora da realidade.
Falta de recursos para o bairro não era coisa que alguma vez tivesse passado pela cabeça do Comando dos Bombeiros de Campo de Ourique. O problema era que a área dos bombeiros que eu julgava, induzido pelo nome, serem só para serviço da área da freguesia, também se estendia para além das fronteiras do bairro.
André Fernandes sorria enquanto me informava, orgulhosamente, que eles também eram os Bombeiros da Freguesia de Campolide, cobrindo todo o território do bairro vizinho, indo a sua área de influência até Benfica, São Domingos de Benfica, Avenidas Novas e Santo António com quem estabeleciam fronteira. Estava eu a argumentar que o espaço a cobrir em Campolide era quase duas vezes a de Campo de Ourique e o meu novo amigo André já não sorria, em vez disso, ria descaradamente.
Quis saber em que é que o meu espanto o fazia rir daquela maneira. Ele acalmou-se e esclareceu-me que os Bombeiros de Campo de Ourique, também eram os Bombeiros da Freguesia da Estrela, indo até ao Tejo e fazendo fronteira com Alcântara e Misericórdia, sendo que aí a área abrangida era mais de três vezes a do nosso bairro. A vantagem era que, em termos de densidade populacional, quer a Estrela quer Campolide, tinham cerca de um terço da densidade de Campo de Ourique. Não era uma tarefa fácil, reconhecia André Fernandes, mas até agora, com mais ou menos sacrifício, sempre tinham dado conta do recado.
Juro-te, querida Berta, que se tivesse levado o meu chapéu, aquele teria sido o momento ideal para o tirar àquele bem-disposto Adjunto de Comando. Adversidade e resiliência pareciam palavras tão corriqueiras como pandemia ou teimosia e orgulho. Nesta altura a minha admiração sobre os Bombeiros de Campo de Ourique estava em níveis elevadíssimos, contudo, ainda haveria de subir mais com a surpresa que deixo para a parte final, amanhã, desta entrevista à mesa do café. Por hoje é tudo, beijos,
Gil Saraiva
(Imagem de Gil Saraiva às Homenagens sempre presentes aos bombeiros mortos no cumprimento do dever)
Nesta carta, e nas duas seguintes, regresso ao tema sobre “O Que Se Passa em Campo de Ourique? Conversa à Mesa do Café" – Os Bombeiros de Campo de Ourique – Da origem ao Futuro. A conversa, que terei de dividir em três cartas, porque foi longa, esclareceu-me imensos detalhes sobre estes voluntários que antes de serem bombeiros já eram, por natureza, providos de uma imensa alma repleta de altruísmo.
Aliás, sobre estes soldados da paz fiquei a saber três coisas verdadeiramente surpreendentes que, querida Berta, te revelarei durante estas próximas cartas. A conversa, que por opção da corporação, não foi o Presidente da Direção dos Bombeiros, o doutor João Ribeiro, um homem com laços muito fortes às forças da ordem, porque, querendo eu saber da história da instituição, se considerou que o Comando era mais habilitado para este tipo de diálogo.
O senhor André Fernandes, adjunto de Comando, foi quem substituiu o Comandante Luís Neto, que não pode estar presente na entrevista devido a uma urgência, pelo que entendi, relacionada com problemas numa viatura. Tendo eu, obviamente, aceite e compreendido a ausência do Comandante, e sendo esta uma viagem entre o passado e o futuro, foi com agrado que descobri que André Fernandes é um bombeiro de terceira geração e que quer o seu pai quer o seu avô foram comandantes da associação.
A ideia desta Conversa à Mesa do Café, veio de outro bombeiro, o senhor Miguel Oliveira, que graciosamente se dá ao trabalho de ir mantendo a instituição viva e pulsante nas redes sociais, nomeadamente, no Facebook. Sempre que a vida lhe permite este bombeiro, e carpinteiro de primeira água, lá se vai dando ao trabalho de fotografar, filmar e registar nos anais da internet, para quem quer ver, a ação e intervenção dos Bombeiros de Campo de Ourique nas diferentes vertentes do seu imenso trabalho. Tem sido, aliás, graças a ele, a quem agradeço de coração, que eu tenho acompanhado a corporação com alguma regularidade.
Saindo deste aparte, do parágrafo anterior, e voltando ao André Fernandes e à Conversa à Mesa do Café, foi com surpresa, a primeira de três, que fiquei a saber que os Bombeiros de Campo de Ourique nem sempre o foram, ou seja, a fundação da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique a treze de novembro de mil novecentos e dezasseis, que brevemente celebrará cento e cinco anos de existência, era, anteriormente uma associação de saúde transportando como símbolo a Cruz Branca.
Por outras palavras os Soldados da Saúde, juntaram o fogo e o combate a incêndios às suas atividades ao serviço da população, para se tornarem, de pleno direito, Soldados da Paz. O que faz desta gente uma corporação centenária dedicada a servir, proteger, cuidar e salvar os seus conterrâneos, faça sol, chova ou faça frio, sempre que para tal são solicitados por aqueles que nas proximidades nem imaginam os sacrifícios acumulados ao longo dos anos, sem que o sorriso dos rostos o demonstre.
Por agora fico-me por aqui, querida Berta, pois não quero que um assunto tão importante se torne aborrecido por ser demasiado extenso, numa só carta. Amanhã e depois contar-te-ei as outras duas surpresas que esta Conversa à Mesa do Café revelou. Fica com um beijinho,
Ontem (e no dia anterior também), durante todo o dia, fiquei à espera de ver aparecer nos noticiários, nos diferentes canais televisivos, alguma notícia referente ao excelente trabalho de investigação da revista “The New Yorker”, com a assinatura de Rachel Aviv. Trata-se de um magazine que tento acompanhar sempre que posso, pois tem excelentes jornalistas de investigação. Daqueles que nos fazem lembrar que ainda há quem se importe, investigue e preocupe suficientemente para, depois de averiguados os factos e as fontes, dar o alerta.
O artigo desta semana, publicado dia dezanove de julho de dois mil e vinte e um, envolve a exposição de uma prática hedionda praticada na Alemanha desde os anos sessenta até dois mil e três, ou seja, uma prática que foi seguida por mais de quarenta anos, ininterruptamente, sem que ninguém, aparentemente averiguasse os factos e acompanhasse o assunto de perto o suficiente para acabar com ele.
A divulgação de Rachel Aviv é extensa, dura de ler e vai-nos indignando cada vez mais, ao longo dos quase cem parágrafos que constituem a história agora divulgada. Custa mesmo a acreditar que não se trate de ficção e que Aviv se cinja apenas e só ao relato dos factos descobertos e agora tornados públicos. O desenrolar da trama envolve a região de Berlim, um dos dezasseis estados alemães.
Não vou aqui traduzir ou reescrever a investigação de Rachel. Quem o quiser fazer poderá consultar a revista “The New Yorker” desta semana, que também se encontra online, sendo, por isso, de acesso fácil. Vou tentar, isso sim, resumir, o melhor que sei, o conteúdo desta imensa pesquisa e fazer o meu comentário. Porém, como não sou o autor do trabalho em causa, e embora reconheça a idoneidade da publicação que refiro, deixo tudo bem coberto pelo manto do que alegadamente aconteceu.
Ora, vou-me então referir ao Projeto Kentler, um programa experimental, desenvolvido por um eminente psicólogo alemão, que acreditava (a julgar pelos seus escritos) que poderia proporcionar um acolhimento de integração social às crianças órfãs, traumatizadas pela perda dos pais, ao coloca-las à guarda, com adoção incluída, de pedófilos registrados e cadastrados, que quisessem uma oportunidade de se poderem vir a tornar pais devotos.
Este programa experimental de dupla integração e interação durou quarenta e tal anos, com a bênção e o subsídio (incluindo uma vertente económica e financeira atribuída aos pedófilos que integrassem a experiência) do Estado de Berlim, quer na velha como na nova Alemanha unificada, por muito que isto nos custe a aceitar.
Aliás, um ano antes da queda do muro de Berlim, o Senado do Estado de Berlim, em mil novecentos e oitenta e oito, um relatório apresentado no Senado, pelo Professor Helmut Kentler, então considerado e reconhecido como um dos sexólogos e psicólogos mais influentes da Alemanha, descreveu o projeto como um sucesso total.
O anunciado sucesso do programa, sempre e continuadamente, desde a sua criação, fez com que cedo fosse alargado o espectro da tipologia de crianças colocadas à guarda destes pedófilos, mesmo daqueles que, por força da sua perversão, já possuíam registo criminal, passando a estar incluídas no programa não apenas as crianças órfãs com também as que fossem retiradas pela justiça a pais violentos, em que houvesse comprovados indícios de maus tratos por parte dos seus progenitores..
Kentler, o iluminado psicólogo, viria a ocupar um lugar importante na investigação educativa de Berlim, chegando ao ponto de ser considerado a autoridade máxima do país em matérias de educação sexual. Não era difícil vê-lo a afirmar em entrevistas televisivas que o contacto sexual entre adultos e adolescentes era inofensivo, no âmbito do seu programa, porque a prática da pedofilia era eficazmente substituída pelo sentimento de paternidade.
Kentler morreu em dois mil e oito sem nunca, até essa data, as suas teorias terem sido contestadas. O seu projeto tinha sido descontinuado cinco anos antes apenas porque o Senado do Estado de Berlim entendeu que havia que atender a outras prioridades sociais e que já não era necessário continuar a subsidiar os pedófilos que se tornavam pais.
Para a sua tese de doutoramento, a professora Teresa Nentwig, em 2016, projetou apresentar, na sua candidatura a lente da universidade, um estudo sobre Kentler, mas esbarrou com imensas dificuldades, ora faltavam importantes arquivos onde deveriam estar, ora se sentia perseguida pelos apoiantes e amigos do falecido Kentler.
Era, por fim, aconselhada a não mexer no passado da eminente figura até porque Kentler, enquanto perito judicial de renome, era também responsável por ter conduzido a justiça à declaração de inocência de mais de trinta pedófilos acusados de atos hediondos.
A reportagem da revista “The New Yorker” revela também como o governo alemão ajudou, com pleno conhecimento, a colocar crianças abandonadas em casas geridas por pedófilos. As primeiras revelações sobre o Projeto Kentler foram publicadas em 2016 pela Universidade de Göttingen. Desde essa altura, várias vítimas desse programa vieram a público descrever os horrores a que foram submetidas, algumas durante muitos anos.
A jornalista de investigação do magazine, Rachel Aviv afirma convictamente que, durante o tempo de duração do programa denominado Projeto Kentler, as vítimas ascendem às muitas centenas, senão milhares, de crianças não apenas no Estado de Berlim, mas em toda a Alemanha. Até à presente data o Senado do Estado de Berlim nunca pediu desculpas públicas às vítimas.
Não sou, querida Berta, um homem dado a muita violência, mas às vítimas e aos seus familiares, era correto dar a oportunidade de fazerem alguma justiça pelas próprias mãos. Esta gente imunda não pode continuar imune. Agoniado, despeço-me com um beijo solidário, como teu amigo de sempre,
Lembras-te dos “Vampiros” de Zeca Afonso? Rezava assim: “No céu cinzento sob o astro mudo, batendo as asas pela noite calada, vêm em bandos, com pés veludo, chupar o sangue fresco da manada. Eles comem tudo, eles comem tudo… eles comem tudo e não deixam nada… eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada. Se alguém se engana, com seu ar sisudo, e lhes franqueia as portas à chegada, eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada… eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada…”
A letra continua, minha querida amiga, mas o sentido, até ao final, não muda, apenas se agrava. É o que eu sinto com algumas das nossas instituições e com certas empresas de prestação de serviços e bens essenciais. Vêm, “com pés de veludo” prometendo defender o consumidor final, os utentes que deveriam servir e ajudar, mas é tudo uma grande farsa, pois, podendo, “eles comem tudo, eles comem tudo… eles comem tudo e não deixam nada”.
A imprensa escrita avançou ontem que a EDP foi condenada a pagar três milhões de euros a cinco câmaras, pelo uso dos postes de eletricidade, utilizados para permitir a passagem de cabos de comunicações, cuja propriedade é autárquica. Assim sendo, de acordo com os contratos, a EDP está obrigada a obter autorização das autarquias.
Ainda de acordo com esta contratação entre o poder autárquico e a EDP, esta é obrigada a negociar repartição de receitas, quando as infraestruturas são usadas para outros fins que não os da concessão inicial, ou seja, a distribuição de eletricidade em baixa tensão.
O que está em causa é a concessão de infraestruturas camarárias, com os tribunais a reconhecerem a obrigação da EDP repartir receitas provenientes do uso de postes de eletricidade, para passagem de cabos, por terceiros. Até porque, diga-se em boa verdade, a EDP cobra-se bem pela permissão do uso dos postes por parte das empresas de comunicações.
Desde dois mil e quinze já houve cinco condenações, com decisões de indeminizações ás Câmaras de Santo Tirso, Alcácer do Sal, Oliveira de Azeméis e Santa Maria da Feira e Gaia. Contudo, o número tende a aumentar substancialmente e os pagamentos poderão, com relativa facilidade, ultrapassar os cinquenta milhões de euros, numa primeira fase.
Porém, a EDP tem vindo a recorrer e a perder os casos, confirmando-se as condenações proferidas. Plena de “chico-espertismo” a elétrica argumenta que é obrigada, por lei, a ceder as infraestruturas às empresas de telecomunicações e que as receitas arrecadadas se destinam a compensá-la pela construção e manutenção dos equipamentos, como se (coitadinha da EDP) ela não tivesse sempre de o fazer.
A incompreendida fornecedora de energia elétrica defende ainda que os valores são abatidos aos custos de exploração das redes e que os benefícios revertem a favor dos consumidores. Uma ação tão benemérita que eu te pergunto, querida Berta, quantas vezes viste tu o teu custo da mensalidade de eletricidade baixar por força do altruísmo da EDP?
Em resumo, a EDP aluga, às escondidas e sem negociar com as autarquias, conforme a lei obriga, a passagem dos cabos ás empresas de comunicação pelos postes das câmaras, de uma forma totalmente ilegal, roubando o poder autárquico e depois vai para tribunal armar-se em vítima de injustiça, arrastando as decisões com todos os recursos que os gabinetes jurídicos, ao seu serviço, lhe conseguem arranjar, sem a mínima preocupação de honra, deontologia ou brio profissional próprios de uma empresa séria.
Esta atitude era igual a eu arrendar um casarão enorme para minha habitação, esquecer que o contrato com o senhorio me obriga a avisá-lo de qualquer outro fim que eu dê ao imóvel, e alugar ao dia, quarto a quarto, a turistas, todos os quartos e salas da habitação, ocultando os factos, não pedindo autorização e, ainda por cima, não pagando qualquer montante por isso ao verdadeiro proprietário. Porém, ao ser descoberto, em vez de reconhecer o erro, argumentar que a limpeza da mansão me fica muito cara e que a vítima sou eu, coitadinho de mim…
Haja paciência. Não restam dúvidas, minha querida Berta, que a justiça tem de arranjar um procedimento mais célere e sumário na resolução deste tipo de esquemas. Antigamente nós tomávamos este tipo de companhias e grandes empresas como gente de bem. Ora isso é, cada vez mais, algo que pertence ao passado. No caso da EDP, aqui em foco, a única parte a quem hoje se exige que seja “de bem” é ao consumidor final.
Não fosse a EDP ter o poder de me cortar o fornecimento de energia, dava vontade de gritar, como naquela velha canção da banda dos “Trabalhadores do Comércio”: “Chamem a polícia, que eu não pago!” Por hoje é tudo querida Berta, recebe um grande abraço e um beijo de despedida, deste teu velho amigo,
António Costa fez anos ontem, celebrando os seus sessenta anos de idade. Ora, embora eu tivesse já a ideia da idade do nosso Primeiro Ministro, nunca tinha associado que ele, tal como eu, nascera em mil novecentos e sessenta e um, ambos em Lisboa. Portanto, o rapaz é moço da minha safra e, mais uma vez, como eu, viveu a adolescência nos conturbados anos pós vinte e cinco de abril de setenta e quatro.
Pelo que reza a história, ambos militámos no Partido Socialista, sendo que eu deixei a política ativa há mais de vinte anos, depois de ter chegado à Comissão Executiva Distrital do partido no Algarve e ele, ao contrário de mim, continuou. Ainda me lembro de António Costa e de algumas conversas, dos tempos em que eu também era delegado aos Congressos dos Socialistas. Porém, isso é narrativa do milénio passado e as semelhanças entre os dois terminam aqui.
Hoje, Costa está em Angola na cimeira da CPLP, ou seja, na reunião da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, constituída por aqueles que fazem do Português a quarta língua mais falada do mundo. Porém, o critério da língua, que deveria ser condição inequívoca para se pertencer à CPLP, passou para segundo plano com a entrada no grupo de uma Guiné, a onde o português é chinês.
Mal comparando esta aberração é idêntica a incluir no reino das aves um hipopótamo, só pelo facto de ele abanar a cauda muito depressa. Bem pode o bicho abanar o que quiser, até as orelhas, que isso nunca vai fazer dele um falcão ou um pardal.
Ainda por cima, estamos a falar de um país, a que chamamos de Guiné Equatorial, que vive num regime de ditadura e onde a pena de morte se encontra em vigor. É certo que esta Guiné existiu como território colonial português durante quatro séculos, entre o século quinze e o dezoito, mas até isso nos devia envergonhar pois serviu de entreposto de escravos e de pouco mais, durante o nosso domínio da região, onde apenas nos interessou manter o poder sobre o Arquipélago de São Tomé e Príncipe.
Voltando a Costa, o malabarista acrobático da diplomacia, não me parece tarefa fácil este equilibrar os egos dentro da CPLP. Senão vejamos o atual cenário: já aqui falámos do hipopótamo com penas da Guiné Equatorial, depois temos o Brasil, governado por um presidente, no mínimo, pouco democrático, com nariz de urubu e conversa de papa-formigas, responsável pelo genocídio de mais de meio milhão de brasileiros. Segue-se Angola, esse regime democrático, que agora assume a presidência da CPLP, com um líder que depois de prometer tanta transparência já virou crocodilo invisível. Já a Guiné-Bissau é governada por um conjunto de hienas de nariz branco, no verdadeiro reino do narcotráfico.
Em Moçambique, o presidente Nyusi lembra o camaleão, conseguindo esconder, com rabo de fora, a corrupção do Estado com as aflições humanitárias e trágicas que pululam entre a fome popular e o terrorismo islâmico. Falta falar de Timor-Leste, São Tomé e Príncipe e Cabo-Verde.
Ora bem, Timor-Leste é, atualmente, um Estado a onde os antigos guerrilheiros contra o colonialismo português chegaram em pleno ao poder, estou a falar da Fretilin. O atual presidente, Francisco Guterres, manteve-se como guerrilheiro no ativo até mil novecentos e noventa e nove e só terminou há dez anos a sua formação universitária, em direito. O presidente do país, como em Portugal, nomeia o Primeiro-Ministro oriundo do partido ou coligação eleitoral mais votada nas eleições parlamentares.
O aparecimento de petróleo e gás natural no mar de Timor, entre outras coisas, que não interessa agora aprofundar, justificam a razão porque o dólar americano é a moeda do país e porque o inglês é oficialmente considerado na constituição como língua comercial. Muitos timorenses referem-se aos seus atuais líderes como filhos da Aca, a serpente piton comedora de homens. No entanto, Timor-Leste é uma democracia reconhecida pela ONU. Embora apenas vinte e nove por cento das crianças tenham registo de nascimento e cinquenta e um por cento sofra de nanismo por falta de nutrição, palavras lindas que significam fome.
Há ainda a realçar que cerca de quarenta por cento das mulheres são vítimas de violência, num país onde a maioria da população vive abaixo do limiar da pobreza. Não sei se numa avaliação isenta chamaria ao regime timorense uma democracia pobre ou uma pobre democracia.
Quanto a São Tomé e Príncipe, estamos perante uma democracia e um regime em que o presidente, no momento Evaristo Carvalho, nomeia o primeiro-ministro, perante o resultado das eleições parlamentares. O país tem apresentado alguma estabilidade e crescimento e desde 2009 que não sofre tentativas de golpe de estado.
Devido ao aparecimento de petróleo e gás natural nas suas águas a ONU prevê que em dois mil e vinte e quatro a classificação de país subdesenvolvido seja substituída por país em vias de desenvolvimento. Espero, contudo, que o ouro negro, não venha a gerar no arquipélago influências nefastas e ditatoriais como as conhecidas na vizinha Guiné Equatorial. Ponto de turismo internacional o arquipélago é constituído por duas ilhas, São Tomé e Príncipe, e vários ilhéus, como as Rochas Tinhosas ou Ilhas Tinhosas (a grande e a pequena), o ilhéu Caroço, o das Cabras, o de Santana, o Bombom e o ilhéu das Rolas, onde se encontra o Padrão do Equador, por este se situar sobre esta linha imaginária. A galinhola é a ave endémica em maior risco de extinção (menos de duzentas e cinquenta). Espera-se que o país da galinhola a consiga preservar junto com a democracia.
Finalmente, Cabo Verde, o último país desta CPLP, é atualmente um país democrático, onde o seu principal problema é a falta de água potável. Não se enquadra nos países subdesenvolvidos e o seu povo é calmo ou morno como a sua música. Aliás, o país tem o segundo melhor sistema educacional na África, logo depois da África do Sul. A tartaruga é um animal protegido e simboliza bem quer o convite ao turismo internacional, como à afabilidade e capacidade morna de acolhimento do povo cabo-verdiano. José Carlos Fonseca, o Presidente da República não é apenas um qualquer jurista formado pela Faculdade de Direito de Lisboa com classificação de muito bom, mas é também um reconhecido e considerado poeta do arquipélago.
Não convém esquecer que estava, minha querida amiga Berta, a falar de António Costa e da sua participação nesta cimeira da CPLP que decorre em Luanda, Angola. Ora, se atribuir a cada país e seus representantes um animal, como seu símbolo representativo, gostaria de saber como é que os papagaios Costa e Marcelo vão conseguir lidar com um hipopótamo-de-pena-de-morte, um crocodilo-invisível, um urubu-papa-formigas, mais as hienas-de-nariz-branco, um camaleão-de-rabo-de-fora, uma serpente piton-aca, uma galinhola-quase-extinta e uma tartaruga-morna. Ninguém sabe ao certo até onde vai a retórica e a capacidade argumentativa destes papagaios, mas, com estes dois a bordo desta arca da Língua Portuguesa, juro que estou convencido que a cimeira terá um sucesso imenso.
E mais não digo, pois, o meu entusiasmo com as qualidades fonéticas dos papagaios levar-me-ia a ter de usar mais odes do que as que Camões usou nos Lusíadas, também não quero que julgues, querida Berta, que eu penso mal dos povos aqui descritos ou que possa existir em mim algum pensamento racista ou de um género segregacionista qualquer, nada disso, tenho maior respeito pelos povos em si, já quanto aos seus dirigentes essa admiração está sujeita a cada momento e à atualidade em causa. Por isso me despeço com um beijo saudoso. Até sempre, este teu amigo do coração,
O outro dia, julgo que foi na passada segunda-feira, escutei à mesa do café Az de Comer, na esplanada, uma conversa de uma criança de doze anos com o pai. Achei imensa graça ao diálogo e chegado a casa fui tentar tirar as minhas próprias dúvidas. A jovem menina queria saber quantos países e territórios tinha a Europa. O assunto tinha vindo à baila na escola e a professora fugira à questão.
O pai, com a experiência que os anos lhe deram, contornara a questão dizendo que existiam vários países entre a Europa e a Ásia, que estavam sempre, conforme os critérios, a ser considerados ou uma ou outra coisa. Deu o exemplo recente do euro2020 em que existiram jogos realizados em Baku, capital do Azerbaijão.
Ainda lembrou o festival da canção da Eurovisão, onde já há alguns anos passaram a entrar países euroasiáticos como o Azerbaijão, a Geórgia e a Arménia. Para além disso, a coisa ainda era mais complicada se fossemos contar com o Kosovo, reconhecido como país por mais de noventa dos seus pares, mas ao mesmo tempo não aceite como tal pela Sérvia, que o considera seu território.
Certo, certo, afirmava o pai lá do alto da sua sabedoria, eram os países que constituíam a União Europeia. Esses eram vinte e sete e para fazerem parte da mesma tinham que ser efetivamente europeus.
Foi no nono segundo depois desta afirmação que eu soltei uma gargalhada bem audível, que depois tentei disfarçar, amiga Berta. É que a catraia indagou, quase imediatamente o pai, querendo saber se ele tinha a certeza porque, segundo ela, Chipre, membro da União, parecia localizar-se na Ásia, pelo menos fora isso que ela aprendera na escola. O homem pareceu mastigar a informação enquanto ingeria um mini rissol de camarão.
Ora bem, cara amiga, pela geografia dos meus tempos a Turquia (excetuando Istambul até se atravessar a ponte) e a Ilha de Chipre já se encontram em território asiático. Porém, num continente euroasiático, a dinâmica diplomática, política e estratégica tende a estabelecer fronteiras que não são exatamente as que se aprenderam na escola.A definição moderna de Europa separa-a da Ásia no mar Egeu, Dardanelos-mar de Mármara-Bósforo, mar Negro, tergos do Grande Cáucaso, parte noroeste do mar Cáspio e montes Urais, como exemplificam muitos atlas, entre os quais o publicado pela National Geographic Society.
Há, por isso mesmo, uma espécie de nova Europa em expansão, nos tempos que correm, influenciada pela própria definição de Europa, que culturalmente estabeleceu raízes a partir da Idade Média, no ocidente europeu. Esta Europa expansionista procura estabelecer os seus limites pelo Mar Mediterrâneo e pelos países árabes a Sul e pela Rússia (que é parte Europa, parte Ásia) e pelo mar Cáspio a Leste.
Já a Norte a fronteira é evidentemente traçada pelos vários mares do Norte que se ligam ao Oceano Ártico, enquanto o Oceano Atlântico gera os limites a Oeste, incluindo Açores, Gronelândia e Ilhas Canárias.
Porém, um conjunto muito unido e organizado de cientistas e geógrafos a nível mundial tem, cada vez com maior sucesso, tentado acabar com a ideia de dois continentes (Europa e Ásia), com fundamentos meramente políticos e estratégicos, para passar a falar do continente Euroasiático, enquanto unidade continental única e indivisível.
Assim, somente pela definição moderna e política, a atual Europa inclui cinquenta e quatro países e territórios. A Arménia, a Geórgia, o Azerbaijão e Chipre são, portanto, países europeus, assim como o Kosovo, que é maioritariamente reconhecido enquanto país pela grande maioria dos seus pares europeus, de fora ficando a Sérvia, o Chipre, a Eslováquia, a Grécia e a Roménia, para além da Turquia e da Rússia. Fora da Europa nem a China nem o Brasil apoiam o reconhecimento independente do Kosovo. Em números redondos, aliás, o Kosovo só é reconhecido por cerca de um terço da população global, sendo que mais de cento e vinte países e territórios do mundo não o consideram um Estado independente e soberano.
Já à Turquia, por ter a cidade de Istambul situada na Europa, é deixada igualmente a possibilidade de ser considerada um país quer europeu, quer asiático, ficando por isso também incluída no grupo dos cinquenta e quatro países e territórios com reconhecimento europeu.
A ambição europeia atual parece querer ainda ir mais longe e já reconhece ao Cazaquistão, que tem uma leve fatia do seu território dentro das fronteiras geográficas da moderna definição de Europa, o direito a solicitar a sua integração na União Europeia. Pensamento peregrino certamente, uma vez que a Rússia nunca permitiria uma tal adesão.
Por curiosidade resolvi investigar mais uma ou outra situação. Dos cinquenta e quatro países e territórios da dita Europa que lugar ocuparia Portugal em termos de população? Seria um país considerado pequeno, médio ou o quê? E na listagem dos territórios europeus mais infetados pela Covid-19, em que lugar estaríamos nós?
As respostas a estas questões foi, mesmo para mim que me considero minimamente informado, surpreendente. Descobri que somos o décimo quinto país da Europa (incluindo Rússia e Turquia) com mais população. O que quer dizer que estamos bem dentro do primeiro terço dos países europeus mais populosos, com trinta e nove países e territórios atrás de nós. Também em termos de total de infetados por Covid-19 ocupamos a décima quinta posição, bem coincidente com o nosso lugar em termos de quantidade de habitantes. Fiquei deveras surpreendido e por isso alarguei a minha pesquisa a outras dúvidas no âmbito da Covid-19 e tento em conta o nosso número de habitantes.
Desta vez usei outro critério. Verificar em que lugar estaríamos nós, em termos de testagem à Covid-19, dentro dos países europeus e mundiais com igual ou superior número de habitantes de Portugal. Mais uma vez fui surpreendido pelos números, à nossa frente em testagem na Europa apenas encontrei o Reino Unido, a França e a República Checa com mais testes por milhão de habitantes que Portugal.
Já em termos mundiais os números, vistos de acordo com estas premissas, são ainda mais elogiosos, minha querida Berta, porque, parece mentira, apenas somos ultrapassados pelos três já referidos atrás e pelos Estados Unidos da América, ficando em quinto lugar mundial neste ranking dos países que mais testam a Covid-19 no globo, dentro daqueles que têm mais de dez milhões e cem mil habitantes.
Hoje vou para a cama mais sereno e menos preocupado com a forma como o Governo de Portugal tem combatido a pandemia. Estamos perfeitamente na média de infeções face á população que temos e somos dos países do mundo que mais se esforça em testar a sua população. Atrás de nós ficam oitenta e cinco países na testagem mundial, dentro destes parâmetros. Por hoje é tudo, despeço-me com amizade. Recebe um beijo, minha querida Berta, deste teu amigo de sempre,
Muito recentemente o jornal online Setenta e Quatro (www.setentaequatro.pt), lançou o seu primeiro número com muitas rúbricas dedicadas a uma análise da extrema direita em Portugal e no mundo. Para além disso, publicou ainda outros artigos e crónicas sobre fascismo, descriminação, racismo, homofobia entre outros fenómenos característicos desse extremo político.
Estou a tentar ver se a minha colaboração pode ser do interesse de ambas as partes ou não e, para isso, já enviei um cartoon a propósito da temática da investigação do primeiro número. Hoje resolvi incluir esta carta como hipotética participação, se disso houver interesse por parte dos editores.
Contudo, pelo que já foi dito no Setenta e Quatro, pareceu-me excessivo mandar mais uma crónica de opinião a bater na extrema direita. Em vez disso, e totalmente enquadrado no tema, decidi incluir nesta carta, minha querida Berta, um poema que faz parte do livro “O Próximo Homem” publicado lançado à estampa pela editora “Poesia Fã Clube” em junho de 2021, de minha autoria. Aqui vai:
"CAI O MEDO"
Cai o medo na cidade
E chamam-lhe noite.
Porém,
O Sol sorri ao Povo intimidado,
Mas para os que tremem
No calor
O eclipse aparente não existe
Pois, pura e simplesmente
Já estão cegos...
E para todos eles
As Trevas são reais...
Cegos de medo,
Sedentos de conforto e segurança,
Amantes do estável e do firme
Porque nada mais há de tão hipnótico...
Eles:
Cegos, sedentos e amantes,
São os condutores
Da noite eterna...
"- O Sol só queima o corpo,
Eu nunca o vi brilhar
Na minha alma..."
Parecem dizer as bocas mudas,
Fechadas na noite,
Cariadas de vontade própria...
Cai o medo na cidade
E chamam-lhe silêncio...
Ninguém ouve, ali, agora,
Os gritos dos amordaçados,
Calados pelo estômago,
Apagados no marasmo da noite
E do silêncio...
Cai o medo na cidade
Mas ninguém, ninguém,
Mesmo ninguém
O parece sentir...
No fundo
Todos somos autistas,
Na noite e no silêncio,
Do vil quotidiano...
O medo não vem no dicionário
É mero gene transmitido...
"- Antes sobreviver do que viver..."
Pensamos todos nós
Sem repararmos
Que o nosso pensamento é viciado...
Somos filhos da noite
E do silêncio...
Cai silenciosa a noite na cidade
E ninguém,
Mesmo ninguém repara
Pois só caiu de noite
E em silêncio...
Gil Saraiva
Espero, querida Berta, que o poema te tenha agradado. Voltarei certamente às nossas cartas brevemente, recebe um beijo saudoso deste teu eterno amigo de todos os dias,
Terminando a carta de ontem, sobre “O Que Se Passa em Campo de Ourique?” sem “Entrevista à Mesa do Café”, no que concerne à loja do Eduardo dos Livros e à Nova Ação de Despejo, resta-me completar hoje a Parte II/II. Efetivamente, tudo deveria ter ficado resolvido, aparentemente em 2019, quando a loja foi proposta ao programa municipal que a protegia, por pelo menos mais dez anos, de qualquer tentativa do fundo de tomar posse da mesma, ou seja, à categoria de “Loja com História”.
É sabido que, na época, várias das propostas a que a iniciativa fosse tomada partiram do Bloco de Esquerda e do PCP que chegaram, inclusivamente, a usar o exemplo do que estava a acontecer com o “Eduardo dos Livros”, para tentar defender todos aqueles inquilinos que, face à Lei Cristas ou Nova Lei das Rendas, se viam na eminência de serem despejados depois de décadas a viver em apartamentos que lhes estavam alugados ou de lojas arrendadas, também há muitos e muitos anos, pelos senhorios.
Porém, segundo os relatos da época na imprensa, a loja “Eduardo dos Livros” não foi considerada pelo programa “Lojas com História” por apenas usufruir de oito dos onze indicadores ou pontos necessários para poder conseguir este estatuto e por isso mesmo esta proteção ter-lhe-á sido negada em sessão da Câmara Municipal de Lisboa.
Há, contudo, uma versão, vinda dos corredores da Câmara, que conta uma história diferente, segundo a qual, depois de se terem conseguido contornar todos os indicadores, foi Fernando Medina quem se recusou a validar a proposta, com a desculpa esfarrapada de não querer abrir mais precedentes na autarquia prejudiciais ao setor imobiliário. Infelizmente esta minha declaração terá de ficar no âmbito do “alegadamente” uma vez que as fontes, que me garantiram a veracidade da informação, se recusarem a vir a público dar a cara, com receios, no seu dizer fundados, de poderem serem alvos de futuras represálias.
No ar ficará, independentemente dos factos ocorridos, a dúvida sobre quais foram as motivações da Câmara Municipal de Lisboa de contrariar uma medida aprovada por unanimidade pela Junta de Freguesia de Campo de Ourique, também ela socialista, de considerar a loja do “Eduardo dos Livros” como devendo ser protegida pelo programa municipal de “Lojas com História”.
O que me espanta mais é que, sendo o Eduardo dos Livros a mais antiga loja de Campo de Ourique, inaugurada em mil novecentos e sessenta e quatro, não tenha tido o direito de ser classificada como “Loja com História” pela Câmara Municipal de Lisboa. O que falta à “Eduardo dos Livros”? Teias de aranha? Mobiliário de mogno ou de cerejeira? Um gigante candeeiro com penduricalhos de cristal de Alcobaça com a assinatura da velhinha e prestigiada marca Atlantis?
O facto é que, está mesmo a terminar o prazo da terceira ordem de despejo à “Eduardo dos Livros”. Maria Helena Pereira vem resistindo, à custa de muitos cabelos brancos, desde 2018, a esta terrível situação. Subsistir de quê, se perder o direito a continuar na fonte do seu sustento, quando ainda nem sequer tem idade para se reformar?
Para cúmulo, e porque uma desgraça nunca vem só, a VASP, a principal distribuidora de jornais e revistas, começou, de há uns poucos meses a esta parte, a cobrar aos lojistas, já que não pode aumentar os preços dos editores, um euro e meio por dia a que acresce mais um euro ao domingo, para entregar nos quiosques, livrarias e tabacarias, as encomendas que lhes são devidas.
O argumento da distribuidora é que tem de distribuir pelos clientes finais, as lojas, os custos de perda de rentabilidade devida à pandemia de Covid-19, ou seja, por outras palavras, a VASP é mais um vampiro, morcego ou pangolim a sugar o sangue ao mexilhão, os desgraçados dos pontos de venda, que não têm como se defender por estarem no fim da cadeia alimentar. Mais uma vez é o “paga e não bufes” contra uma atividade cada vez mais estrangulada nas margens de lucro da sua atividade e na drástica diminuição de clientes face às contingências da pandemia.
Tudo isto, amiga Berta, se vai acumulando, nas tristezas de um povo, cada vez mais descontente e, por isso mesmo, disposto a medidas mais radicais ou a ideias até há pouco tempo consideradas absurdas. O mal vem do afastamento, cada vez mais profundo, entre a população desprotegida e carente e as elites do poder ou da representatividade democrática. Eu sou uma pessoa de esperança, pode ser que o final da pandemia consiga trazer ao de cima um estado mais solidário e atento às necessidades daqueles que governa ou administra.
Por hoje termino com os votos de que a dona Maria Helena Pereira, consiga levar de vencida mais esta grande batalha contra a injustiça que recai sobre quem é pequenino e não tem os recursos dos poderosos. Deixo um beijo de despedida e até uma próxima carta, este teu eterno amigo,